A LENDA DE SUMÉ – Índios Guaiás

A LENDA DO SUMÉ

Dentre as numerosas nações selvagens que ocupavam o território goiano antes das invasões paulistas, a mais dócil e inteligente, a que menos mal fazia e menores pretensões de mando tinha naqueles remotos sertões, era a dos Goiás, que, no entanto, não deixava de ser temida pelas outras do mesmo território — mais numerosas e aguerridas como eram as do Xavantes, Coroados, Canoeiros e Caiapós.

Os Goiás veneravam a um ser benéfico que chamavam de Sumé, ao qual atribuíam sua colocação naquelas paragens, onde os reunira e educara para a vida nas aldeias, constituindo-se em primeiro chefe que teve essa nação.

Contam que Sumé — lenda que ainda hoje corre em Goiás passando de boca em boca com ligeiras variantes — indo um dia visitar a sepultura de sua mulher no alto da serra do Arari (serra Dourada), aparecera-lhe e sem saber como um velho pajé da tribu Caiapó, que assim lhe falou:

— Sumé, teus dias estão contados: urge que tomes as tuas últimas disposições, garantindo o futuro da tua nação. Velho e prestes a fazer a viagem que todos fazem para as terras além das montanhas azuis, não poderás por certo, por ti só, conjurar o perigo que a ameaça. Acabo de ver, da minha gruta do deserto, a caminho do ponto em que o sol morre, um bando de homens brancos e barbados, uns a pé outros montados em grandes animais possantes e que parece os compreender, pois se movem à sua vontade, obe-decendo-lhes cegamente.

Em sua marcha, esses entes misteriosos vão devastando as nossas florestas e campos, incendiando as tabas que encontram, matam com o trovão que está ao serviço deles aos que lhes ousam resistir para não se tornarem seus escravos e perseguem mesmo aos que tentam fugir, atiçando contra eles uns animais ferozes, muito corredores, que os alcançam e dilaceram.

Já passaram pelas terras dos Xavantes, dos Caiapós, e a esta hora devem estar pelas dos Araés, que unidos àqueles estão resolvidos a repeli-los com todas as forças, não obstante suporem-nos dirigidos pelo próprio Anhã, grande gênio do mal que dirige Tupã e os Anhangás. É natural, portanto, que apareçam também por estas terras e, como o mal será comum convém que em comum sejam os esforços de todos para a repulsa completa desses entes daninhos que pretendem nos escravizar, roubando-nos a liberdade e independência.

E dizendo isto desapareceu do mesmo modo como viera, deixando Sumé mergulhado na mais profunda meditação pelo que acabara de ouvir; regressando à sua taba que ficava nas fraldas da serra de Arari, à margem do Cambuva (hoje rio Vermelho), reuniu logo depois os chefes das aldeias da sua nação, referindo-lhes tudo quanto ouviu do pajé, e fazendo-lhes ver diante de semelhante fato, que realmente era grave; entendia entretanto, que os Goiás deviam se manter na mais estrita defensiva, procedendo no assunto conforme lhes conviesse na ocasião, sem se aliarem com Qualquer outra nação para esse fim. Que dizia isso porque* não confiava nos Caiapós e nos Xavantes, alé porque tais revelações, do pajé, bem podiam não passar de um embuste urdido pelos chefes daquelas nações para atirá-lo contra esses entes poderosos e depois se servirem desse pretexto para se unirem com os mesmos e conseguirem assim o que tanto desejavam, isto é, a conquista e terras de Goiás. Que se semelhante invasão se desse enquanto êle fosse vivo, seria essa atitude, acrescentando que até procuraria recebê-los em suas terras, mais como amigos do que como estranhos, pois, já os vira em outras terras, e bem os conhecia. Que, finalmente, desejava que qualquer que fosse o chefe na ocasião dirigindo os seus, procedesse de igual modo, por isso que a estes convinha mais a amizade desses homens relativamente superiores e mais adiantados que a dos Xavantes e Caiapós e outros vizinhos ambiciosos e falsos.

Tempos depois morreu este velho cacique dos Goiás, recomendando sempre aos seus a observância daquelas disposições; e Apu, seu filho, que o substituiu, prometeu cumpri-las inteiramente. Bem depressa, porém, se esqueceu do prometido a seu pai, não só naquele sentido como no seu casamento com Aruiara, filha do valente chefe Jara-guaí de sua nação.

Os Xavantes e Caiapós, conhecendo bem o caráter e qualidades do novo chefe dos Goiás, que era um guapo rapaz, valente e destemido, mas, sem experiências na arte dé governar, além disso algum tanto efeminado e caído pelas mulheres, julgaram oportuno, ao saberem da morte de Sumé e elevação de Apu, mandar a este uma embaixada, solicitando a sua adesão à causa pela qual pugnavam, juntamente com os Araés. Foi escolhido para chefe dessa embaixada o velho e valente Mucunã, cacique Caiapó, que além de grande séquito, levava em sua companhia a gentil e formosa Ipoã, hospedando-se todos na taba de Apu, que os recebeu condigna e carinhosamente.

Ipoã, que era uma morenita de olhos pretos, grandes e tentadores, bem feita de corpo, airosa e engraçada, possuía igualmente maneiras distintas, que realçavam com seu sorriso e modos atraentes, que cativavam a todos que dela se aproximavam. Não causou pois admiração a ninguém a atitude de Apu, diante da linda jovem caiapó, pela qual se enfeitiçara.

Daí ao casamento de ambos foi questão de tempo e do casamento à solução favorável que obteve Mucunã na missão de que fora incumbido, a consequência lógica foi essa, não obstante a opinião unânime em contrário de todos os Goiás que reclamavam a observância do compromisso tomado com Sumé.

Apu, cego pela paixão que tinha por Ipoã, se esquecera de tudo, satisfazendo a todas as exigências desta e de seu pai; celebrou-se prontamente seu casamento com Ipoã, e resolvida ficou a entrada dos Goiás para a aliança contra os misteriosos estrangeiros que invadiam o país, devendo os de sua nação fornecer logo um contingente poderoso para reforço das forças da aliança. Aruiara, porém, ofendida no seu amor próprio pela realização desse casamento, soube aproveitar do descontentamento geral dos Goiás, para revoltá-los contra Apu, e no dia marcado para a partida desse reforço que devia acompanhar Mucunã, apresentou-se à frente dos guerreiros exprobrando o procedimen’o de Apu e concitando os seus a vingá-la.

Não foi preciso mais outro qualquer incentivo: os guerreiros Goiás conduzidos por Jaraguaí marcham contra a aldeia do Arari, onde se achavam Apu e Mucunã, atacam–no, matam Apu, que ousadamente resiste à frente de poucos; colocam no governo da nação Goiá — um outro filho de Sumé. Mucunã, vendo morto Apu, logrou fugir com seu séquito e Ipoã; e Goiá, de posse do governo desfez tudo que praticara o irmão de encontro à vontade expressa de seu pai, e até se casou com Aruiara.

Pouco depois que se deram essas ocorrências, entre os Goiás, apareciam os paulistas invadindo as terras dos Xavantes e Caiapós. Estes íncolas e os Araés, sempre unidos, procuram repeli-los, lançando mão de todos os recurscs para esse fim, e nada conseguindo, porque nem ao menos puderam evitar que .tais invasores chegassem às terras dos Goiás, onde foram recebidos por Goiá até com festas e com eles estabelecendo uma aliança permanente contra as demais nações indígenas daquele território.

Estavam satisfeitas as predições de Sumé, mas os fatos foram que não corresponderam às suas previsões. O procedimento dos Goiás trouxe como consequência a conquista e colonização das terras que ocupavam essas nações selvagens, sendo eles próprios as primeiras vítimas desses ousados aventureiros, desaparecendo por completo na mais cruel escravidão, e não tendo em ao menos o consolo de morrerem com as armas na mão a combaterem pela liberdade e independência do seu país, como os Xavantes, Coroados, Carajás, Canoeiros, Javaés e outros: Ingloriamente e sob o azorrague do conquistador ambicioso extinguiram-se nas suas próprias terras nos trabalhos das minas, aos quais não eram afeitos.

Hoje, dessa generosa nação que tão grandes serviços prestou aos invasores, restam tão somente a lembrança de suas desditas e o nome que legou ao grande território encravado entre os rios Paranaiba, Tocantins e Araguaia, e isto mesmo deturpado de Goiá ou Goiáses para Goiás.

Os Caiapós sempre ousados, altivos e heróicos, vendo com os Araés, seus aliados, que os esforços que empregavam contra os invasores de suas terras eram inúteis, abandonaram-nas, e retiraram-se para as brenhas de além Araguaia e rio das Mortes, donde em sortidas mais ou menos frequentes, fazem ainda toda a guerra que podem aos brancos, como chamam eles aos paulistas e seus descendentes; jamais submetendo-se a estes, ou prestando-se à catequese, apesar dos esforços feitos nesse sentido em diversas épocas para chamá-los à civilização. O procedimento do bom Goiá, deixando de hostilizar os brancos quando entre os seus estiveram de outra vez, recebendo-os em suas tabas e até com festas e outras demonstrações amistosas, agazalhando e permitindo mesmo que eles deixassem entre os seus alguns dos companheiros, que solicitaram ficar, quando regressaram, provocou contra êle o ódio e a guerra dos Caiapós e Coroados, seus inimigos.

Logo após a retirada dos brancos, Mucunã e Japuri, este chefe dos Coroados, e aquele, dos Caiapós, vieram entender-se com Goiá, fazendo-lhe sentir a inconveniência do seu procedimento para com os brancos, exortando-o à guerra contra os mesmos, e intimando-o a expulsar de suas terras aos que nela ficaram, sob pena de guerra de extermínio se a isso não anuísse.

Goiá, como era de esperar, repeliu energicamente semelhante afronta, mandou pô-los fora de suas terras, e não deu assim ouvidos às suas imposições, tendo por isso de aceitar a guerra com que eles o ameaçavam.

Diante deste fato começaram todos a se preparar para a luta que parecia formidável, pois que de um lado estavam os Goiás, nação poderosa e grande, e que, além disso, contava com o auxílio dos brancos que viviam entre eles, e que pelo armamento que usavam infundiam certo terror; de outro lado os Caiapós e Coroados, que eram também poderosos e, além disso, aguerridos e ardilosos, lançando mão de todos os meios para conseguirem seus fins.

O auxílio poderoso dos brancos com que os Goiás contavam não passou despercebido dos Caiapós e Coroados, que por isso trataram logo de procurar um meio de tirar essa força aos Goiás; e para esse fim, por meio de intrigas e promessas, tentaram corromper alguns chefes Goiás que souberam repelir semelhante tentativa. Acontece, porém, morrer Amburá, o valente chefe da taba dos Ferreiros, sendo designado para substituí-lo nessa chefia um tapuia em quem Goiá depositava muita confiança e que se chamava Camarequê. Este tapuia, no entanto, era inimigo oculto de Goiá, por ter êle se casado com Aruara, com a qual pretendia fazer o mesmo se ela não tivesse se esquecido das promessas que lhe havia feito nesse sentido, preferindo depois Goiá a êle. Ambicioso e vingativo, aguardava portanto a ocasião para se vingar de ambos; e esta afinal se lhe deparou, entrando em negociações secretas com os Caiapós e Coroados que, conhecedores daquele fato e, sobretudo, do seu caráter ambicioso, propuseram-lhe o casamento com Ipoã, filha de Mucunã e também a chefia geral dos Goiás caso êle os ajudasse na guerra que iam levar a Goiá, encarregando-se de revoltar sua taba em ocasião ajustada, e matar aquele e igualmente os principais chefes, inclusive os brancos que ali viviam.

Aceita a proposta por Camarequê, os Caiapós e Coroados combinaram com êle a execução do plano tenebroso, e em uma noite escura e tempestuosa, quando todos dormiam tranquilos em suas ocas, o infame chefe da taba dos Ferreiros, acompanhado de um pequeno grupo que conseguiu aliciar entre os seus, aproveitando-se da estada de Goiá na sua taba, para onde o atraíra manhosamente com seus apaniguados no aposento èm que êle dormia, matou-o covardemente, como a todos que ali encontrara.

Era seguida dirigiu-se ao arraial dos brancos, fazendo o mesmo aos que lá achou e incendiando seus ranchos; a revolta assim explodia propagando-se por toda a parte, sendo presos e perseguidos os que ousaram fazer qualquer resistência.

Dos brancos apenas escapou das garras de Camarequê o que era muito valente e conhecido por Pedro Juraci, e isso porque nessa noite terrível não se achava no arraial com seus companheiros, e sim na taba do Arari, onde fora a passeio com alguns amigos.

Ao mesmo tempo que tais coisas se passavam, os Caiapós e Coroados que se achavam convenientemente emboscados nas circunvizinhanças dos Ferreiros e do Arari, a um sinal feito e anteriormente combinado com os revoltosos, caíram de improviso e simultaneamente sobre ambas as tabas, apoderando-se delas e subjugando inteiramente os Goiás, que surpreendidos e amedrontados nem puderam lançar mão das armas para se defenderem.

Foi um desastre horrível, porque os que não foram mortos ficaram prisioneiros dos inimigos e por eles escravizados, estando infelizmente no número destes a desditosa Aruiara, que foi conduzida amarrada como escrava de Ipoã, que isso exigira; poucos, bem poucos foram os que lograram a salvação, fugindo para os recônditos das serras e matarias vizinhas.

Camarequê foi elevado, como ambicionava, à alta dignidade de chefe dos Goiás, nomeou a seu filho Apurinã para chefe da taba dos Ferreiros, passando a residir na de Arari, e desposou Ipoã, que veio para seu poder acompanhada de muitos guerreiros caiapós, que eram de fato os que passaram a governar os Goiás com a força de que dispunham.

Passados alguns anos de triste submissão, os Goiás, vivendo no mais duro cativeiro, sem esperanças de uma reação por parte de Camarequê, começaram a sair do torpor em que jaziam para recobrarem a sua independência; e assim, na impossibilidade de reagirem à mão armada contra os seus opressores por causa dos Caiapós e Coroados que os vigiavam em suas tabas, procuraram na fuga a liberdade que tinham perdido.

Não havia um só dia em que pelas serras e florestas vizinhas, não tivessem eles o prazer de ver progressivamente o aumento que iam tendo as suas fileiras com mais um amigo de Goiá, sedento de vingança e liberdade, pronto mesmo a todos os sacrifícios para conseguir esse almejado fim. E assim caminhavam as coisas num crescendo prometedor de dias mais felizes, sem contudo cuidarem de dar uma direção mais conveniente aos elementos que já possuíam para a consecução do que tanto desejavam. Um incidente inesperado, porém, arrancou-os desse torpor em que viviam; em um belo dia, entre muitos goiás que os procuravam no seu refúgio veio a gentil e formosa Aruiara com o corpo todo coberto de cicatrizes, com os cabelos cortados, chorando e pedindo vingança dos ultrajes e sevícias de que foi vítima por parte de Ipoã, a cujo serviço se achava como escrava, e de que só pôde se livrar com a fuga, graças a compaixão que por ela teve um goiá, também escravo, que muito a auxiliou para isso como vigia que era de sua pessoa, prestando-se a guiá-la ao lugar em que os seus se achavam. Este fato que a todos contristou e revoltou com indignação, serviu entretanto, de incentivo para a reação que os Goiás tratavam de levar a efeito, combinando os seus comuns esforços nesse sentido; os elementos de que dispunham foram organizados convenientemente e assim, dentro de pouco tempo ficaram prontos para na primeira oportunidade que se desse, atacarem Camarequê, e os seus, vingando a morte de Goiá e dos brancos, como também os ultrajes feitos a Aruiára.

Essa oportunidade que tardou bastante, afinal sempre se lhes deparou com a notícia que lhes dera um fugitivo. Disse este, que os Caiapós e os Coroados que protegiam e garantiam a autoridade de Camarequê entre os Goiás, devido talvez ao reaparecimento dos brancos nas suas terras, fizeram retirar todos os guerreiros seus que se achavam nas tabas dos Goiás, deixando assim Camarequê entregue aos seus poucos amigos; e que em consequência desse fato os Goiás que ainda lá se achavam conspiravam para a deposição de Camarequê, contando para esse fim com o concurso dos fugitivos, com os quais procuravam entrar em acordo. À vista desta notícia foram ao encontro desses amigos, procuraram entrar em combinação secreta com eles, e conseguiram preparar tudo para um assalto à taba em que se achava Camarequê.

E assim, antes que a passarada da floresta saudasse o dia com seus trinados e despertasse os traidores, foi ouvido três vezes o piado estridente da canã, e, ato contínuo, caíram de surpresa sobre a taba, incendiando-a e exterminando a todos que nela encontraram, desde que não correspondiam ao sinal previamente ajustado com os conspiradores. O traidor e os seus nem tiveram tempo de se armarem para a resistência, sendo Camarequê morto logo no princípio da ação por um golpe de murucus que lhe arre-meçou Aruiara, quando, delirante, o procurava. O infame vinha em fuga com Ipoã, e morreu mesmo nos braços desta, pedindo à Aruiara que a poupasse, mas Ipoã replicava que não, que queria morrer também, e portanto a matasse igualmente com seu marido, cujo cadáver deixou cair dos seus braços.

Foi então que se deu uma cena assaz tocante entre as duas antagonistas. Aruiara, pisando o cadáver de Cama-requê, diz a Ipoã: — Digna filha do valente Mucunã, desculpai este excesso a que sou levada pelo ódio que voto a este miserável que para vos possuir, não duvidou trair os seus, nem vacilou de se prestar infame e covardemente a ser o assassino do seu chefe e benfeitor, atirando-me na mais dura e negra escravidão, juntamente com a nação que pertencíamos. Eu sou, pois, a vingança que veio cumprir o seu dever, e essa vingança não pode se estender à esposa leal e dedicada que, se culpa tem, é a de ter consagrado o seu amor a um ente vil e abjeto que certo não era digno da filha de um valente Caiapó. Não me é dado nem lícito, portanto, fazer à vítima o mesmo que fiz ao algoz. Sois livre, e garanto-vos todo o respeito de que sois digna pelo vosso proceder; não devo matar-vos, pelo contrário, estenderei a mão de amiga àquela que bem merece ser lastimada pelo seu infortúnio, esquecendo-me completamente de quaisquer ressentimentos que porventura possa guardar no coração.

Ao ouvir isto, exclamou Ipoã, revoltada: — Tu abusas, Aruiara, da minha posição; eu não te pedi e nem aceito as tuas garantias: julgar-me-ia vilipendiada e indigna dos meus se assim o fizesse: Não quero saber o que, em tua opinião, fora Camarequê, a quem insultas depois de morto, tripudiando sobre seu cadáver: neste momento só vejo diante de mim esse cadáver querido e uma covarde assassina a desrespeitá-lo, ao mesmo tempo que procura fingir-se de generosa para aquela que o amava extremamente em vida, e saberá honrar a sua memória, orgulhando-se, não de ter sido a sua vítima, mas de ter tanto ou maior responsabilidade em tudo que ele praticou ou fez praticar quando vivo. Atiras-me essas afrontas porque, inerme, não as posso repelir, castigando devidamente à infame que se prevalece das circunstâncias para amesquinhar a sua vítima, que só sente não ter tido a felicidade de sucumbir ao lado do seu estremecido esposo para não estar passando agora por esta revoltante humilhação. Guarda, pois, a tua comiseração para os indivíduos da tua laia; quanto o mim, em vez dela, melhor seria forneceres-me uma arma qualquer para em duelo de morte desagravar-me da afronta que me lançaste em rosto, embora muito me.custe descer da minha posição para bater-me com uma covarde escrava fugida.

Aruiara não se pôde conter diante desta provocação: irritada, arremeçou para um lado o mucurus ainda tinto de sangue que empunhava, como para mostrar que queria ficar em igualdade de condições e avançou furiosa para Ipoã à qual tenta agarrar e estrangular a pulso. Ipoã, porém, que tranquila observava os seus movimentos, fingia aguardá-la, mas, em momento oportuno, desvia-se facilmente de suas mãos, e apanhando-o mucurus que se achava junto ao cadáver de Camarequê, mata-a com um golpe certeiro, e em seguida, virando a arma contra si, cravou-a no coração, caindo inane sobre o cadáver do esposo, proferindo estas palavras: É assim que procede uma caiapó!

Com esse trágico acontecimento e desfecho alguns amigos de Camarequê, que ainda resistiam, submeteram-se incondicionalmente, os ânimos serenaram-se, e vingada ficou assim a nação dos Goiás, sendo Pedro Juraci, o mameluco paulista deixado pelo Anhangüera na aldeia dos Ferreiros, aclamado chefe da mesma. Como tal procurou prepará-la para resistir e repelir a qualquer agressão possível dos Caiapós e seus aliados, os quais clamavam vingança, não esquecendo o insucesso de seus planos e sobretudo a morte de Ipoã.

Certo é que, ou porque temessem a força dos Goiás, ou por outro motivo, a generosa nação nunca mais teve que defender-se de seus rancorosos inimigos; e assim foram vivendo em paz, melhorando suas tabas, cultivando suas terras, sem todavia deixarem de estar prontos e vigilantes para o que desse e viesse.

Coriam as coisas nesse pé quando, certo dia, uns índios que andavam caçando e procurando mel nos arredores da serra do Arari, e que haviam chegado até às vizinhanças das terras dos Carajás, vieram dar parte aos seus que uma índia Caiapó encontrada por eles naquelas alturas avisara-os que os de sua nação, juntamente com os Coroados e Carajás, tinham feito uma aliança para exterminar os Goiás, e nesse sentido preparavam-se, parecendo-lhe até que os Carajás já se achavam em marcha de guerra, pois que, vira há dias. seguindo em sentido contrário à corrente dos Ferreiros, uma multidão de guerreiros, que naturalmente não eram dessa nação.

Pedro Juraci não ligou muito apreço a este aviso, por julgá-lo mui vago, sem fundamentos, pois não podia acreditar, além disso, na aliança dos Carajás, .que eram mais amigos dos Goiás do que dos Caiapos, e depois, dificilmente se abalançavam a deixar as margens do Araguaia; mas, dias depois, um outro índio que também andava caçando na serra do Arari, veio dizer-lhe que do alto da mesma serra avistava-se muito ao longe um numeroso bando de índios que marchavam vagarosamente na direção da serra.

Esta notícia pareceu-lhe mais séria; levou-o a ir em pessoa verificá-la, e chegando ao Arari não conseguiu avistar mais nada, naturalmente porque tal bando se internara nas matas próximas, as quais as colunas de fumaça que se levantavam em vários pontos, bem indicavam essa circunstância.

Na dúvida portanto de serem inimigos, os que se aproximavam, tratou Pedro Juraci de tomar as providências necessárias para evitar surpresas às suas tabas. Assim sendo, como era bastante desabrigada a sua posição dos Ferreiros, resolveu abandoná-la, destruindo tudo quanto nela existia; fez reforçar a caiçara da taba de Arari com fortes contingentes dirigidos pelo chefe Uburitã, e com o resto dos Goiás seguiu para a posição que outrora ocuparam além da serra, tomando conta da bocaina que dá entrada nela.

Distribuindo assim seu pessoal, combinou com Uburitã que dirigia o Arari, para no caso do inimigo atacar aquela taba, opor-lhe, por todos os meios, séria e prolongada resistência para dar tempo a que fosse em seu auxílio, hosti-lizando-o pela retaguarda e obrigando-o a abandonar o campo; e no caso de ser sua posição atacada, seria ele quem devia ter tal procedimento, auxiliando a defesa do posto, o que faria a todo transe.

Combinara mais, que para esse fim deviam manter bandos de exploradores que observassem as intensões do inimigo, no caso de reconhecerem sua disposição de estabelecer no lugar da antiga taba dos Ferreiros, ou outro qualquer da vizinhança, demonstrar hostilidade alguma, fariam um ataque simultâneo à posição que ocupasse, procurando desalojá-lo.

Estavam nessa anciosa expectativa da chegada do inimigo previsto, que ameaçava ocupar a taba dos Ferreiros. Destarte, os Goiás tinham, consoante combinação prévia, de levar a efeito o ataque simultâneo a essa posição e preparavam-se para esse fim quando outro dos seus exploradores veio dizer a Juraci que, entre as gentes que se achavam nos Ferreiros, viu muitos brancos, barbados, com trajes idênticos aos que usavam os outros, que outrora ali estiveram e mais, ainda, uns individuos pretos, que andavam meio nus, a vigiarem uns animais grandes, que pastavam nos arredores do acampamento.

A vista desta informação ao chefe dos Goiás que não eram nem os Caiapós, nem os Coroados, nem os Carajás os inimigos que ali estavam, e sim os mesmos outros iguais aos que lá estiveram com o grande Anhangüera, cuja volta àquelas paragens, esperavam.

O cacique dos Goiás transmitiu essa tão auspiciosa nova aos seus, e o regosijo foi geral no acampamento. Em seguida mandou sustar o ataque que tencionavam levar a efeito, e, só, inteiramente desarmado, Pedro Juraci foi à presença do Anhangüera, para ainda uma vez, em nome dos Goiás, afirmar-lhe que os mesmos, sempre leais e dedicados, continuavam a ser seus amigos.

Ao alvorecer do dia, chegando às avançadas das forças paulistanas, o cacique Goiá a elas se apresentando, pediu permissão para falar aos chefes dos brancos de parte dos Goiás.

Concedida a permissão solicitada, com as cautelas do costume, Bueno, em sua tenda de campanha, e cercado dos principais chefes da bandeira, aguardou ali a vinda do tal índio. Daí a pouco, este, convenientemente escoltado e desarmado, apresenta-se ao chefe dos brancos; era um índio bastante idoso, trajava-se à moda dos chefes selvagens em dias de festa, tinha um porte sereno e respeitável, e caminhava de cabeça erguida e com desembaraço. Ao aproximar-se de Bueno, encarou-o com respeito e depois, curvan-do-se até quasi ao chão como sinal de cortesia e submissão, e ao que Bueno procurou corresponder com a gentileza e fidalguia que lhe eram peculiares, permitiu que o velho cacique falasse.

Bueno, que ouviu com atenção a narrativa do índio, ao vê-lo terminar, estendeu-lhe a mão de amigo e disse: — Que não era o Anhangüera, por que o tinha tratado, e sim o filho dele, tendo estado ali com seu pai quarenta anos passados; que as gentes que o acompanhavam, eram todas da mesma procedência daqueles que tão gratos eram aos Goiás pelo agasalho que lhes deram em tempo nas suas terras; e que, portanto, os de hoje saberiam imitar o procedimento dos de ontem, trazendo-lhe a paz e os benefícios de que eram dignos pela amizade demonstrada e serviços prestados a seu pai.

Exortava-o, pois, a voltar à floresta em que se achava com os seus, e a dizer a estes, que restabelecida estava a aliança de outrora, podendo por isso voltar às suas ferras e tabas, cuja posse lhes assegurava e garantia.

— Cumprirei as vossas ordens, retorquiu-lhe o índio; mas antes de o fazer, quero dar-vos uma boa notícia que me escapou na narrativa que fiz.

Refere-se ela a Pedro Ortiz de Camargo, ou por alcunha Pedro Juraci, o único dos nossos que escapou às garras de Camarequê.

Pedro, o amigo querido dos Goiás, ainda vive, se bem que velho e acabado; esquecido dos seus, que parecia terem-no abandonado nestes sertões entre os que eles chamam de selvagens, fez-se também selvagem, e como tal, diz desejar morrer. Estou porém certo, de que se êle aqui estivesse agora, a fitar, como eu, o filho de seu grande chefe, esquecer-se-ia de tudo, até de que se chama hoje Tapirapoã, para dar-lhe um abraço, como ora o faz…

E ambos os aventureiros cairam nos braços um do outro, chorando de satisfação.

Por este acontecimento tido como auspicioso em ambos os acampamentos, foram celebradas festas prolongadas, em que paulistas e indígenas se confraternizaram; mas um carai-bê-bê, passando à noite do último dia de festa no acampamento dos Goiás, vendo estes assim alegres e satisfeitos, a dançarem ao som das inúbias e borés, chamou a atenção deles para a côr escura que Jaçu (a lua) havia tomado na ocasião, e para os piados agourentos das corujas que não cessavam de esvoaçar por cima de suas cabeças…

Henrique Silva: Sumé e o Destino da Nação Goiás. Tipografia do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1910, pp. 7-51.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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