A MIRRA – Contos Etiológicos
Amirra é um corpo seco de homem que foi amaldiçoado. A terra não come a carne e esta vai ressecando em cima dos ossos.
Um rapaz muito vivo e engraçado entrou num cemitério com seus companheiros e ao sair viu uma mirra. Lembrou-se de dizer, por chiste:
— Está magra de fome. Venha dai cear comigo !
— Irei — disse a mirra, com uma voz fanhosa, toda passando pelo nariz. O rapaz ficou assombrado e foi dali lançar-se aos pés do vigário a quem tudo contou.
— Tens que cumprir o convite. Depois da ceia te convidará e aceitarás sem sinal de medo. Volta cá que te darei outro conselho.
O rapaz preparou a ceia e a mirra foi-lhe bater à porta à meia noite, sentando-se á mesa e comendo até não mais poder. Depois falou para o dono da casa:
— O bem que me recebeste em tua casa, devo retribuir de qualquer modo. Amanhã esperar-te-ei onde me convidaste.
E se foi embora. O rapaz não dormiu e pela manhã estava na casa do vigário que lhe deu um rosário índulgenciado, com o perdão da hora-da–morte e emprestou-lhe a capa com que saía.
O rapaz foi para o cemitério e encontrou a mirra.
— Está bem. Deixa a capa aqui e o rosârio de que não tens necessidade lá dentro.
— Não, que está frio e do rosário não me se paro!
A mirra teimou e o rapaz não cedeu. Estive ram debatendo esse ponto, quando a mirra declarou:
— Assim não te posso levar para cear comigo Não posso ficar junto da capa dos ministros de Deus e das armas de Nossa Senhora. Vai-te, e não tornes a brincar com os que não vivem…
O rapaz pôs-se fora o mais depressa que pode e nunca mais disse graças com os mortos.
Essa versão reforça uma opinião de Gustavo Barroso sobre o ciclo de dom Juan. A lenda, como a conhecemos e tem sido aproveitada em romance, teatro, poema e pintura, é uma con cordância de dois elementos independentes: a) a conquista de mulheres; b) o convidado do morto, caveira, estatua, etc. Esta historieta pertence ao segundo elemento, assim como A Mirrat que Teófilo Braga colheu no Algarve, e A es tatua que come, do Sardoal. (Gustavo Barroso Através dos Folk-lores, S. Paulo, sem data (1927), um thema de folk-lore na litteratura universal, 177-186). O grande folclorista brasileiro comentou La, legenda de D. Juan, Paris, 1911, de Gendarme de Bévotte, um recenseador da bibliografia donjuanina, opinando pelo origem do Don Juan na Andaluzia, dernier champs de bataille de deux races et de deux religions. O prof. Stith Thompson assim considerou igualmente, fixando no motivo C 13 do Motif-Index, the offended skull (statue), relativo ao convidado do pedra, festim de pedra, burlador de Sevilha, etc., ainda separando a refeição com o morto para o elemento E238, Dinner with the decid. Não há mais país europeu ou americano que não possua uma variante.
A caveira, insultada, vinga-se também, falando, conseguindo a morte do agressor ou sua punição. No Brasil, 1’crcira de Costa, Folklore Pernambucano, 99, na Á Trica, entre os Nupe, the talking skull, Leo Frobenius, seleção de Douglas C. Fox, Africam, Génesis, 1(51, New York, 1937, em Angola, em Mbaka, tht ytnmg man and the skull, XLV do Folk-Tales of Angola, de Heli Chateiam, Boston and New York, 1894. Nas duas versões que o prof. Espinosa registou na Espanha, em Deimiel (Ciudad Real) e Granada, El incrédulo y la calavera e El estudiante y la calavera, 79 e 80 do Cuentos Populares Españoles, 1, o convidado é uma caveira, comparecendo porém um cavaleiro. De ambas o rapaz escapa, assombrado e arrependido.
Na estátua que come, Teófilo Braga obtém um elo português na tradição do convidado de pedra. Aristóteles fala na estátua de Mitis, em Argos, que tombou sobre o assassino de quem representava, esmagando-o, La Poetique, cap. IX, 23, trad. de Ch. Emile Ruelle, Paris. Em Lisboa, no ano de 1610, um clérigo obteve a proibição de s. Jorge acompanhar a procissão de Corpus Christi instalado num cavalo. Ante os protestos do povo, o bispo dom Miguel de Castro autorizou a inclusão do santo mas este não perdoou ao intrigante. Ê tradição que, no domingo imediato, quando o clérigo que levara o Prelado a decretar a proibição dizia missa no altar de S. Jorge, caiu ao Santo a lança e feriu-o na cabeça! Jaime Lopes Dias, Festas e Divertimentos da Cidade de Lisboa, p. 22-23, Lisboa, 1940. (Câmara Cascudo)
Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora, 1944.
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