D. João VI no Brasil – Oliveira Lima
CAPITULO XIV
A DISCUSSÃO DA GUIANA
A conservação da posse da Guiana Francesa dava, já o sabemos, ao governo
português incontestável vantagem na discussão que se ia travar em Paris, sobre a velha questão
de limites; sobretudo lhe dava motivo para esperar obter uma solução de acordo com suas razoáveis
aspirações e com as
estipulações do tratado de Utrecht. Constituíra mesmo tal intenção diplomática a causa mais que
todas verdadeira da recusa de ratificação
da convenção de Paris de 1814.
Reza um memorandum francês datado de 28 de janeiro de
1815 e remetido de
Viena383 ao conde de Jaucourt, ministro interino dos negócios estrangeiros na ausência de
Talleyrand, que os plenipotenciários ao Congresso de Utrecht, induzidos em erro por mapas defeituosos,
convieram em tomar
por divisa entre as possessões francesa e portuguesa "o rio Oia-poque ou de Vicente Pinzon, como
se fosse um só e o mesmo, quando de fato são diferentes". Semelhante resultado
diplomático havia sido fruto exclusivamente da habilidade dos negociadores portugueses, ou melhor
de D. Luiz da Cunha,
porquanto a proteção inglesa naquele Congresso fora mais aparente do que efetiva.
O governo português insistia portanto pelo limite do
Oiapoque, o seu constante Vicente Pinzon e o Vicente Pinzon de Utrecht. O
governo francês
esperava pelo menos alcançar uma linha intermédia entre esse rio e o da sua pretensão. Talleyrand,
como que achando inútil querer compensar passadas concessões com uma
extemporânea resistência, aderira porém, ao que parece,384 à idéia de aceitar-se
pura e simplesmente o artigo Mil do
tratado de Utrecht, quer dizer, o limite do rio que deságua no Atlântico entre
os graus 4º e 5º de latitude norte.
Constava a principal argumentação dos franceses de que
não podiam verossimilmente ter cedido a livre navegação do Amazonas com as
terras adjacentes, ou admitido o
limite do cabo do norte, e cedido também as terras compreendidas entre este cabo e o de Orange
que forma a extremidade da margem meridional do Oiapoque, chamado rio de Vicente Pinzon pelos portugueses e como tal
reconhecido no artigo VIII do tratado, ao passo que o artigo XII do mesmo
apenas se refere ao rio de Vicente Pinzon, o qual eles, franceses, consideravam
distinto. São terras aquelas últimas que abrangem dois graus e 24 minutos de latitude, ou quase
metade da extensão da Guiana
Francesa antes do Tratado de Utrecht, contando-se a outra metade do Oiapoque ao Maroni ou limite
mais ao norte com a Guiana holandesa. Geógrafos havia aliás que colocavam o Oiapoque ainda
acima do Maroni, aproximando-se
do Orenoco, quando de fato devia ele, no dizer da diplomacia francesa, aproximar-se
topograficamente muito do Amazonas.
Aproximar-se
do Amazonas constituía o ideal da Guiana Francesa, que não se consolava do seu
forçado afastamento da grande artéria fluvial, lamentando tal divórcio,
decretado em Utrecht, o memorandum do ministro da Marinha385 com as seguintes
expressões: "Só com efeito pelo uso comum desse rio poderiam os franceses da Guiana
partilhar com os
portugueses do Pará e da margem que ele balisa, os proveitos de uma navegação recusada às
desembocaduras de todos os nossos rios de muito pouca profundidade para admitirem, mesmo nas marés
mais altas, embarcações
tendo o calado das fragatas: a extensão das culturas e do comércio da colônia francesa apenas
tornará cada dia mais sensível o prejuízo imenso que lhe causou o tratado de Utrecht,
déspojando-a da posse da margem esquerda
do Amazonas e do usufruto deste belo rio."
Mesmo a posição intermédia parecia vantajosa, sendo de grande futuro as terras ainda incultas
entre o cabo do norte e o Oiapoque pelas preciosas madeiras que ofereciam suas matas, pastos
excelentes das suas dilatadas savanas, rios piscosos e terras aptas ao cultivo dos gêneros coloniais.386 Facilitando
até os ventos essa navegação, como era o caso, o gado criado poderia ser exportado para as Antilhas
Francesas. "Na fala de uma comunicação
imediata com o Amazonas, nada é mais interessante do que não nos afastarmos da sua margem setentrional, pois as águai
que do nosso território corram para esse belo rio podem unicamente por-nos em contato e intercurso com os mais ricos
países do interior da Ama rica:
intercurso liberto de todas as peias fiscais e que por tal motivo seria muito
mais favorável e ativo. Sabe-se de fato quanta importância tinha o contrabando que outrora existia entre as partes
francesa e espanhola de São Domingos,
e por intermédio desta com várias outras colônias de S. M. Católica, e
não se ignoram os benefícios que daí resultavam."
Por qualquer lado que se examinasse, a
aproximação devia considerar-se a mais vantajosa. "Pelo lado da defesa
também — ajuntava o ministro da Marinha — a mais segura trincheira ou antes o
baluarte único da capital da colônia francesa sempre foi o grande intervalo de
terras incultas que separa o Oiapoque do cabo do norte. A concessão destes
desertos protetores e a sua ocupação por uma série de postos e pontos de
socorro que os portugueses certamente estabeleceriam, poriam realmente à sua
discrição o destino da colônia francesa. Uma flotilha de pirogas, fácil de preparar
sem ruído algum, pode de um momento para outro lançar sobre a própria ilha de
Caiena forças três ou quatro vezes superiores às da nossa guarnição. Nenhuma
segurança mais fica, a menos de se decidir elevar as tropas a manter em Caiena
muito acima do efetivo que comporta a utilidade presente desta colônia."387
Sucessos que de bem pouco datavam eram de molde a
justificar as asserções oficiais francesas. "A recente ocupação de Caiena,
facilitada pelo conhecimento que os portugueses possuíam da região intermédia,
prova quão verdadeiros são tais temores. Só espiando constantemente os movimentos
dos portugueses por meio de embarcações ligeiras e de estação permanente nos
rios que nos separam do Amazonas, logrará a colônia de Caiena, dilatada até o
ponto máximo que for mesmo de acordo com o tratado de Utrecht, suprir as
fortificações e forças com as quais é impossível dotar o seu centro enquanto
ela não adquirir mais agrícola." Nestas condições, tendo bem presentes as
disposições da França pouco inclinada a desistir das mencionadas terras
intermédias, é que se pode avaliar quanto representam para Portugal, como
triunfos diplomáticos ainda que pouco estrondosos, os artigos CVI e CVII do Ato
Geral do Congresso de Viena. Pelo último é sabido que Portugal se obrigara a
restituir a Guiana até o rio Oiapoque, em época que convenção ulterior
fixaria logo que o permitissem as circunstâncias, devendo proceder-se
amigavelmente à demarcação definitiva dos limites das duas Guianas conforme o
sentido preciso do artigo VIII do tratado de Utrecht.
Terá a corte do Rio naturalmente preferido que a questão da fronteira houvesse
ficado resolvida, exatamente segundo as suas vistas, no Congresso de Viena,
sem mais discussões, dúvidas e sofismas. Obtiveram porém pelo menos os seus
plenipotenciários um ponto importantíssimo como concessão e como precedente,
que era a estipulação da entrega apenas até ao Oiapoque, invariavelmente considerado
por Portugal o limite setentrional do seu domínio americano.
Ao
vir ao Brasil, trazia o duque de Luxemburgo por principal missão política, ao lado da sua missão
de cortesia, obter a devolução da Guiana, deixando-se para mais tarde a regulação da fronteira, já
que era um assunto
que poderia exigir ou antes certamente exigiria reconhecimentos nos terrenos em litígio, e que
estava por decidir havia um século sem que a suspensão da sua solução fizesse sofrer a
prosperidade de qualquer dai duas
colônias.38S
A
verdade entretanto era que a França — a opinião do ministro da Marinha assaz o prova — não
queria abandonar completamente a sua pretensão de uma fronteira abaixo da do Oiapoque, em
primeiro lugar para se
tornar, se possível fosse, ribeirinha do Amazonas, e na pior hipótese para obter maior profundidade
territorial, mais hinterland do que lhe poderia fornecer a linha traçada
pelo curso do Oiapoque. Segundo as instruções dadas ao seu embaixador, cuja missão fora
resolvida, no dizer textual das mesmas instruções, para corresponder aos testemunhos de consideração do príncipe regente e
ultimar com a corte do Brasil várias discussões que o estado de paz não fizera
ainda cessar, o governo da restauraçã: inclinava-se a convir num limite
intermédio do rio que os franceses denominavam de Vicente Pinzon,389 perto do cabo do
norte.
Sua ambição era porém a de uma linha traçada da foz
meridional do rio
Araguari (Araouari) para oeste, seguindo paralelamente a margerr esquerda ou norte do Amazonas, à
distância de quinze léguas até a sua confluência com o Rio Branco. Em último caso admitia
todavia o gabinete
das Tulherias o limite do Oiapoque, contanto que a Guiana fosse logo restituída, pois se gerara em
Paris o receio de que a corte do Rio estivesse chicanando para conservar a possessão conquistada, pondo até de lado a entrega das propriedades particulares
seqüestradas, confiscadas ou ocupadas
pelos portugueses, e cujo direito ficara formalmente garantido a:os legítimos possuidores na capitulação assinada em
1809.
Luxemburgo era portador de plenos poderes para firmar no
Rio a convenção da
restituição da Guiana e muito desejaria fazer uso deles. O governo português preferia contudo
negociá-la em Paris, para onde expedira os respectivos plenos poderes ao marquês de Marialva e
ao cavalheiro Brito;
se bem que o duque de Luxemburgo declarasse que toda negociação ali ficaria por iniciar, em
vista da deliberação do rei cristianíssimo de mandar ao Rio de Janeiro um embaixador
extraordinário, devidamente autorizado para levar a termo semelhante ajuste, e
igualmente para firmar
um tratado de amizade análogo ao subscrito pela França com as potências aliadas.
O gabinete do Rio valia-se no entanto da circunstância
de não ter Luxemburgo
os plenos poderes.para tratar de outros negócios pendentes, a saber,
principalmente da fixação dos limites, para negar-se a convir com ele na restituição da Guiana,
pretextando sobretudo que o gabinete de Paris mostrara anteriormente desejo de que os negócios
pendentes ali fossem tratados, o que do mesmo modo convinha aos interesses
portugueses. Como
meio dilatório também o governo português consorciou a questão das reclamações por prejuízos
de guerra com a da entrega da Guiana, comunicando Aguiar ao embaixador390
que os dois negócios derivavam da mesma
causa e eram os resultados das mesmas hostilidades.
Escrevia a este propósito o duque de Luxemburgo391
que "a maior satisfação
do gabinete do Rio era nunca concluir coisa alguma". O certo porém é que o governo português
não queria calculadamente abrir mão da posse da Guiana, sem regular definitivamente a
fronteira bem entendido,
e igualmente sem alcançar algumas indenizações particulares das reclamadas. Esta última idéia fora
sugerida, ao que parece, por Brito, que era o tipo do diplomata que timbra em não ceder até a
última, levantando sofismas e dúvidas a cada passo e jamais querendo
resignar-se a bater em retirada sem carregar algum proveito da discussão.392
Brito, pelo que Luxemburgo julgava, alimentava com as
notícias terroristas que mandava sobre o estado incerto das coisas políticas
em França, a
hesitação intencionada da corte portuguesa, a qual, na frase do embaixador, tinha por habitual
disposição nada fazer sem ser a tanto imperiosamente obrigada. Acabou no entanto Luxemburgo,
entendendo-se diretamente
com Dom João, por obter razão no essencial, acordando-se que seria mandada para Paris uma
carta real endereçada ao governador militar da Guiana, ordenando-lhe de
proceder à entrega da colônia assim que lhe chegasse às mãos a carta, remetida
pelos plenipotenciários portugueses, os quais a expediriam logo que rematassem em Paris
seus arranjos diplomáticos.
Ao mesmo tempo, instruções eram despachadas diretamente não só ao intendente de
Caiena como aos governadores do reino para, no espírito da paz celebrada, levantarem o seqüestro e
executarem a restituição
das propriedades e fundos pertencentes a franceses ausentes da Guiana ou domiciliados em Portugal.
As negociações em Paris foram demoradas. Para começar, no intuito de atrasarem a solução da
questão, Marialva e Brito tinham negado os seus plenos poderes para concluírem uma convenção.
Depois, foi Marialva
obrigado a sair para Viena a tratar do casamento do príncipe herdeiro, e Brito, que ficava simplesmente
como encarregado de negócios, quis transformar em carta credencial que o acreditasse regularmente
na qualidade de ministro plenipotenciário os plenos poderes do ano
de 1814, que lhe davam
autorização e competência para debater e combinar o negócio de novo sacudido na arena da discussão
pela recusa de ratificação do tratado por
parte do príncipe regente no Rio de Janeiro.
Foi prolongada e curiosa a correspondência trocada por tal motivo entre o duque de Richelieu e o
cavalheiro Brito. Este chegou a recusar entrar no gabinete do rei da França no
dia da audiência concedida para apresentação dos seus plenos poderes pelo fato de ser essa
audiência particular,
como a plenipotenciário que não fosse simultaneamente enviado extraordinário. O ministério
francês não cedeu, porém, não tanto porque merecesse a pena sustentar tenazmente o seu modo de ver
em pura matéria de
etiqueta, mas sobretudo para, nas expressões do histórico da questão, mandado
para Viena ao conde de Caraman, embaixador de França, não dar largas à vaidade de
Brito e não o pôr em veia de entravar as negociações com dificuldades piores de arredar e que
ferissem os interesses essenciais
franceses.
Decidiu
Brito afinal mandar consultar sobre o caso para Viena o marquês estribeiro-mor, o que explica aquele
histórico despachado a Caraman,393
em que se ameaçava agir pela força se continuassem tais delongas diplomáticas, muito mais calculistas do que
formalistas. "Haveria necessariamente
mister tomar uma resolução e inclino-me muito — declarava o ministro dos Negócios Estrangeiros — a
fazer zarpar, logo que esteja
equipada, a esquadra que deve restabelecer a posse das nossas colônias. O comandante das tropas iria munido de
plenos poderes e começaria por tocar no Rio de Janeiro, onde daria
aviso de que vinha terminar a negociação,
perante a negativa feita de continuar a tratá-la na Europa: e, se lhe opusessem
novas dilações, partiria, após um prazo certo, a apoderar-se da Guiana e Caiena. Nenhuma expedição
seria mais fácil e, a estado atual
das coisas, por certo só inconveniente para Portugal poderá resultar
dela. Sua conduta com relação à Espanha não é de natureza a granjear-lhe as simpatias. De resto, antes de
chegar a essa extremidade. e se não
nos for possível tratar em Paris, talvez que eu vos confie o andamento desta negociação. O marquês de Marialva tem
poderes separados exatamente como o
Sr. de Brito. Eu expediria os vossos para tratar em nome da França. Que objeção poderia ele levantar? A
determinação que adotarmos a
respeito dependerá especialmente da resposta que recebemos a este
despacho, e das disposições em que se achar o marquês de Marialva."394
Assim
procedeu o duque de Richelieu diante da obstinação de Brito em equiparar os
seus plenos poderes eventuais de 1814 à credencial indispensável para ser compreendido na
segunda classe dos agentes diplomáticos, segundo a graduação que acabava de organizar o Congresso de
Viena. Tendo, além
disso, o ministro de Estrangeiros da França percebido e posto em realce na última nota do
representante português uma verdadeira insistência para incluir ou fazer simultâneas com
a convenção relativa à restituição de Caie-na, a convenção concernente à demarcação dos limites das
duas Guianas e a
estipulação das bases das reclamações pendentes, tanto mais conveniente e vantajosa lhe pareceu a
transferência das negociações para Viena.
A
Brito era dada a seguinte explanação: "Como, nas presentes circunstâncias, seria de temer, em
vista da distância que separa as duas cortes, que dificuldades sem cessar renascentes
embaraçassem ainda por muito tempo esta negociação, o rei, a quem dei conta da impossibilidade em
que julgais
encontrar-vos de prossegui-la antes de ultimada a discussão que surgiu sobre a
natureza da carta que fora desejo vosso fazer-lhe entrega, deu-me ordem de levar ao vosso
conhecimento que, respeitando as razões que guiam o vosso proceder e reservando-se o dar à vossa
corte, sobre o ponto em litígio, explicações tão amigáveis quanto
satisfatórias, ia remeter ao Sr. conde de Caraman, seu embaixador em Viena,
poderes para assinar os atos necessários com o Sr. marquês de Marialva, o
qual, da mesma
forma que vós, se encontra munido dos plenos poderes de Sua Majestade Fidelíssima."395
As intruções foram com efeito lavradas e os plenos poderes expedidos a
Caraman a 12 de fevereiro de 1817. Richelieu tinha o maior apreço pela nobreza de Marialva, cuja
lealdade constantemente põe em relevo, o que decerto significa que era mais difícil tratar com
Brito. Receava apelas
o ministro que o embaixador estivesse peado por ordens da sua corte, e que
tampouco tivesse decisão de caráter bastante para cortar a questão. Marialva
foi, aliás, muito leal, mas leal antes que tudo com o seu colega.
Numa carta muito polida e muito hábil escusou-se o embaixador ao conste, lembrando que havia sido
comissionado para firmar, conjuntamente com Brito, os convênios em debate ou
ajustes em perspectiva, que eram o tratado igual ao de Paris de 20 de novembro de 1815 e a
convenção da resti-tuição
da Guiana. Denotando em tudo sua deferência para com o governo francês, fazia por fim votos para
que a divergência sobre a credencial se com-pusesse por meio de uma solução conciliatória, e que
nas negociações, "’atri-buídas a Brito isoladamente durante a sua ausência de Paris,
se achassem a caminho
de realizar-se nas condições previstas e prometidas".
A Caraman mostrou o marquês estribeiro-mor396
a correspondência do
Rio, em que se achava expresso que as negociações deveriam ser efetuadas
conjuntamente por ele e por Brito, e no caso de ausentar-se o embaixador de Paris, por Brito
somente. De resto Brito participava quase simultaneamente a Marialva que assentira continuar
a discussão entabulada,
após redigir "um protesto que poderia reservar seus direitos ou pretensões
sem parar a marcha da negociação e que seria comunicado aos seus colegas do corpo diplomático".
Este protesto tem a data de 24 de março de 1817 e diz ser
lavrado "para pôr
fora de lesão (hors d’atteinté) os direitos e dignidade do seu Augusto Amo, que se encontrariam
comprometidos pela falta de execução com relação a ele do art. 1º do regulamento do Congresso de
Viena…". Deferindo entretanto às intenções francas e benévolas do rei fidelíssimo e à
determinação do
rei cristianíssimo de fornecer "à sua corte, sobre o ponto em litígio, explicações tão
amigáveis quanto satisfatórias", o agente diplomático de Dom João VI declarava-se pronto a travar a
negociação.397
A solução da questão do caráter diplomático de Brito
deu-se contudo
imediatamente com a sua elevação a enviado extraordinário e ministro
plenipotenciário na ausência de Marialva, deliberação que entrementes tomara a corte do Rio de Janeiro: A
1? de abril fazia ele ao ministro dos Negócios Estrangeiros o pedido de audiência para entrega
da cópia da credencial.
No decorrer das negociações verbais e escritas que se
seguiram, não poucas foram as dificuldades levantadas e não fraca foi a
resistência oferecida
pelo cavalheiro Brito. A nota do duque de Richelieu de 22 de abril,398 acompanhada
de reflexões sobre o contra-projeto de convenção apresentado pelo ministro português, termina
solicitando uma resposta definitiva: se se podia esperar ou não o cumprimento puro
e simples da cláusula
do Ato Geral do Congresso de Viena de 9 de junho de 1815 sobre a restituição da Guiana
independente da regulação da questão de limites, a qual não tinha pelas estipulações daquele Ato
que ser ventilada na mesma convenção ou
ao mesmo tempo que aquela convenção.
Ora, não convinha absolutamente a Portugal, assaz o
sabemos, abrir mão
de Caiena sem garantir a sua linha de fronteira e conservar a França a respeitosa distância do
Amazonas. Por isso o conde de Palmela a 22 de maio de 1817, auxiliando de Londres as
negociações em andamento em Paris, pedia a lord Castlereagh a mediação inglesa, prevista no tratado,
para se ajustarem
os limites respectivos nas Guianas. O secretário britânico dos Negócios Estrangeiros
recomendou com efeito sem demora ao embaixador em Paris que instasse com o governo francês
para que ouvisse favoravelmente
as propostas do plenipotenciário português, sem ser preciso recorrer ao processo
dilatório dos comissários técnicos.
A
França mostrava-se, porém, só disposta a receber Caiena sem fixar definitivamente, apenas provisoriamente e
sujeitos a negociações ulteriores, os referidos limites. Com sobeja razão e perfeita clareza assim
comentava Palmela
a atitude, pouco tranqüilizadora para uma solução final, do governo francês:399
"Or si le gouvernement françois met un telle tenacité à se refuser à Ia
fixation des points cardinaux des limites dans le moment ou il a un grand intérêt à
rentrer em possession de Cayenne; que peut-on attendre de lui à cet égard lorsque le Portugal
s’en será dessaisi? La consé-quence evidente será ou qu’il faudra subir à peu près Ia loi que Ia
France dictera à ce
sujet, ou que pour le moins l’on ne pourra rien fixer, et que les frontières resteront
indécises jusqu’a ce que quelque autre guerre presente de nouveau à 1’une ou à
Pautre puissance des chances avantageuses à cet égard: mais quelles chances plus avantageuses peut
jamais espérer le Portugal que celles que ont termine Ia dernière guerre,
Parmée portu-gaise
se trouvant alors au centre de Ia France et sa majesté três fidéle en possession de Cayenne qu’elle ne
doit rendre d’après les traités que mo-yennant un arrangement définitif de
limites sous Ia puissante mediation de sa
majesté britannique?"
Concluía Palmela por pedir, como um sine qua non do ajuste em negociação entre a embaixada de
Paris e a chancelaria francesa que "les points cardinaux des limites entre les
deux Guyannes soient fixes définitivement avant Ia remise, sauf à laisser ensuite aux commissaires
le travail d’accom-plir Ia
délimitation".
Quando Wellington foi a Paris em 1817, procurou Brito
interessá-lo na
questão e valer-se da sua influência junto ao governo dos Bourbons, mas debalde, insistindo a França
na entrega pura e simples da sua colônia conquistada e aconselhando o embaixador sir Charles
Stuart a transigência,
por ser no seu entender preferível para o representante português assinar um convênio menos vantajoso,
melhor dito desvantajoso, do que correr a responsabilidade de por culpa dele arrebatar a
França pela força a possessão.
Nestes termos oficiava de Paris sir Charles Stuart a lord Cas-tlereagh,4110
reclamando mesmo no sentido referido o apoio de Palmela, o qual se escusava todavia de dar
conselhos ou de querer pesar com o seu parecer
sobre a deliberação do colega.
Brito já se contentava a esse tempo com a determinação
precisa dos graus de longitude e de
latitude em que demora o Oiapoque do tratado de
Utrecht, a fim de se traçar a paralela provisória que a exploração de marcadora tornaria definitiva, concretizando-a e
dando-lhe expressão geográfica. A
França contudo continuava a esquivar-se ao compromisso e a reclamar Caiena:
conforme escrevia Palmela ao sub-secretário britânico dos Negócios Estrangeiros Hamilton,401
"pour renouveler ensuite les pré-tentions
et les envahissemens successifs qui ont eu lieu depuis le traité d’Utrecht". E ajuntava sobre a designação do
Vicente Pinzon da interpretação
portuguesa: "Mais au moins est-il-juste que Ia fixation provisoire de ces mêmes limites soit faite de manière qu’on
puisse Ia comprendre ei ne donne pas lieu au contraire à d’immédiates
contestation."
Ao Rio de Janeiro ia ter a ressaca da discussão em Paris e Londres. Maler402 queixava-se
a Barca de que continuasse, apesar das ordens reais, sem ser levantado o seqüestro
sobre as propriedades de franceses ausentes da Guiana, e reclamava tratamento igual ao prometido
àqueles para as propriedades
vendidas depois de seqüestradas, tendo a importância sido arrecadada pelos cofres reais.
Respondia Barca,403 simulando inocência, que pensava, em vista das
ordens reiteradas nesse sentido, que o seqüestro já houvesse sido levantado.
"Quanto à pretensão — ajuntava — de incluir no mesmo
rol as propriedades
alienadas, o abaixo assinado deve fazer-lhe observar que não é possível levantar seqüestro de
propriedades que não possuem existência seqüestrada pela simples razão de terem sido vendidas,
havendo apenas para sua reivindicação um único processo legítimo, que é o da
reclamação. Como, porém, as reclamações dos súditos das duas coroas são recíprocas e deverão ser sujeitas ao
exame e liquidação de uma comissão especial
logo que for assinado e ratificado por ambas as cortes o tratado de 20 de novembro de 1815 com as convenções
anexas, não é admissível, quer tomar
um conhecimento antecipado desta reclamação sobre as propriedades vendidas, quer afastar-se das
formalidades prescritas pela convenção de 20 de novembro acima
mencionada."
Sobre a restituição da Guiana, assegurava Barca a Maler404
que ninguém tinha mais pressa do que ele em ver terminado o negócio, porquanto carecia mesmo do intendente de
Caiena, Severiano Maciel, para serviço no Pará, onde o bispo diocesano, como administrador
provisório, estava
fazendo tolices, o que era sumamente perigoso depois do funesto exemplo de Pernambuco. Referindo-se
na mesma ocasião aos desaguizados de Brito em Paris, sobre o seu caráter
diplomático, emitia Barca um conceito que, avidamente recolhido por Maler e
parecendo conter uma observação apreciável de fato nada queria dizer e não passava do
que Maler deveria chamar uma boutade: "Je ne vous découvrirai pas
une chose qui soit un secret
pour vous, et c’est qu’avec Ia composition de nos bureaux, on ne doit s’etonner de rien."
Maler ficou certamente na mesma, mas achou útil reproduzir o dito do ministro dos Negócios Estrangeiros.
A convenção particular para a restituição da Guiana até o
rio Oiapoque, entre
os graus 4? e 5? de latitude norte, com obrigação para as duas partes de proceder à fixação dos
limites definitivos, fez-se afinal em Paris. Assinaram-na a 28 de agosto de 1817 os plenipotenciários portugueses marquês de Marialva, de regresso de
Viena, e Francisco José Maria de Brito. Consta ela de cinco artigos, contendo o disposto no
artigo CVII do Ato Geral do Congresso de Viena e mais a entrega ao rei cristianíssimo
das fortalezas,
armazéns e petrechos militares, e a obrigação para o governo francês de
transportar para o Pará e Pernambuco, nos navios que fossem empregados no transporte das
tropas francesas para Caiena, a guarnição portuguesa da Guiana e os funcionários civis com toda a
sua bagagem.
A restituição só teve lugar depois de remetida para Caiena pela lega-ção portuguesa em Paris a carta
régia que a autorizava. Tanto o governador militar como o intendente se achavam prevenidos disso
pelo aviso direto
do marquês de Aguiar de 17 de setembro de 1815 e pelo ofício dos
plenipotenciários portugueses ao Congresso de Viena de 8 de setembro do mesmo ano. Recomendavam-lhes
estes de sustarem qualquer entrega aos comissários franceses, ainda que munidos
de plenos poderes expedidos em data posterior à real determinação da restituição, porquanto se acabava de estipular em Viena um
novo ajuste relativo à Guiana Francesa.
"Julgamos, pois, do nosso dever — escreviam Palmela e Lobo da Silveira —, tendo por uma parte em
vista do serviço de Sua Alteza Real e os interesses de sua coroa, e pela outra a dificuldade
das comunicações entre o Rio de Janeiro e Caiena, de pôr a V. S. de acordo sobre este importante
assunto, recomendando-lhe muito particularmente de não proceder à entrega dessa colônia ao
comissário ou comissários franceses, que aí hajam de se apresentar para esse efeito, antes de
receber novas ordens do príncipe regente, Nosso Senhor, passadas já depois de
haverem chegado ao
seu real conhecimento os sobreditos novos ajustes, ou, na falta daquelas reais ordens, antes de V. S. receber as convenientes
participações transmitidas por nós ou pelo embaixador, ministro ou encarregado
de negócios da
mesma corte, residente na de Paris, que certifiquem a V. S. de ter sido já concluída a
convenção particular acima mencionada, da qual essencialmente depende a
restituição dessa colônia a S.M. el-rei Luiz XVIII.405
Antes, contudo, da restituição e
mesmo de assinada a convenção, no mês de setembro de 1816, mandara o governo do Rio ordem
ao intendente geral,
Severiano Maciel, para ser levantado o seqüestro imposto sobre os bens dos franceses que, não
querendo sujeitar-se ao domínio português, tinham ido residir ou continuaram a
residir em país inimigo. Havia principalmente determinado esse seqüestro a
necessidade para a administração local de manter os estabelecimentos públicos da possessão, sem querer o novo governo, que se
considerava mais depositário do que senhor da terra, lançar outros tributos,
que outrossim descontentariam os colonos
residentes.
Uma vez de posse de Caiena, deixou a França de ter
pressas na questão
e antes pretendeu adiar a fixação dos limites definitivos das duas Guianas, o que comprova a boa razão
da diplomacia portuguesa em ter querido regular simultaneamente e de vez os dois assuntos.
Anteriormente solicitara
o governo de Paris que fossem por parte de Portugal nomeados os comissários para procederem à
delimitação no terreno, mas prontamente entrou
a recuar e postergar sua obrigação.
"A prosperidade interna e a tranqüilidade da
colônia tornam-se o objetivo capital a atingir, e, pelo fato de se acharem
todos os seus estabelecimentos principais situados para o lado de Caiena, aparece menos urgente no atual momento a fixação dos
seus limites definitivos. Podereis, portanto, não dar seguimento aos primeiros passos dados
para resolver a corte
do Brasil a nomear os comissários que devem ocupar-se de tal demarcação. Temos, de resto, outros
interesses mais importantes que regular hoje com essa potência. É útil à manutenção da
tranqüilidade geral que as desavenças entre Espanha e Portugal possam ser suavizadas, e convém que semelhante negócio [de
Montevidéu] se arranje primeiro que tudo.’*406
Quando Maler recebeu estas instruções evasivas, já estavam, no entanto, nomeados os três
comissários portugueses para a delimitação, dos quais um era o governador militar Manoel Marques,
sendo o intendente João
Severiano Maciel da Costa mandado considerar agregado à comissão. Verdade é que, conforme
respondia o encarregado de negócios de França,407 "desde esse ato da nomeação o
ministério não mais se ocupou da matéria e estou certo de que não se cogita da
partida dos comissários, sobre a qual me
hei de abster de falar segundo V.
Excia. deseja…"
O que parece manifesto e resulta da correspondência do bem informado agente francês no Rio é que
a convenção Brito-Marialva-Richelieu não foi acolhida com satisfação por Dom João VI, nem sobretudo pelo ministro
Bezerra, o qual pouco depois expirava de uma apoplexia, e naquela ocasião deixou menos
dissimuladamente ver o seu desprazer. O que a corte portuguesa teria querido, jseria ver arrastar-se
ainda mais a negociação que Brito tão inteligentemente prolongou e acabar o
Brasil, já que era
devolvida Caiena, por assegurar-se pelo menos cabal e definitivamente, sem sombra mais de incerteza,
a fronteira de fundamento histórico e de aspiração tradicional que, resolvida em tese, de fato
ia ser por longos anos
entregue às divergências, chicanas e ambições de comissários, diplomatas e governos, permitindo um
estado de dúvidas, receios e atritos que durou até o limiar do século XX. Na redação do Ato do Congresso
de Viena e da
convenção de Paris, corroborando o teor do tratado de Utrecht, iria contudo o árbitro — e nenhum
árbitro honesto poderia proceder diversamente — basear a sentença que justificou a antiga
pretensão portuguesa,
herdada e mantida pelo Brasil. A questão da Guiana estava ganha desde então, por D. Luiz da
Cunha, Palmela e Brito, antes que a expusesse luminosamente Joaquim Caetano da Silva e a defendesse
superiormente o barão do Rio Branco.
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