A SITUAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE MODERNA

Oliveira Lima

A SITUAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE MODERNA

Entre o que os americanos chamam experiências da vida e que nem sempre infelizmente emprestam experiência à vida, faltava, na parte que me coube por lote, o ser paraninfo de uma turma de graduadas de uma Escola Doméstica; experiência tanto mais rara no Brasil quanto é a única escola deste gênero que possui o país, o que é muito em louvor do espírito progressivo deste Estado e especialmente daquele espírito clarividente, que é ou antes deve ser o do homem público, que teve a bela iniciativa de uma tão útil instituição. Por isso mesmo me envaideço da distinção que me dispensastes e que agradeço com tanta cordialidade quanta sinceridade.

Fizeram-me graciosamente observar que não fui convidado para paraninfo, nem fui designado; que fui eleito. Razão demais para desvaneccr-me; sendo o primeiro cargo de eleição que exerço e, ainda por cima, proveniente do sufrágio feminino, que é a grande novidade do dia em matéria política e uma das conquistas permanentes de uma guerra da qual já se disse, com razão, ter resultado toda em proveito do Japão, do socialismo e das mulheres. Em proveito portanto do mundo, porque aquilo que a mulher, doravante eleitora e elegível, não conseguir realizar com seu jeito e sua perseverança — a sua inconstância é uma fábula mais, talvez um estratagema — não será dado ao homem levar a cabo. Contemos pois, não sei se com a regeneração do mundo, mas pelo menos com coisas que o mundo ainda não vira.

Eu sou, devo dizê-lo, um velho adepto do sufrágio feminino e da independência da mulher. Na noite da primeira eleição do Presidente Wilson achava-me cu em Washington e, não só tomei parte, como falei numa grande reunião em Ebbit House em prol dessas idéias que eram então, não direi perigosas de professar como as do anarquismo, mas sofrivelmente originais. A questão do sufrágio feminino, toda a questão feminista de que o direito de voto é a base, sempre me pareceu porém uma questão de senso comum.

A mulher não é intelectualmente inferior ao homem. Se lhe falta poder criativo, sobra-lhe o dom de assimilação, e se lhe escasseia vigor físico — tudo isto comportando exceções — convém lembrar que a finura vale muitas vezes mais do que a força. Se a mulher não tem logrado praticar feitos tão notáveis no domíníS da inteligência quanto o homem é muito porque lhe tem faltado a oportunidade. Porventura recebe a mulher a mesma educação que o homem? Estas próprias coisas domésticas, que são mais de sua alçada, não posso dizer que lhe sejam privativas porque na China são os homens que cosem, no Japão são eles que bordam, em todo o mundo êlcs também cozinham, primando até na arte culinária como teóricos e como práticos, e casais há em que são eles que tratam dos filhos — quem pensa em ensinar-lhe?

Sei que na Bélgica existem as écoles menagéres e que os Estados Unidos lhes não podiam ser alheios; vi funcionar uma em Buenos Aires, que me pareceu excelente, como tudo quanto ali diz respeito à instrução e à filantropia no seu misto de escola operária e de escola, digamos burguesa enquanto a denominação não estiver abolida; ouvi que em São Paulo não lhe admitiram ainda o alcance: entretanto quem poderá contestar que só se pode fazer bem o que se aprende a fazer, e o que se pode aprender por si, mais fácil e mais razoável é aprender com quem saiba e possa ensinar?

Tudo é cozinhar; mas cozinhar mal ou bem são para quem come coisas diversas. O mesmo com relação ao vestir: um traje bem cortado c bem acabado é coisa distinta de um traje ridículo à falta de gosto. De quantas desastrosas conseqüências não é responsável a ignorância em matéria de puericultura? Este é no entanto o campo por excelência da atividade feminina, correspondente à sua mais nobre missão, que é a de mãe de família. Não quer isto contudo dizer que a mulher não deva sair do gineceu ou que lhe assente viver sob tutela.

O Cristianismo melhorou-lhe a situação, mas a recordação de curiosidade, não sei se intempestiva mas fatal da nossa mãe Eva, continuou a pesar sobre ela e a determinar com relação a ela uma política de "confiar desconfiando", que tanto mais convinha ao homem quanto lhe favorecia a autoridade. Alguns chegaram a apontar a mulher entre os inimigos do homem. Estou certo de que o não faziam de verdade, sinceramente: dou neste ponto mais pela inteligência e bom gosto da humanidade que nos precedeu. Mas que o fizessem de parti pris, pior ainda.

Por sua vez o elemento germano que, segundo a própria ciência histórica francesa — pelo menos até a guerra, pois que esta alterou mesmo a ciência —, dotara a sociedade antiga da liberdade individualista, foi quem mais elevou a condição da mulher no lar, mas não na sociedade, isto é, no que diz respeito à sua posição social, a qual ficou exteriormente sendo inferior à do homem. A emancipação da mulher, mesmo no terreno jurídico, é coisa muito mais moderna, pode mesmo dizer-se que recente, e é o resultado do espírito de tolerância que produz a instrução.

Entrou primeiro a reconhecer-se a igualdade das faculdades, logo a das capacidades, depois a dos direitos, até chegar a dos deveres, que é a parte mais árdua, mesmo porque a galanteria masculina, quando assim se quisesse exercer, não mais poderia subtrair o outro sexo às obrigações assumidas. A guerra, que há pouco terminou, legou o homem ciumento da mulher, não mais por motivos sentimentais, mas por causa da sua competência comprovada pelos salários auferidos. A mulher vai portanto continuar a ser maltratada, se não mais por motivos bíblicos e pela pena de prosadores sacros, pelos seus adversários políticos, pelos concorrentes aos lugares públicos, pelos seus antagonistas, ontem no afeto, hoje no interesse.

São os ossos do ofício, ou antes dos ofícios, e força é que se resigne, preparando-se para a luta e adquirindo desde a competência profisional doméstica, pois que ela nunca deixará de ser a dona da casa — regalia que lhe não é disputada pelo que de trabalhosa, mesmo quando constitucionalmente exercida — até a alta cultura literária e científica, capaz de formar uma Madame de Stáel ou uma Madame Curie.

Algumas das acusações são contudo tão arraigadas que já parecem identificados os defeitos que visam com a natureza feminina. Quem não culpa por exemplo a mulher de indiscreta? Entretanto, não me esqueço o que me confessou uma vez meu chefe cm Washington, Salvador Mendonça cuja vista precária o obrigava a empregar secretárias particulares para a leitura e correspondência, duas invariavelmente, uma para o inglês e outra para o português. De uma feita tomou um secretário: pois foi o único tempo, nas suas palavras, em que se revelaram aos jornais assuntos reservados da legação. As secretárias tinham sabido resistir heroicamente aos repórteres e manter-se mudas; de igual continência de língua não foi capaz o senhor secretário.

O escolho a evitar na organização de uma escola como esta, era que ela ministrando embora uma educação secundária geral se transformasse numa academia ultradoméstica. Não há nada de mais difícil do que as coisas simples. Parece-me que essa dificuldade foi vencida e que se manteve a compreensão exata do que é c deve de ser uma escola doméstica, sem lhe forçar o prosaísmo que debalde se buscaria aqui. Sobre esta instituição paira a memória de um espírito gentil que cedo em demasia se desprendeu da terra e cujo influxo poético, emanado da região misteriosa onde se devem congregar as almas associadas pela comunidade dos sentimentos e pela afinidade dos sonhos, deve ser inspirado o Dr. Henrique Castri-ciano na sua generosa concepção.

Anos há que êle cm Bruxelas se entreteve descrevendo-me o seu projeto, na execução do qual pôs o que não costuma ser uma virtude brasileira, a saber, a perseverança. Lutou pela realização do seu ideal; não se deixou abater pelas primeiras inevitáveis decepções, e eis aqui em plena florescência o empreendimento que tanto o honra, tanto realce empresta à Liga do Ensino que o amparou, e tanto crédito projeta sobre a administração do preclaro governador que compreendeu a importância do melhoramento e o perfilhou, dele fazendo um modelo, como está tratando de tornar modelar o serviço de assistência social que nobilita a humanidade^

Este Estado parece ter compreendido — e neste ponto serve-nos a todos da federação de exemplo e estímulo — aquilo que devemos sem exceção compreender: que não é possível organizar-se uma democracia sobre as bases da eqüidade e da verdade com 80% de analfabetos na sua população. O deputado federal que no Congresso se fêz conhecidamente o paladino do progresso, na União, da instrução pública, é um deputado do Rio Grande do Norte; e assim ocorre porque no seu meio local encontra o Sr. Dr. José Augusto correspondência para seu nobre e fecundo ideal.

Antes mesmo de eu ter a fortuna de aqui vir, sabia que a vossa Liga do Ensino, presidida pelo mais digno dos magistrados, honra da sua classe e coluna da justiça, se esforçava — apenas não podia ainda saber quanto — no sentido de promover a difusão das escolas, tendo até cuidado de uma instituição única no país, como esta Escola Doméstica, que se tornou a pérola do Estado, que foi a razão ou o pretexto da minha gratíssima visita a uma terra tão hospitaleira e tão simpática, e que o Brasil todo estará amanhã copiando, quando lhe perceber as vantagens educativas e o largo alcance social.

A civilização reclama instituições como a Escola Doméstica de Natal, porque aquilo que antigamente, sabendo-o de instinto, a mulher cultivava intensamente no lar, que era o seu domínio vedado a estranhos e donde raramente saía, hoje tem que procurar aprendê-lo em outra escola e com orientação científica em estabelecimentos públicos, desde que a vida de família tomou um aspecto todo exterior.

Para coroar a série dos inimigos da reclusão doméstica veio o cinematógrafo. A tradição das excelentes donas de casa, empíricas mas diligentes e devotadas que foram nossas avós e nossas mães, e que pelo impulso adquirido ainda são nossas esposas, estava pois ameaçada de perder-se se a não recolhesse e perfilhasse o Estado, fornecendo-lhe a continuidade c duplicando-lhe a valia por meio da obra de benemerência pedagógica que aqui já se acha pode dizer-se executada.

Este estabelecimento teve ainda a dita de deparar com a diretora que mais e melhor lhe convinha. Disse Bergson, a meio dos ditirambos sugeridos em França pelo concurso militar americano, que ia decidir da guerra, que são os americanos a raça mais idealista do mundo. De então para cá deve ter-se modificado seu conceito e talvez que se haja reduzido às suas verdadeiras proporções, as quais seriam que os americanos combinam no seu coletivo, em um feliz equilíbrio, a feição ideal e a feição prática. Há 20 anos que o verifiquei e o externei num livro. Increpa-se o americano de materialista e êle aparece o único despido de cobiças: louva-se sua espiritualidade e êle surge com o senso preciso das realidades.

A mulher americana mostrou, antes do que nenhuma outra, do quanto era capaz o seu sexo no terreno da formação da inteligência e da vontade da mocidade. Ela possui muito aperfeiçoado o instinto educativo, feito de suavidade magnética e de firmeza no querer, que incute confiança e desperta diligência, a que não falta religiosidade porque a fé na missão a cumprir é consubstancial e que se traduz por um senso positivo e uma percepção lúcida do modo de desempenhar essa missão. Vejo que mesmo sem intenção fiz o retrato da vossa diretora, Miss Leora James, a quem a Escola Doméstica de Natal deve muito da sua atual prosperidade porque, elevando o cargo que lhe foi em boa hora confiado à altura de um apostolado, ^lhe tem dedicado toda a sua energia e toda a sua bondade.

Não é mais lícito pôr em dúvida a energia da mulher que na crise por que acaba de passar o mundo, não só fabricou munições de guerra como soube usá-las, exercendo o único ofício que lhe parecia vedado, que era o de soldado. Também se dizia que lhe estava defeso o de bispo, tanto que falta o feminino para esses dois substantivos; mas já na Inglaterra, onde à mulher foi concedida a participação na vida política, lavra agitação para que a mulher possa preencher lugares no sacerdócio da Igreja Estabelecida e subir à tribuna sagrada, aí desenvolvendo o seu poder de persuasão.

Da eficiência deste poder e da capacidade administrativa da mulher é esta escola um exemplo vivo, do qual levo a mais agradável recordação, cabendo-me expressar-vos o meu reconhecimento pelo acolhimento que me dispensastes e pela satisfação que me proporcionastes.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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