A REGÊNCIA ESPANHOLA – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPÍTULO
VIII

A REGÊNCIA ESPANHOLA

Na Península Ibérica, ou com mais
propriedade no cantinho a su­doeste onde se havia refugiado, longe do fragor
das armas francesas e in­glesas, a soberania nacional, agitaram-se pelas causas
as mesmas influên­cias durante todo o tempo em que na América se urdiam as
intrigas plati­nas. Dona Carlota aspirava à regência da Espanha, como fonte de
poder para os seus domínios ultramarinos; Palmela, representando a corte bra­sileira
e o jogo de Linhares, secundava as ambições da princesa, de acor­do com os
interesses nacionais; a Inglaterra, pela voz de Wellesley, guer­reava os
projetos da Infanta e contrariava as vistas do governo português.

Este bem conhecia que em Londres
se encontrava o empecilho mais sério à execução dos seus planos. Em sua
correspondência oficial, já aos 23 de julho de 1810, o ministro americano no
Brasil, Thomas Sumter, atri­buía à falta de animação por parte do gabinete
britânico o abandono das pretensões de Dona Carlota Joaquina, quando sem
vacilar aventava que a corte portuguesa desejava, tanto por motivos de boa
política como de orgulho nacional, recobrar a fronteira do rio da Prata. No que
ele se en­ganava era em imaginar que o governo do príncipe regente, tão
completa­mente inteirado da orientação britânica na matéria, encarasse a
ingênua hipótese de solicitar a Inglaterra a auxiliá-lo no ultimar pacificamente
em seu benefício a empresa em questão, que o representante da administra­ção de
Madison julgava com razão favorecida por uma circunstância tal como a antipatia
entre Montevidéu e Buenos Aires.

Esta antipatia lhe
parecia contudo mais superficial do que profunda e, desconfiando como todo
americano de então da sua antiga metrópole, não se lhe afigurava por contra
fácil prognosticar infalivelmente os desíg­nios da Grã-Bretanha sobre as
colônias hispano-americanas, caso assu­misse a direção destas"’ pela
provada incapacidade da Espanha e os estorvos levantados à ação portuguesa no
rio da Prata. Não se furtou no entanto a corte do Rio a tentar converter o
gabinete de Saint James à sua política no tocante à regência espanhola, o que
até certo ponto equivalia à regulação da fronteira do Prata.

A
nota de 30 de abril de 1810, do cavalheiro de Souza Coutinho ao marquês de
Wellesley, ministro dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha, assim colocava o
problema da candidatura: "L’accord intime des portu­gais et des espagnols
avec la Grande Bretagne est indispensable au succès de cette grande cause, qui
promet à la Peninsule le rare privilège d’être, à l’avenir, la seule partie du
continent exemte de la tyrannie française, et il semble que cet accord ne
pourrait guères être plus solidement maintenu que lorsque l’on verrait à la
tête de la regence d’Espagne une princesse qui, à ses droits eventuels de
succession au throne d’Espagne, joint les avan­tages d’avoir été élevée en
Portugal et d’avoir acquis, à l’ecole de Son Au­guste Epoux, les moyens de
cherir et d’apprecier l’alliance de la Grande Bretagne; une princesse qui se trouverait, par consequent, depouillée de tous ces
anciens prejugés contraires au commerce, reciproquement avan­tageux, des sujets
britanniques avec les diferentes parties de la monarchie espagnole, dont une
politique, retrecie dans ses calculs, parait avoir, namment retardé
l’etablissement." "224

Não
deixava a nota de encarar, como o devia fazer por tratar-se do maior obstáculo
talvez, pelo lado castelhano, à realização das pretensões de governo da
princesa do Brasil, a hipótese da reunião no futuro das co­roas peninsulares
sobre uma só cabeça. D. Domingos abordava nestes ter­mos a dificuldade:"Il
semble qu’il ne serait pas difficile de prevoir le cas possible de la reunion
des deux monarchies en une seule tête, et de regler d’avance ce qui
conviendrait pour fixer la succession aux deux thrones de Portugal et
d’Espagne, soit dans la même ligue, ou dans deux ligues colla­terales… Bien
des personnes ont pensé en Europe et au Brésil qu’un tel arrangement serait
fort à desirer et qu’il pourrait être sujet d’un traité à faire en Espagne
entre le plenipotentiaire de S. A. R. d’une part, et le gou

vernement espagnol
de l’autre sous la garantie immediate de la Grande Bretagne."

É
evidente que todos estes arranjos propostos ou tratados pela rama se baseavam
sobre a continuação indefinida do cativeiro de Fernando VII e seus irmãos. 1810
não fazia prever 1814: o ano imediato a Wagram não deixava descortinar-se o ano
anterior a Waterloo. Em 1811, desiludido da miragem platina por algum tempo, e
para sempre até na forma por que ela primeiro se lhe antolhara, pensou Dom
João, quiçá com inteira sinceridade, em alcançar para Dona Carlota a regência
da Espanha, permane­cendo ele no Brasil225 e convertendo-se de vez em rei americano, bem lon­ge da
consorte intrigante. Palmela trabalhava então tanto para a princesa como para o
príncipe, em cujo ânimo se aninhara a quimera da união ibé­rica peninsular,
feita para começar ao sabor das suscetibilidades patrióti­cas e das
conveniências matrimoniais dos cônjuges, de fato desquitados, e que mais tarde
se ultimaria, como a que em tempo d’el-rei Dom Manoel se malograra, em proveito
do herdeiro da coroa portuguesa, representante da dinastia de Bragança.

 

Por seu lado Dona Carlota
Joaquina, vendo organizada na Espanha a resistência nacional à opressão
estrangeira e funcionarem em Cadiz as cortes, tratava a sério da sua regência,
correspondendo-se com deputados e gerais das ordens religiosas a tal respeito,
e a tudo se comprometendo em cartas tocaditas
como ela dizia,
isto é, repassadas de amabilidade e de persuasão. A proposta do deputado D.
Pablo Valiente concernente a esta candidatura, formulada no seio da assembléia
nacional em meados de 1811, foi porém recebida com morras, sendo alto e bom som
relembra­das as vergonhas domésticas e políticas associadas com o nome da
rainha mãe Maria Luiza, e tendo o representante popular de sair do edifício es­coltado
pela tropa e ir para bordo de um navio, a fim de escapar à sanha dos
contrários.

Muitos eram os interesses que
pelejavam contra a regência espanhola da princesa do Brasil: a própria
reputação da pretendente, as ambições individuais despertadas pela nova ordem
de coisas entre os políticos par­tidários do constitucionalismo radical que
implantaram, as ilusões repu­blicanas, o partido dos Bourbons de Nápoles, a
facção inglesa e a anti­inglesa que, uma e outra, denunciavam aquela
candidatura como contrá­ria às suas preferências opostas. Mais que tudo o
governo britânico, se bem que acabando por se não opor ao reconhecimento
platônico dos in­contestáveis direitos de sucessão ao trono de seus maiores
reivindicados pela Infanta, não achava oportuna nem conveniente a sua regência,
sendo em princípio infenso à união ibérica sob qualquer forma. E tal união sa­bemos
que em algum tempo constituiu o pensamento dominante do go­verno do Rio e que
foi a mola oculta, mas que a cada momento bolia fa­zendo mover o mecanismo da
sua política para benefício de Portugal. Li­nhares chegava claramente a
insinuar, numa memória destinada ao gabi­nete de Saint James, que se não
inventaria melhor contrapeso para o po­der alarmante da França imperialista do
que a fundação no futuro de uma monarquia unida e pujante.

 

 

A Inglaterra
socorria-se contudo de quanto pretexto engendrava a ima­ginação dos seus
diplomatas e estadistas para obviar, à extensão do domí­nio português no Novo
Mundo, direta, por agressão no rio da Prata, ou indireta , pela instalação de
Dona Carlota como autoridade própria e cons­tituída. A D. Domingos de Souza
Coutinho explicava por exemplo lord Wellesley que, aceitando mesmo como
contrária às leis fundamentais da ­monarquia castelhana a lei sálica,
introduzida por Felipe V com as usan­ças e idéias francesas apesar de se haver
obrigado por juramento a obser­var e guardar as tradições nacionais, o
reconhecimento dos direitos even­tuais da princesa do Brasil representava um
ponto muito delicado, com o qual se podia dar ofensa à corte de Palerma"’
intimamente aliada a de Londres pelos seus interesses comuns.

As cortes de Cadiz
admitiriam aliás a boa procedência dos direito dos Bourbons de Nápoles,
colocando em terceiro lugar na linha de suces­são, depois dos infantes e de
Dona Carlota Joaquina, a Infanta Dona Maria Isabel, herdeira das Duas Sicílias.

Um episódio
interessante e característico da confusão do momento é que, ligado por
matrimônio à Casa de Nápoles e descendente de Luiz XIV tanto quanto Fernando
VII, maquinou o duque d’Orléans, depois rei dos franceses, aquilo que mais
tarde maquinaria seu filho, o duque de Montpensier: subir ao trono da Espanha.
Chamara-o a regência espa­nhola, antes da reunião das cortes, como militar de
certo renome que tomara parte nas primeiras vitórias francesas da Revolução —
Valmy e Jemmapes — e se achava fora da atividade, e também como inimigo : natural
e pessoal de Napoleão para, servindo de bandeira de guerra contra o invasor,
atrair a si desertores do exército imperial e pôr-se à testa dessas forças
estrangeiras, para ele nacionais, podendo por isso sobre elas exercer
prestígio.

Este ato da regência
sofreu decidida impugnação da parte do ministro inglês Wellesley, irmão do
ministro dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha e de lord Wellington,
constituindo uma antecipação, até com o personagem principal, do caso dos
casamentos espanhóis. Arrependeu-se  porém a Regência quando já era tarde. Luiz
Felipe chegou a Cadiz em agosto de 1810 e, em correspondência ao apelo que lhe
fora dirigido, solicitou logo o comando de uma divisão, iniciando, enquanto
aguardava a comissão militar, as suas intrigas civis em prol dos direitos do
ramo dinástico ­bourbônico a que se unira pelo
casamento. Portugal se não descurou de juntar os próprios esforços aos da
Inglaterra a fim de desviar esse concorrente que começava trabalhando pela
família napolitana e nomeadamente pelo cunhado, o príncipe das Duas Sicílias,
para quando houves­se alcançado ascendência guerreira.trabalhar pela sua
candidatura pessoal. O resultado da ação combinada dos enviados britânico e
português foi que reunidas as cortes na ilha de Leão aos 24 de setembro, deram
ordem de partida ao duque d’Orléans, o qual embarcou para Palermo a3 de ou­tubro
a bordo de uma embarcação espanhola.227

O empenho do futuro conde de
Palmela em arredar hóspede tão im­portuno, cuja inteligência, valor e ardileza
a história suficientemente re­gistra, tanto maior devia resultar quanto era
análoga sua missão, dela de­pendendo o seu futuro diplomático, pois foram os
talentos patenteados em Cadiz que o levaram rapidamente ao Congresso de Viena e
à embaixa­da de Londres. Pugnava Souza Holstein quase publicamente em prol da
candidatura da princesa do Brasil. Recomendara-a Linhares à sua habili­dade ao
mesmo tempo que, tendo já conseguido seduzir em meio lord Strangford, procurava
com sua habitual insistência convencer o governo britânico das vantagens
indiscutíveis da combinação que oferecia.

Naturalmente asseverava ele nos
documentos diplomáticos, endere­çados para Cadiz e para Londres, que a regência
de Dona Carlota seria eminentemente favorável aos interesses britânicos de todo
gênero, permi­tindo uma ação militar conjunta, eficaz e talvez decisiva contra
Napoleão; e garantindo facilidades para os arranjos financeiros impostos pelas
des­pesas de guerra que, avultadas como eram, estavam mercê do descalabro e
miséria dos reinos peninsulares recaindo quase exclusivamente sobre o tesouro
inglês.

Aos espanhóis tentavam Linhares e
Palmela persuadir de que seus in­teresses corriam idênticos aos dos
portugueses, advertindo quanto lhes seria útil receberem subsídios e socorros
da Grã-Bretanha para debelar o inimi­go comum e, de acordo as três potências,
pacificarem a América Espa­nhola revolta, em troca do comércio livre que as

colônias por seu lado igualmente reclamavam e contavam legalizar. A Espanha com
seus únicos recursos não lograria fazer frente a uma tão complicada e
desanimadora situação, em casa e no ultramar. Os ofícios de Palmela no decorrer
da sua missão pintavam com cores bem negras o estado da metrópole: a falta com­pleta
de dinheiro, a desorganização do exército, o francês imperando in­solente do
Ebro ao Guadalquivir, malgrado a resistência nacional, as cor­tes perdendo
tempo e gastando-se com debates acadêmicos enquanto as colônias se separavam e
fragmentavam.

O governo da
regência, antiestrangeira como era, tinha-se impopula­rizado. Governos desta
natureza, em épocas tão agitadas, consomem-se muito depressa, rapidamente
perdem o prestígio, para o qual lhes falta a autoridade da tradição, e o
federalismo básico da Espanha, denunciando- se pela formação das múltiplas
juntas regionais, não ajudava mesmo a consolidação de um poder central que não
fosse fundado sobre o direito divino, sobre a sedução da religião ou, à moda
renovada, sobre o consen­so político das vontades livremente representadas.
Tratava-se pois para Pal­mela de jogar com essas disposições e aliciar os
deputados às cortes, que iam decidir das reformas e dos destinos do grande
império espanhol, para propugnarem pelas pretensões de Dona Carlota Joaquina,
indicando-as e fazendo-as valer e aceitar como o meio único de salvar a
monarquia e principalmente resgatar as províncias da América.

No ano anterior já o
plenipotenciário português, conquistando as boas graças do primeiro-secretário
d’Estado D. Francisco de Saavedra, chama­ra às idéias do seu governo a Junta
Central de Sevilha, a qual, reconhe­cendo a legitimidade dos direitos da
princesa do Brasil, virtualmente re­vogara a lei sálica. Não poderia caber
tanto em suas prerrogativas revolu­cionárias, não houvesse dado o fato,
primeiro revelado pelo conde de Flo­rida Blanca na proclamação da Junta de
Múrcia, das cortes espanholas terem em tempo de Carlos IV, no ano de 1789,
votado a ab-rogação da referida lei, conservando-se porém secreta a deliberação
por causa das li­gações dinásticas e políticas então existentes entre a Espanha
e a França — a lei sálica era um dos artigos de credo dos Bourbons — e ficando
o Rei depositário do documento, que aliás nunca apareceu. Muitos dos de­putados
presentes às cortes de 1789 testemunharam contudo a sua veraci­dade, e o
Supremo Conselho da Espanha e Índias reconheceu-lhe a autenti­cidade.228

Quando o exame sereno dos
sucessos e a psicologia dos personagens não autorizassem bastantemente o
historiador a afirmar que o fim alveja­do pela política portuguesa por esse
tempo era a reunião das duas monar­quias peninsulares, com suas possessões, sob
o cetro dos Braganças, ne­nhuma dúvida restaria a respeito após a leitura da
correspondência oficia_ do ministro em Cadiz. "O maior e mais
resplandescente império do mun­do, aí se dizia, poderia surgir dentre as ruínas
e os incêndios desta Revolu­ção." E tanto se apaixonou o diplomata por tal
grandioso projeto que ao mostrar-se o governo
do Rio acobardado pela relutância do governo de Londres e pelas intimativas de
Strangford, e disposto a mercadejar os direitos da princesa do Brasil,
escrevendo Linhares a Souza Holstein que. no caso da Inglaterra se opor
invencivelmente ao reconhecimento desses direitos, tratasse de negociar e obter
alguma justa e razoável compensação deles, o futuro conde de Palmela julgou a
sugestão sumamente preju­dicial, além de impraticável pela•segura inadmissão
por parte do gabinete britânico.

Pensava decerto Linhares que a
aquisição, consentida pela Grã-Bre­tanha, da margem setentrional do Prata
indenizaria Portugal do abando­no voluntário dos mal-parados direitos da esposa
do príncipe regente. Pal­mela achava porém que semelhantes direitos eram pelo
contrário em de­masia válidos para sobre eles se dever transigir, e que a
perspectiva do pró­ximo império luso-hispânico se oferecia em demasia brilhante
para a ela se renunciar levemente: mais acertado se lhe afigurava prosseguir no
ca­minho encetado e que conduzia à reunião das monarquias, a qual lhe pa­recia
infalível, com a sobrevivência da dinastia espanhola à crise nacio­nal, e a
imposição pela opinião pública espanhola do resultado visado pe­la política
portuguesa.

A resolução primeiro proposta do
Rio de Janeiro tinha por si, pri­meiro a imensa vantagem de anular todos os infernais planos de Bonapar­te tendentes a privar a Espanha da sua
dinastia, ofendendo o mais grave­mente a nação nos seus sentimentos
tradicionais de lealdade. Depois, pa­ra a segurança do país e garantia do seu
desenvolvimento, quão sensível diferença não ia do governar uma princesa que,
no caso de sobrevir des­graça ao legítimo soberano, era a própria natural
sucessora da coroa, a governar uma entidade, embora centralizadora, que apenas
por delega­ção, ou então por usurpação, podia representar a pessoa do monarca.

Opinava Palmela que, somente na
hipótese de se despedaçar a mo­narquia espanhola, competiria aos homens
d’Estado portugueses "tirar o partido que pudessem desta dissolução de um
tão grande corpo políti­co": o que significava ocuparem imediatamente a
Banda Oriental, "ale­gando por motivo a sua defensa, e incutindo aos seus
ministros o cuida­do de justificar essa medida, porque será sempre sem dúvida
muito mais conveniente o ter que dar razões de uma semelhante resolução, depois
de executada, do que o esperar consentimentos de outras potências para a
executar".229 Nem outra havia de ser a maneira
de proceder adotada pe­lo governo português em 1816 e mal previa Palmela, ao
escrever as frases citadas, quantos trabalhos lhe causaria até 1820 o problema
da restituição ou conservação de Montevidéu.

Já ao tempo da sua missão em
Sevilha e Cadiz, tivera ele que se es­forçar por destruir as impressões
transmitidas pelos vice-reis de Buenos Aires e contradizer as informações do
ministro Casa Irujo, apresentando a queixa formal do príncipe regente contra as
suspeições de Liniers e de Cisneros no tocante à corte do Rio
e contra seu proceder para com os por­tugueses estabelecidos em Buenos Aires, e ao mesmo tempo justificando a concentração de forças no Rio Grande com dá-las
como penhor de um apoio do qual se podia vir a valer a Espanha, atento o
crescente estado revolucionário das suas colônias. Com
essas tropas é que esteve para ope­rar de combinação, em 1808, a esquadra de
sir Sidney Smith, agindo o almirante todavia neste caso não tanto por conta
própria e para favonear as veleidades de Dona Carlota, como sob instruções do
almirantado e por despique patriótico, para resgatar os reveses de Popham,
Beresford e Whi­telocke; ainda assim contra os desígnios e até os desejos
manifestados pe­lo ministro Strangford.

Nos pontos em questão foi o
representante português completamen­te bem sucedido, alcançando que o governo
da regência espanhola ace­desse sem reservas à permanência das tropas de
observação na fronteira meridional do Brasil e reprovasse, ao ponto de lhe dar
substituto mais aco­modado, a atitude de Casa Irujo, o qual se obstinava em
entender-se com o governo colonial de Buenos Aires para a manutenção dos
interesses da metrópole e acertava no prever e denunciar a política
imperialista de Dom João VI. É mesmo possível que a regência agisse dessa forma
não tanto por falta de meios de ação, posto que tal falta fosse uma realidade,
quan­to por acreditar na sinceridade do eventual auxílio português, fundado na
irmandade das conveniências políticas dos dois países, cuja principal
preocupação deveria consistir em reprimir qualquer movimento sedicioso nas suas
respectivas possessões americanas. De fato toda a ambição da Espanha se
cifrava, com sustentar-se a monarquia nacional, em salvarem-se as colônias,
afetando este objetivo especialmente os interesses de Cádiz por ser a praça
marítima do país mais em contato com as terras do Novo Mundo.

Nas cortes de Cadiz tiveram assento deputados da América
e esta as­sembléia diversamente do que mais tarde sucedeu com a de Lisboa,
mostrou-se simpática à causa das comunidades ultramarinas, não se revelando
sequer infensa, entre outros desiderata
dessas populações,
à liberdade de comércio. Tornara-se mesmo mister advogar tal liberdade por
impossível pô-la de lado quando se fizera indispensável ligar inteiramente os
interesses mercantis da Grã-Bretanha com a preservação da monarquia espanhola
em ambos os hemisférios. As Cortes Constituintes pareciam aliás dominadas por
grandes ideais, e Palmela acompanhava assiduamente e ­simpaticamente a sua obra de
regeneração política, financeira e militar.  Sobre as próprias sessões secretas andava ele
excelentemente informado, bem como sobre a marcha dos negócios que lhe estavam particularmente
confiados, sendo os agentes do Brasil, a quem o píncipe regente mandou para tal
fim escrever, o conselheiro d’Estado D. Benito Hermida e o deca­no do Conselho
de Castela D. José Colon.230

É evidente que trabalhando por
Portugal, trabalhava Palmela pela princesa do Brasil, que era o pretexto e todo
o fundamento da ação portugue­sa, na qual ao príncipe regente não coube o papel
inglório e inepto que lhe anda atribuído, entre outros por Groussac ao pintá-lo
tão destituído de intenção quanto de vontade. Muito pelo contrário o fito de
Dom João VI foi constantemente um, o de engrandecer o seu domínio, pelo menos
até o Prata, e para o conseguir intrigou, tergiversou, labutou e até, em 1816,
se libertou diplomaticamente de Strangford, o qual desde o começo, no intuito
de melhor servir a Inglaterra, favorecia a causa dos emigrados platinos, ou por
outra a causa da independência, que alguns deles já en­tão perseguiam sob color
da defesa dos direitos de Dona Carlota. Satur­nino Rodrigues Peña entrava por
exemplo no número"’ e, por descobri-lo, o quis a princesa remeter preso
para Buenos Aires, consignado a Liniers, pouco depois dele a haver hiperbólica
e enganosamente apelidado de he­roína da América.

A Inglaterra não protegia ainda
assim tanto a causa platina das agres­sões portuguesas, convém notar, como se
precavia contra os americanos, temendo que estes, naturalmente simpáticos a uma
revolução da mesma natureza da sua, fizessem cabedal de um pronto
reconhecimento da inde­pendência da nova república, para firmarem na América
Latina o seu pre­domínio moral, antagônico aos interesses do comércio
britânico.

Dona Carlota contava todavia
partidários mais diretos e mais desin­teressados do que os que no Prata
especulavam com o seu nome, pondo a mira noutro objetivo. As instruções do
Ayuntamiento da cidade de Mon­terey, no novo reino de Leão no México, dadas ao
seu deputado às cortes, foram terminantemente em favor da regência da infanta
d’Espanha; ou­tras instruções as imitaram, e não faltava sobretudo naquela e
nas outras colônias quem se rejubilasse com a perspectiva da final mudança para
o seu seio da sede da secular monarquia popular. Não bastavam entretanto, para
vingar a empresa, boas vontades isoladas, sem união ou linha dire­triz.
Faltaram-lhe ou combateram-na outros elementos poderosíssimos.

Faltou-lhe o concurso de sir
Sidney Smith, que com o entusiasmo do seu temperamento e o prestígio dos seus
serviços instigava o regente, acenando-lhe com a perspectiva de uma melhor
fronteira no Sul, no que a princesa concordava, como concordava sem maior
sinceridade em tudo quanto, sem quebra manifesta da
vaidade, fosse de molde a concorrer pa­ra a satisfação da sua aspiração
imediata de poder.

Faltou-lhe cada dia mais o apoio
das comunidades coloniais espa­nholas, que se iam desligando da metrópole sem se
agregarem umas às outras, e cujos próceres se iam
transformando todos em precursores na luta contra a resistência conservadora,
não sendo de surpreender que a muitos dignitários locais não sorrisse
despojarem-se de boa mente das po­sições ocupadas por mercê, como as dos
vice-reis, ou adquiridas nas per­turbações nacionais, como as das juntas ou
audiências investidas do go­verno, para permitirem a ascensão de uma Infanta já
meio alheada da di­nastia e sem talentos especiais de administração.

Faltou-lhe por fim o apoio
decidido das cortes de Cadiz, onde era antes considerável o número dos que a
hostilizavam, mesmo entre aqueles que chegaram até ao ponto de lhe reconhecerem
os direitos incontestáveis, e úteis para se poder repelir toda intrusão
dinástica, sem todavia que­rerem torná-los efetivos.232 Preferiam esses deixar governar
os inexperientes homens d’Estado, que desembaraçados da última imbecil tutela real e de todos os entraves do
obsoleto regime alterado, estavam contudo con­duzindo a barca pública através de tantas tormentas com
felicidade cada dia mais palpável à medida que se ia fortalecendo a fortuna das
armas, espanholas, quase perdida em
princípios de 1810, depois da invasão Andaluzia, e que as exigências de outras
campanhas européias, julgadas mais urgentes ou formidáveis, iam determinando a
retirada dos melhor: regimentos franceses.

Devem igualmente ser contados,
como elementos a contrariarem Dona Carlota e o ministro Souza Holstein, afora
os ciúmes patrióticos, os ciúmes interesseiros dos que também ambicionavam, e
com ardor não menor, a regência da Espanha, tanto mais quanto o provisório
podia torna se definitivo. Era então o tempo dos grandes planos, das grandes
quime­ras e das grandes partidas,
quando se jogavam coroas, povos e raças sobre o tabuleiro político. Nada parecia impossível, nada improvável, nada difícil.
Um tenente corso estava feito imperador da Europa; os seus irmãos, havia poucos
anos esfomeados, os seus marechais, havia poucos anos soldados rasos,
repimpados em tronos seculares; as nações passavam de mão para mão como notas de banco,
criavam-se federações e fragmentavam-se continentes.

Todos os obstáculos enumerados, desde o isolamento da
princesa até as miragens dos constituintes de 1812, por poderosos que aparecessem
eram no entanto vencíveis, e Palmela nutria mesmo a opinião que os  levantados
em Cadiz se teriam galgado, se não fosse a oposição da Inglater­ra. Esta era
que guardava em suas mãos a organização da regência nacio­nal e, sem poder opor
embargos propriamente ao reconhecimento dos di­reitos da primogênita de Carlos
IV, tampouco o ajudando, adotara uma reserva hostil no tocante à realização do
que semelhante reconhecimento comportava como dedução naquele momento.

A
posição do ministro Wellesley acha-se definida com exatidão nas seguintes
palavras de um dos ofícios de Palmela: "Devo porém fazer-lhe a justiça de
dizer, que ele não tem feito relativamente aos direitos de su­cessão, nenhuma
oposição oficial, nem manifesta; mas devo igualmente dizer, por amor a verdade,
que a mínima palavra que ele tivesse pronun­ciado a favor deste negócio, ainda
sem ser oficialmente teria provavelmente já decidido o seu bom êxito, pois
entre muitos, o seu silêncio a este respei­ – to pode passar por uma tácita desaprovação.
"233

Não
era que a frieza quase inimiga do inglês no assunto que tanto tinha D. Pedro de
Souza Holstein a peito, o fizesse desanimar, antes o in­citava a prosseguir no
que ele chamava a guerra literária, a saber, influir pelos escritos
de propaganda sobre a opinão pública, no sentido de desfa­zer prejuízos
nacionais e populares; e por outro lado insistir na campanha mais eficaz da
corrupção, distribuindo presentes para se informar do que ocorria nas sessões
secretas, obter cópias dos papéis importantes e predispor a votação de harmonia
com os interesses de Portugal e Brasil.

Para
Dona Carlota a chave da situação passara por esse tempo a encontrar-se em Espanha. Aí é que seus interesses precisavam ser promo­vidos e sustentados. No rio da Prata,
desde o 25 de maio de 1810, a parti­da estava senão perdida, gravemente
comprometida. Assim o compreen­dera o atilado Contucci e o expusera numa
memória dirigida ao conde de Linhares, valendo-se dos seguintes termos:234 "Houve hum tempo em que o
partido favorável aos interesses de S. A. R. a princesa Nossa Senho­ra era o
mais numeroso, não por reflexão, ou por amor á antiga e venerá­ ama – vel
Constituição espanhola; porém por um conjunto feliz de circunstâncias que
faziam coincidir os interesses de S. A. R. com
os interesses, e paixões dos particulares então violentamente agitadas. As
intrigas do novo vice-rei [Cisneros], e de Ruiz Huidobro, e as desgraças da
Península desabaratarão inteiramente este partido. O da Independência tomou o
ascendente: o sistema democrático representativo proposto pela Junta Central veio
a ser uma opinião legal e justificada, e um crime o aderir à antiga Constituição
monárquica. Segundo as últimas notícias de Buenos Aires, ainda que discrepem
muito aqueles habitantes sobre a forma e o modo de fundar um novo regime,
concordarão em um ponto essencial quase todos, que é o de excluir os justos
direitos reclamados por S. A. R. a prin­cesa Nossa Senhora."

De ameaçados, tinham os de Buenos
Aires passado mesmo a amea­çar, pela propaganda dos princípios que não pela
força das armas, e Li­nhares tanto não desprezava a contingência que, conforme
resulta de no­tas autógrafas do próprio ministro apensas à citada memória,
confiara a Contucci uma missão secreta da máxima importância, qual a de levar
com êxito a efeito a aclamação de Dona Carlota Joaquina. Devia o aven­tureiro
partir na certeza de ser apoiado pelas tropas do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina, as quais com rapidez acudiriam em socorro do Cabildo ou do governador
de Montevidéu — qualquer que primeiro re­clamasse a assistência delas —
enquanto se não despachavam do Rio, sem romper a aliança inglesa, outras tropas
e alguma força naval.

O caso não era porém mais de
ativar apenas o engrandecimento do poder português: tratava-se de defender
também e sobretudo o existente, de conservar a integridade dos domínios do príncipe
regente sob o regime transplantado. Contucci, cuja memória provocava ou
respondia ao encar­go, assim expressava os seus receios, reais ou simulados, de
uma crise re­volucionária: "O sistema democrático adotado pela América
espanhola pode ser-nos tão incômodo como a dominação francesa. Os Espanhóis,
republicanos estando em perpétuo receio de uso que S. A. Real possa fa­zer dos
seus justos direitos não perderão ocasião de prejudicar-nos debilitar-nos, e
ofender-nos de fato, e nas alianças e relações políticas que contraírem. E quem
pode prever os últimos resultados dos delírios da democracia?"

Para o agente de Linhares e de Dona Carlota o remédio só
podia – da metrópole, se é que era tempo ainda de empregá-lo: "O perigo sendo
tão iminente e grave é de esperar que S. A. R. não perca um instante em
reclamar a regência de toda a monarquia espanhola durante a ausência de seus
augustos irmãos. A ocasião não pode ser mais propícia. Por agora não existe
governo reconhecido senão o antigo. Se se consente a organização de qualquer
ajuntamento de onde emanem ordens, que possam considerar-se como a expressão da
vontade geral, a causa de S.A.R. perderá infinito na opinião dos povos."

O espírito de
Contucci não aparentava contudo deixar-se abater pela perspectiva do perigo de
uma reação liberal da América Espanhola contra o absolutismo da América
Portuguesa, ao ponto de renunciar aos planos grandiosos que ele próprio havia,
porventura mais do que ninguém, ajudado o conde de Linhares a arquitetar. Longe
disso, ele entrava, logo depois de manifestar as suas apreensões, numa
exposição repassada de me­galomania e que destituída mesmo que seja de
sinceridade, lança luz so­bre o espírito português de imperialismo, então
predominante nos conse­lhos do governo: "… porém a reclamação [dos
direitos de Dona Carlota] para que não seja desairada deve apoiar-se sobre uma
força respeitável, e pronta a obrar em caso de negativa sem a menor dilação. Com isto não quero dizer que os
exércitos portugueses hajam de conquistar a América, porém aberta a porta, e
cativado o amor e confiança de uma parte tão essencial da nação espanhola, o
restante se concluirá com os mesmos es­panhóis. Henrique IV quando rei de
Navarra era ele mais poderoso com respeito a França, do que agora seja o Brasil
com respeito a América? Por nossa parte não à necessitamos mais que a firmeza e
constância daquele rei, e uma coragem igual justiça da nossa causa. Se esta
triunfa, todas as disputas e zelos de limites terminarão: se encontra
obstáculos invencíveis nas Províncias
remotas,
mudar-se-ão
em direitos de conquista os de su­cessão nas províncias que estão em nosso alcance. Feitas domínio particu­lar de S.
A. R. e administradas por leis próprias conseguir-se-á conservá- las até o
tempo em que hão de reunir-se em uma só cabeça!"235

Linhares, que tinha as
responsabilidades do poder e, apesar da sua megalomania, uma visão inteligente
dos acontecimentos, já começava a não julgar possível tanto e contentar-se-ia
com a incorporação da mar­gem setentrional do Prata, não mostrando repugnância,
desde o dia 25 de maio se pode dizer, a entrar em relações com a Junta
revolucionária de Buenos Aires. Para este fim até se serviu de um dos seus
numerosos agentes confidenciais, um Carlos José Guezzi, motivando as queixas de
Casa Irujo, que não podia naturalmente levar a paciência que o governo
português assim tratasse com rebeldes, virtualmente reconhecendo-os, con­tra a
autoridade do rei católico.

As queixas do
representante espanhol, transmitidas para a metrópo­le, determinaram o
representante português em Cadiz a protestar uma vez mais, em nome do príncipe
regente, as suas benévolas intenções para com o monarca prisioneiro, e o seu
desejo de pôr em execução qualquer desíg­nio para, de acordo com S. M.
Britânica, fazer cessar a revolução de Bue­nos Aires. Quanto ao intermediário
Guezzi, era oficialmente repudiado sem cerimônia nem reserva, apelidando D.
Pedro de Souza Holstein esse êmulo de Contucci de "meramente um explorador
que o Governo do Bra­sf1 julgou,
para a sua própria
segurança, obrigado a conservar em Bue­nos Aires, depois da revolução daquele
país tão vizinho"; tendo apenas recebido por missão, quando para lá o
despacharam do Rio de Janeiro, "desmentir as vozes que se tinham ali
esparzido contra as pacíficas inten­ções do p. regente de Portugal, declarando
que S. A. R. não teve em tem­po algum
intenções hostis contra nenhuma parte dos Estados de S. M. Católica." 2"

Na realidade as
nutria a corte do Rio com afã, e como resistir a ten­tação de aproveitar-se das
dificuldades da eterna rival se era tal a penúria do erário espanhol para
rebater qualquer incursão ultramarina, que o or­denado do ministro Casa Irujo
lhe estava sendo adiantado no Brasil pele tesouro português, o qual se via,
aliás, sem esperanças de recobrar essa, somas? O dinheiro de que dispunha a Regência nem chegava
para paga: o soldo à guarnição de Cadiz, garantia das cortes e das liberdades
nacio­nais, não podendo a mesma regência furtar-se ao pejo de pedir pequena
quantias emprestadas ao ministro britânico.2"

Se as dificuldades teóricas no
tocante aos direitos de Dona Carlo:_ Joaquina tinham que ser resolvidas em Cadiz, e neste
sentido é que lá encontrava a chave da situação, piores dificuldades, as
práticas, sabemos como surgiram no próprio terreno onde devia incidir sua
regência, terre­no que estava longe de seguro para a proclamada candidatura da
Infanta O grupo espanhol mesmo, de Alzaga e outros que tinham intentado o movimento gorado de 1° de janeiro de 1809 contra o vice-rei Liniers,
não era partidário da Princesa, porquanto aspirava a constituir uma Junta local a exemplo das da Espanha, com a qual daria a um tempo expansão aos
seus preconceitos anti-americanos e plena satisfação ao seu espírito de governo
municipal, em tese dependente da metrópole, mas de fato autônomo, apenas tinto
de uma lealdade distantemente platônica. A malogra _ sublevação de cor
espanhola para deposição do herói estrangeiro da conquista nacional fora uma
verdadeira demonstração antifrancesa,  portanto patriótica na sua forma
regional e tradicional na sua orientação geral, com um cunho todavia de
particularismo arisco. Não acharia nela lugar a pretendente, que tão somente
podia especular com o sentimento anárquico ou antes dinástico, refletindo-se e
sobrepondo-se ao espírito colonial, antes que este se considerasse com forças
para entrar pelo caminho da separação, assumindo a
possessão e os seus diretores a consciência  das responsabilidades dos seus
destinos.

Contucci
compreendia admiravelmente a situação e enxergava com clareza, como quem
conhecia todos os pontos de vista, que só do lado crioulo
seria possível
vir a base e derivar-se o apoio de que carecia a candidatura de Dona Carlota,
ainda mesmo quando a reconhecessem legal e a aclamassem as cortes de Cadiz. Na
aludida e extensa memória endere­çada ao ministro Linhares escrevia ele:
"Não posso dispensar-me de dizer que considero como impossível reunir um
consentimento universal e unâ­nime dos habitantes de Buenos Aires. Devesse
forçosamente caminhar ou com o apoio do governo e magistrados, ou com o dos crioulos. Mas contemporizando com os dois
partidos irreconciliáveis de interesses, se malo­grarão todas as propostas. A
prudência do Comissário (que fosse enviado a Buenos Aires) deverá calcular qual
de estes dois partidos é o mais segu­ro e influente."

Noutra memória238 apontava Contucci com abundância de razões o melhor meio
a seguir no seu entender, que era o de auxiliar justamente o partido mais
débil, o partido em embrião da libertação americana, o qual ainda podia por
convicção ou conveniência abraçar como solução média a realeza local de Dona
Carlota Joaquina de Bourbon. O aventu­reiro aconselhava sem dúvida o mesmo que
aconselharia um homem honesto.

Buenos Aires reconhecera
sucessivamente diferentes autoridades, mas Contucci explicava bem que não era
isso "devido à uniformidade de sen­timentos ou de interesses; pois uns
estão prontos a reconhecer qualquer dinastia seja francesa, espanhola ou
muçulmana, contanto que acham nela a conservação dos seus postos e empregos e a
continuação das restrições coloniais; outros desejam um governo que dê
esperanças de reformar a administração, e proscrever toda a espécie de
restrições. Este último parti­do é o mais numeroso, porém sem influência em
razão da discrepância dos seus planos, e projetos. Aquele, muito inferior em
número, prevalece em razão da união, e identidade das vistas, e interesses, e
da sua riqueza: o governo, e os comerciantes formam este partido dominante. Os
agricul­tores, os homens de letras, e os eclesiásticos formam aquele sem
influên­cia. A turba segue os impulsos de quem os paga com dinheiro e não com
palavras."

Ambos os partidos estavam, no
dizer de Contucci, fora da constitui­ção espanhola, o que justificaria qualquer
intervenção portuguesa, a qual sob a forma de mediação entre os dois
agrupamentos rivais, deveria exercer- se fazendo de preferência esperar
reservadamente proteção ao partido mais fraco — "entrando quanto seja possível
no seu modo de pensar, e excluin­do toda a idéia de conquista, ou de divisão de
território".

A confiança era indispensável
para cimentar a inteligência desejável. "E manifestando de novo, como em
outro tempo se praticou, a firme, e decidida resolução da corte do Brasil de
manter o resto da monarquia dentro da linha constitucional; reunirá
necessariamente debaixo das suas bandeiras um grande número de prosélitos, e
sem esforços extraordiná­rios poderá a nossa corte tomar o ascendente que
corresponde à sua si­tuação, e a importância das suas políticas relações: porém
isto só pode ter lugar no momento atual em que não tem autoridade reconhecida
que os governe. Todo o perigo está na demora e na indecisão… Deve-se espe­rar
que Montevidéu seja o primeiro que reconheça a regência e contribua a decidir
Buenos Aires, ou, ao menos, a manter em respeito os que sejam opostos a nossa
Causa. "239

Não seria demasiada, no juízo do
agente político da corte do Rio de Janeiro, toda a habilidade ou descabida toda
a prudência nas regras por que se deveriam pautar ocupação e regência.
"Deve ficar entendido que todas as proclamações serão concebidas no puro
espírito constitucional e por este modo evitarão a ambigüidade, que pode ser
sinistramente inter­pretada. A bandeira espanhola, a forma de governo, os
empregados, as mesmas milícias não devem ser em parte alguma molestadas, ou
modifi­cadas, limitando-se a fazer reconhecer as povoações da banda oriental do
Rio da Prata, a regência em nome de Fernando VII entregando às Câmaras, e
comandantes da fronteira o cuidado de manter a ordem, e o sossego na
campanha." Nem se deveria perder qualquer ensejo de reiterar, sempre ­que fosse oportuno, a intenção do
príncipe regente de não consentir na separação da mais mínima parte dos
domínios espanhóis".

Os conselhos de
Contucci seriam excelentes a seguir, se tanta cousa não existisse para os
invalidar: se à disposição da Inglaterra, contrária ao engrandecimento
territorial da monarquia portuguesa e que fez perder a esta, mais favorável
ocasião talvez da sua história de realizar o seu sonho imperialista, se não
agregassem, igualmente infensos, os grupos antagonistas de Buenos Aires e o
férvido sentimento dinástico, mas espanhol do governador dissidente de
Montevidéu. Vimos como Elio teve que aceitar da corte do Rio o auxílio contra
os rebeldes da outra margem mas tam pouco admitia ele intrigas separatistas da metrópole e de
sabor estrangeiro no território sobre que exercia autoridade, que por sua ordem
foi preso em 1811 e remetido para Cadiz a
bordo da fragata Proserpina
o agente
político Guezzi, a quem a regência ali mandou soltar e pôr à disposição do
ministro Souza Holstein, quando por este foi reclamada a sua libertação.

Outro obstáculo com que não pareciam uns e outros contar,
é
que entretanto
representou papel importante neste negócio, era a altivez  irredutível de Dona
Carlota Joaquina. Linhares assegurava em 1811 que futura regente em
tudo obraria de acordo com a Inglaterra e submete-lhe mesmo o rascunho de uma
memória destinada ao príncipe regente da Grã- Bretanha, em que anunciando
tencionar permanecer por tempo indeter­minado no Brasil e nomear governadores
do reino espanhol para o admi­nistrarem na sua ausência, declararia a princesa
ser também sua firme in­tenção agir sempre de perfeita harmonia com o governo
britânico, entre­gando o indisciplinado exército nacional ao comando e preparo
de Wel­lington e seus oficiais e recorrendo a processos de crédito que
tornassem menos pesados os sacrifícios pecuniários ingleses. Assim se
colocariam as cousas militares da Espanha no mesmo feliz pé em que se achavam
as de Portugal e fiscalizariam as rendas públicas para se não malbaratarem os
recursos a empregar na defesa, ficando estabelecida no Guadalquivir a mesma
tutela que reinava no Tejo.

Dona Carlota não aquiesceu,
porém, em tomar compromissos tão formais e incompatíveis com o seu sentimento
de decoro público, não que­rendo ir além de declarações muito vagas de que
conservaria a união exis­tente com Portugal e Inglaterra. Vendo, outrossim, que
todo o fito do go­verno do príncipe regente era jogar com o seu nome e
direitos, mantendo- a todavia inativa e impotente no Rio de Janeiro, forçando-a
até a uma quase abdicação em favor de políticos de Cadiz, mandou pelo
ex-secretário Presas, quando este teve de embarcar para Espanha a exigências de
lord Strangford, insinuar ao general Ballesteros que fizesse proclamar pelo
exér­cito a sua almejada regência.

Presas não encontrou, contudo, em
Cadiz maduro o plano, nem se­quer bem germinada a idéia, posto que aderissem à
candidatura da infan­ta deputados e outras pessoas de posição; que naquele mês
de março de 1812, em que o secretário deixou o Paço, houvesse Dona Carlota sido
pelo tenaz trabalho de Palmela declarada herdeira imediata aos irmãos, e que,
para atingir o seu fim principal, se prestasse ela então à comédia de acei­tar
e aplaudir a Constituição. Tanto se exibira Palmela entre os que mais
patrocinavam a pretensão do poderio da princesa do Brasil, que o fez Lord
Strangford remover, em castigo da sua feliz diplomacia, para a embaixada de
Londres, até aí ocupada pelo conde do Funchal, irmão de Linhares. Tendo este
falecido no começo de 1812, faltara o seu valimento e desapa­ecera a sua
proteção para D. Domingos lograr sustentar-se no posto, que tanto prezava que
arranjou meio de nele se conservar uns anos mais, sob pretextos vários.

Com Palmela foram-se de Cadiz as últimas
esperanças da infanta de assumir qualquer senhorio. E assim viveu Dona Carlota,
como tantos dos seus contemporâneos, de sonhos, de ilusões e de surpresas,
apurando, co­mo único resultado palpável dos seus desígnios ambiciosos, assim
como foi os grandiosos projetos insuflados por D. Rodrigo ao príncipe regente,
o duplo casamento das infantas portuguesas com o rei Fernando VII e seu irmão
Dom Carlos. Destarte seria pelo menos a sua descendência que subiria ao trono
que ela tão ardentemente cobiçara: mas até nisto lhe foi o destino adverso, porque
o filho de Dom Carlos, mercê da revogação da lei sálica que a Dona Carlota
devia aproveitar, nunca passou de um pre­tendente infeliz, e a sucessão da
coroa espanhola reverteu em favor da fi­lha de um terceiro casamento de
Fernando VII com uma Bourbon de Nápoles.

A regência ou
reinado da princesa do Brasil era uma hipótese dema­siado possível e demasiado
próxima para que pudesse sobretudo sorrir ao, que, sob color de guardarem fidelidade ao rei
legítimo, pensavam com so­freguidão na completa emancipação, um resultado
porventura julgado ir­realizável na metrópole, mas que fora previsto por
estadistas, economistas e publicistas como Alberoni, Turgot e Raynal, e que a
separação da América Inglesa tornara provável com fornecer um exemplo palpável.
Aquela sofreguidão mais forte parecia de 1808 a 1810, antes dos fatos consuma­dos
no sentido de separação, apesar da anarquia moral das população e das desordens
das facções.

Então as
dificuldades de execução do ousado projeto indicavam a candidatura de Dona
Carlota como um recurso precioso; assim como subseqüentes embaraços,
provenientes do restabelecimento da dinastia espante – e da restauração
bourbônica em França com o acompanhamento da reação movida pela Santa Aliança,
fizeram voltar à tona e alastrar-se p persuasão a solução monárquica, muito
acariciada por Belgrano e 12 diretor Rivadavia, o primeiro sob a forma
romântica e pseudo-nacionalista de um descendente dos incas a casar com uma
infanta portuguesa, o segundo na forma mais prática e inteligente de um
príncipe da Casa Bourbon.

 

 

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