Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)
História do Brasil
Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.
CAPÍTULO I – O descobrimento
A história dos tempos primitivos do império do Brasil é tão desconhecida e obscura como a dos Estados Unidos da América do Norte, até ainda mais, pois nem ao menos um raio de luz penetra ali a espessa treva.
Acontece, entretanto, ter chegado ao nosso conhecimento um ou outro monu mento, que atesta fatos de remota antiguidade.
Ê assim que, não longe do Tejuco, no Distrito Diamantino, Minas Gerais, mostraram os habitantes ao viajante Saint-Hilaire uma inscrição representando principalmente aves, em cor vermelha, sobre rocha polida, e havida desde tempos imemoriais como originada dos autóctones. "Mas — observa o excursionista francês — foram essas as únicas antigualhas americanas que pude ver em minha dilatada exploração (por todo o quadrante sueste do império)".
Em compensação, outro explorador, Koster, encontrou mais para o norte, no Ceará, um certo padre, que havia copiado hieróglifos idênticos; e os acadêmicos de Munich, Spix e Martius, descobriram na serra do Anastácio, sertões da Bahia, uma serie de escritas grosseiramente esculpidas na rocha viva; e consta que nas mal exploradas solidões piauienses possam existir inscrições rúnicas do mesmo tipo,
Analogamente na bacia do Amazonas, não longe da fronteira ocidental do Brasil, na província do Alto Amazonas, à margem do rio Japurá, verificaram estes últimos viajantes a existência de-uma rocha coberta de insculturas, representando figuras humanas e outras, que se destacam pela clareza, precisão e certa perícia de execução, gravuras idênticas e debuxos singelos foram recentemente encontrados pelo naturalista inglês Wallace em Monte Alegre, no Amazonas (Província do Pará), nos rios Negro e Uaupés.
Baste, porém, esta breve enumeração; certamente ainda outras inscrições análogas em monumentos diversos hão de ter sido descobertos; por exemplo, Elias Herckmann diz que em 1641 encontrou no interior de Pernambuco pedras la-vradas e amontoadas, à feição dos túmulos dos hunos na Holanda; e o dr. Alexan-dre Ferreira (fins do século XVIII) diz que viu também numa grande gruta, em Mato Grosso, baixos-relevos artificiais, de mistura com as formações estalactíti-cas; e quando, algum dia, o gigantesco império for explorado mais minuciosamente em todas as parles componentes do seu território, sem duvida alguma o número desses documentos iconologicos, crescerá notavelmente; não obstante, a
história nada terá que lucrai com isso. É certo que, na maioria dos casos, pro cedem tais monumentos de uma raça indiana, já desaparecida, ou emigrada para muito longe, e constituem eterno mistério, tanto para os seus atuais íncolas como para o branco descobridor. E quando tal não se dê, isto é, suposto que ainda seja a mesma raça a possuidora do terreno, que com os seus debuxos sagrou, os seus descendentes já de há muito olvidaram o sentido literal emprestado por seus ancestrais a tais inscrições, se não as degeneraram em lenda.
Mas, dado mesmo que lhes penetrássemos o verdadeiro significado, — que aprenderíamos nós com elas senão os mínimos fatos, referentes a uma população de índios, que nunca viveu num grande meio de importância histórica, e cujo nome, ao cabo de algumas gerações, terá por completo desaparecido?
Cumpre, contudo, que nos detenhamos um instante a estudar alguns desses monumentos, que, não sendo embora, como os já citados, obra do engenho humano, revelam, todavia, para o Brasil uma expressão histórica. É fato conhecido que em todo o mundo se têm encontrado pronunciadas depressões na superfície de rochas, que de alguma forma se assemelham, por admirável capricho da natureza, à impressão do pé ou da mão do homem. Lembremos apenas as pegadas de casco de cavalo, a impressão de pés e dedos, que se vêem por todo o solo da Europa, e que são atribuídas pela lenda a uma raça de gigantes desaparecida; na Ásia as pegadas no Pico de Adão, da ilha de Ceilão, que se atribuem ao deus Buda; e na América, os naturais mostram com misteriosa reverência, em vários lugares, idênticas pegadas, produzidas por Bochica, o homem santo dos Muíscas (Nova Granada), ou de Quetzalcoatl, o divino reformador dos Toltecas (México).
Igualmente no Brasil: também aqui os índios amigos na província da Bahia apontaram ao jesuíta português Manuel da Nóbrega, por volta de 1550, assim como antes e depois disso em outros sítios a outros descobridores, fortes pegadas impressas na rocha viva, e contaram a respeito uma lenda muito antiga e já meio esquecida. "Havia muito tempo que — refere essa lenda — apareceram no país dois santos homens, dos quais um se chamava Zomé (Sumé), e ensinaram os seus habitantes a cultivar a terra, especialmente o plantio e uso da mandioca; entretanto, os antepassados descontentaram-se com os seus benfeitores e perseguiram-nos de arcos retesados.
Aí manifestou Zomé o seu poder divino: as flechas que o alvejavam retrocediam e traspassavam os seus perversos atiradores; as matas e os rios abriam-se, a fim de dar livre caminho ao deus fugitivo. Destarte, abandonou Zomé a terra, cansado da ingratidão dos homens; prometeu, porém, voltai e, para sinal da pro messa feita, imprimiu a sua pegada na rocha".
Essa lenda índia forneceu base para uma fabulosa pré-história do Brasil.
Naquela época, princípios do século XVI, os descobridores euopeus, levados por uma falsa ciência ia, muitas vezes compreendiam mal os nomes indo americanos, de que os aborígines se serviam, divulgando neles outro sentido, mais condizente com as suas teorias, desejos e intenções.
Sabemos que Colombo julgou ouvir dos habitantes do Haiti, Cuba e Verágua nomes de cidades da China e do Indostão, que Marco Pólo visitara e descevera haverá, pois, motivo para nos admirarmos de que também os portugueses no Brasil houvessem reconhecido em Zomé um dos 12 apóstolos, São Tomé: Tanto mais que antes haviam visto nas índias Orientais, imensamente fora do âmbito da Igreja cristã, comunidades de cristãos filiados a São Tomé. Daí nasceu, talvei a princípio sem querer, um equívoco histórico, de que se aproveitaram em breve, conscientemente, os sacerdotes católicos, justificando-o com empenho inteiro de uma falsa erudição e desenvolvendo-o em avantajada legenda. Cristo disse l seus discípulos: "Ide por toq^p o mundo e pregai o Evangelho a todas as criaturas" "Portanto — assim argumentava o jesuíta Vasconcelos (1589) — deve também ter vindo um apóstolo à América e especialmente ao Brasil; e quem poderia ter sido senão São Tomé?" "E justamente para este apóstolo, — assim pregava outro, o padre Vieira, — foi a missão no Brasil uma merecida expiação, pois que havia, com obstinada descrença, duvidado da ressurreição de Cristo e, daí, lhe haver competido converter os povos mais endurecidos e descrentes do mundo.
As rochas do Brasil conservaram a sua lembrança; porém nos corações dos naturais não se encontra vestígio da crença que ele lhes comunicou!"
Para os crentes, era certo que São Tomé veio ao Brasil como evangelizador, e a piedosa superstição ou a piedosa ilusão explorou, um após outro, os referidos sinais como confirmação do fato. Ora aqui, ora ali, descobria-se a sua pegada, a impressão do seu cajado de pastor, da cruz ou uma inscrição; mais para oeste, nas regiões remotas de Goiás ou Mato Grosso, existia até, assim diziam, um roche do que encerrava todos os instrumentos da Paixão.
Continua a peregrinação lendária desse missionário através do Brasil até ao Peru e, para coroamento, fez-se finalmente o vulcão Arequipa lançar intatas a capa e as sandálias do santo.
Basta, porém, dessa lenda pouco interessante: lancemos um olhar aos primi tivos povos que habitaram o Brasil. A própria fábula da vinda e expulsão de Zomé parece mostrar que, noutros tempos, penetraram no país elementos de cultura, ou, talvez mais exatamente, que os aborígines da época do descobrimento tenham expulsado do seu habitat um povo mais culto e mais antigo, ao mesmo passo que lhe assimilavam uma parte dos conhecimentos e costumes.
Associando essa hipótese com as inscrições simbólicas, com as pedras amon toadas e outros monumentos enigmáticos, que referimos, talvez se possa admitiu haja sido o Brasil, como sucedeu ao interior dos Estados Unidos da América do Norte, habitado em época pré-histórica por um povo desaparecido, superiot em seus hábitos e artes a seus sucessores, se bem que, de muito, inferior aos primi tivos expoentes da civilização americana, os povoadores do altiplano do Peru, Nova Granada, América Central e México.
Com essa hipótese concordam, até certo ponto, os testemunhos dos mais antigos escritores, segundo os quais os dois agrupamentos de povos, que habita vam o Brasil no tempo do seu descobrimento, declaravam um ao outro como invasor ; é, pois, provável que sejam ambos estranhos ao elemento primitivo e aos traços de sua documentação iconográfica. E também se distinguiam bem um do outro, embora vivendo em acentuada mistura ou vizinhança.
Os denominados Tapuias (inimigos) ou índios do mato dos quais os mais conhecidos eram no litoral os Aimorés ou Botocudos (assim chamados devido ao uso de um batoque introduzido no lábio inferior ou nas orelhas) e no Alto Amazonas os Muras ou Mundrucus2, eram indiscutivelmente os mais atrasados; viviam da caça e da pesca, não sabiam cultivar a terra, alimentavam-se, em geral, com os seus produtos espontâneos, e até em caso extremo saciavam a fome com certas espécies de terra. Habitavam em comum, porém em grupos os mais reduzidos e levavam vida errante; daí não admira que os descobridores houvessem entre eles contado 76. ou até 100 diferentes nações e idiomas.
Quanto ao segundo grupo de povos — a raça Tupi-Guarani, ou "índios mansos", compreendia três grandes subdivisões: os Tupis, fixados no planalto interior e nas costas; os Guaranis, do vale do Prata; e os Omáguas, do Alto Amazonas; cada subdivisão, por seu turno, se diferençava em várias tribos; todas, porém, se uniam por estreita identidade de linguagem, tanto assim que, com o decurso do tempo, a língua guarani, com alguns acréscimos de outros dialetos, pôde converter-se na "língua geral", para a maioria dos índios sul-americanos.
Todas essas nações tupis-guaranis, no que respeita à civilização, estavam um passo à frente dos Tapuias, achavam-se mais ou menos no mesmo nível dos índios norte-americanos: sabiam cultivar e usar o milho e a mandioca; esse trabalho era, porém, tido por secundário e era confiado às mulheres; estas também se ocupavam em fiar e tecer o algodão, em fabricar utensílios domésticos de barro, e preparar toda espécie de adornos para se enfeitarem a si e aos guerreiros. Os homens, quando muito, tomavam o encargo de roçar o matagal bravio, construir as choças e canoas; no mais, entregavam-se à caça, à pesca, quando não à ociosidade.
Ao contrário dos Tapuias, congregavam-se os Tupis em grandes núcleos, chegando a 5.000 almas; possuíam vastas aldeias defendidas com fortes paliçadas; contudo, também eles raro se demoravam muitos anos no mesmo lugar, naturalmente pelo fato de esgotar-se em breve a caça nas proximidades.
Esse constante nomadismo, mais ou menos habitual nos índios do Brasil, produzia, tanto antes como depois da chegada dos europeus, como é natural, os mais variados contatos entre as tribos vizinhas, aparentadas ou não.
Se acaso sucedia uma tribo expulsar outra da sua sede territorial, em conseqüência disso originava-se uma interminável série de alianças e contra-alianças, triunfos e derrotas.
E nessas desavenças davam expansão aos instintos da mais bárbara ferocidade; os Tapuias abatiam os seus adversários, até por flechas ervadas de veneno; e, conquanto os da raça tupi não empregassem tal processo, era, entretanto, de uso, tanto deles como do inimigo, dar morte cruel e devorar aos prisioneiros de guerra, até mesmo às crianças3, fruto da união do prisioneiro com uma das raparigas da própria raça dos vencedores.
Desde então, o sagrado dever da vingança de sangue tornava-lhes eternamente impossível uma reconciliação duradoura; a inimizade, a luta de vida e de morte, não se extinguiam senão quando uma das nações inimigas era completamente exterminada. Debalde se esforçaram os missionários jesuítas por acabar com isto e fazer vigorar um direito internacional entre os povos silvícolas; conseguiram, na verdade, atrair algumas das principais raças, reuni-las sob a forma de aldeamentos fortificados, e habituá-las ao regime de vida estável da lavoura; sobre a maioria do gentio, porém, eles quase nenhuma influência tiveram, ou, pelo menos, foi muito passageira; a velha usança — a guerra de todos contra todos — prosseguiu sempre, e os colonos europeus, uma vez postos em contato com os índios, viam-se, na maioria dos casos, na contingência de praticar esses mesmos bárbaros processos da guerra de extermínio.
Por outro lado, esses aldeamentos de índios, fundados pelo zelo piedoso dos sacerdotes católicos, caíram, quase todos, em ruínas; em certa época, foram essas aldeias indígenas muitas vezes destruídas e saqueadas por bandos de colonos da vizinhança; seus moradores eram levados para escravos, de sorte que os santos padres se viram muitas vezes forçados a tomar o cajado do peregrino, seguidos de milhares de famílias conversas, à procura de nova pátria, além das fronteiras do Brasil, no Paraguai; as restantes povoações missioneiras, que resistiram ao embate, pouco duraram, contudo: uma vez retirado o amparo espiritual e colocadas sob a administração civil, para logo caíram em decadência ou mesmo em ruínas.
Destarte, avalia-se atualmente o total dos povos índios deste colossal império apenas em 500 mil almas, das quais mui poucas são as que se aproximam dos costumes europeus, vivendo ao lado e no meio de colonos brancos, misturando-se com eles cada vez mais no caldeamento das raças. Os outros, ao contrário, conservaram inteiramente o seu primitivo estado selvagem; acham-se dispersos por toda parte, no interior do império brasileiro; algumas pequenas tribos ainda habitam nas mais populosas províncias do planalto e da costa, em imediata vizinhança dos povoadores brancos, porque os brasileiros, de fato, não repeliram os índios, como fizeram os anglo-saxões, no Norte, mas contentaram-se, ao desbravar o seu trato de terra, em que os naturais se retirassem para regiões mais ínvias, para a espessura impraticável da floresta, afugentados pelo eco dos golpes do machado e pelo estampido do fuzil.
A grande maioria deles habita agora, em geral, o longínquo ocidente e o se-tentrião, nas bacias do Prata e do Amazonas, já caçadores e pescadores, já cavaleiros hábeis, nos intermináveis pampas sul-americanos, em correrias de um lado para outro, das antigas terras castelhanas para as terras brasileiras da fronteira.
O destino de todos eles está fora de dúvida: à medida que se tornarem mais densas as colônias situadas no litoral e no planalto central, que as florestas virgens primitivas forem clareadas — pois que, até hoje, mesmo as principais províncias são fracamente colonizadas — o branco, em breve, desalojará, por bem ou por mal, o vizinho selvagem, que até então ali havia achado abrigo. E quando, por fim — como pode suceder e se dará por certo, — uma forte e contínua corrente de colonos europeus for subindo pelo Prata a tomar posse das suas férteis planuras, então ali também não haverá mais refúgio algum para o selvagem.
Somente nas solidões das florestas tropicais da bacia do Amazonas, onde uma imigração européia imediata é inconcebível e impossível, e onde uma futura colonização brasileira, partindo do litoral para o sertão e remontando o curso do Prata, só poderá penetrar muito lentamente, e depois de longo prazo, — ali terão ainda os indígenas, por séculos, espaço livre; mas ainda aí mesmo, um dia, fatalmente soará para eles a hora derradeira, e desaparecerá da face da terra o caboclo do Brasil, com poucas exceções de alguns restos sem pátria, tal qual o pele-ver-melha dos Estados Unidos.
* * *
Voltemo-nos, agora, da raça que, nos primórdios, ocupava o continente brasileiro, para o povo que, daqui em diante, vai receber a sua herança.
Nos últimos séculos medievais, salientavam-se, como se sabe, de todas as nações européias, os povos da Península Ibérica, na ciência da navegação e aventuras náuticas bem sucedidas, principalmente no oceano Atlântico sul.
Entre eles, estavam, a princípio, em evidência, os catalães; era a ilha de Majora, especialmente desde o século XIII, o centro de todos os conhecimentos científicos na difícil arte de navegar.
Desde muito antes de 1286, serviam-se os majorquinos e catalães da carta marítima; fabricavam-se na Majorca instrumentos náuticos, pelo sistema de Raimundo Lull, sem dúvida muito incompletos ainda, mas que serviam para determinar a bordo dos navios o tempo e a altura do pólo; e daí se espalharam esses conhecimentos, tomados originariamente dos árabes, a todos os povos da bacia do mar Mediterrâneo.
Contudo, a partir do começo do século XV, passou a hegemonia, em todos esses assuntos, dos catalães para os portugueses; animados e estimulados pelo infante d. Henrique, o Navegador, falecido em 1463, vieram estes últimos a constituir um povo de marinheiros audazes e bem sucedidos; de perto e de longe, afluíram à corte de Lisboa homens de ciência e de experiência, a fim de concorrerem com os jseus conhecimentos; e assim se iniciou uma série de importantes descobrimentos, coroados finalmente com o do caminho marítimo para as índias Orientais, em 1497-98, por Vasco da Gama. Eis que súbito Portugal perdeu a dianteira, todos os seus sucessos ficaram na sombra, diante do espírito audaz do genovês Colombo, que, sob o pavilhão de Castela, foi o primeiro a atravessar o oceano Atlântico e a abrir para as atividades da raça européia um Novo Mundo — as índias Ocidentais e a terra firme da América, 1492-1498.
Portugal e Espanha duplicaram quase, por esta forma, os conhecimentos geográficos daquela época; entabularam importantes e vantajosas relações com países até então quase inatingíveis para os europeus, se não de todo ignorados; nada mais natural que exigissem como recompensa a posse única e o monopólio do comércio com essas partes do mundo.
Com este objeto apelaram para a Santa Sé, que, segundo o espírito da época, tinha o direito de dispor dos países e dos povos da Terra, livre e ilimitadamente, sobretudo dos que se achavam fora do círculo das nações cristãs.
Assim, primeiro o infante d. Henrique, como grão-mestre da Ordem de Cristo lusitana, conseguiu do papa Calixto III a bula de 8 de janeiro de 1454, pela qual todas as terras então e de futuro descobertas, desde os cabos africanos Não e Bojador até às índias, seriam adjudicadas ao Grão-Mestrado da Ordem de Cristo, — doação que o papa Xisto IV confirmou em segunda bula, de 21 de junho de 1481, e das quais a coroa portuguesa se apossou, pelo fato de haver incorporado esse Grão-Mestrado, após o falecimento do infante d. Henrique. Concessão semelhante vieram a solicitar, depois, os soberanos católicos da Espanha, Fernando e Isabel, e justamente na cátedra de São Pedro sentava-se então um espanhol, Alexandre VI, que, de boa mente, por uma bula de 3 de maio de 1493, concedeu aos monarcas espanhóis, quanto aos seus descobrimentos americanos, o mesmo que seus antecessores haviam concedido aos portugueses, quanto aos descobrimentos africanos.
E, no intuito de prevenir qualquer constestação futura, publicou o mesmo soberano pontífice, dias após, outra bula, pela qual se tomou por linha divisória um meridiano situado 100 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde e Açores; tudo o que fosse descoberto para o poente dessa linha pertenceria aos espanhóis; e ao oriente à coroa de Portugal.
Por esse meio seria este último país inteiramente excluído do continente ocidental. Mas o rei d. João II não se conformou; levou o seu protesto perante a Cúria Romana e junto à corte de Castela, pela extrema redução sofrida nos legítimos direitos de conquista de seus antepassados, como pelo cerceamento ao espírito empreendedor dos navegadores lusitanos; e, efetivamente, por meio de algumas negociações, obteve uma importante ampliação da concessão.
Pelo tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, sancionado 12 anos mais tarde, a 24 de janeiro de 1506, por uma bula do papa Júlio II, o rei católico concordou em renunciar à linha de demarcação do papa e em admitir outra nova linha, que seria traçada 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.
Essa linha, tomando-se para referência o ponto extremo oeste desse grupo de ilhas, corresponde mais ou menos ao grau 31° de longitude ocidental da ilha do Ferro e passa somente na América do Sul, primeiro ao norte da ilha de Marajó e não longe da cidade de Belém (província do Pará), e ao sul muito perto da cidade e baía de Paranaguá (província do Paraná) e, finalmente, pela cidade e baía de Laguna (província de Santa Catarina).
Nessas condições, tornou-se possessão da coroa de Portugal, em virtude de um tratado e do arbitramento papal, quase todo o planalto interior do Brasil, com a estreita vertente do Atlântico, além da costa e ilhas de São Paulo e de Santa Catarina, ao passo que ao rei católico de Espanha coube todo o restante da América, especialmente do continente brasileiro as duas bacias do Amazonas e do Prata.
Verdade é que nenhuma das duas nações ibéricas sabia então o que havia ganho ou perdido com isso, pois só mais de cinco anos decorridos sobre o tratado de Tordesilhas chegaram os primeiros descobridores europeus às costas do Brasil.
* * *
Primeiramente foi um espanhol, Vicente Yánez Pinzon, companheiro de Colombo na sua primeira expedição, que agora se lançava, por conta própria, à aventura dos descobrimentos. Em dezembro de 1499, zarpou com quatro caravelas do porto de Paios, seu berço natal, navegando para o SO, até que — primeiro europeu a arriscar-se por essas paragens — passou o equador e perdeu de vista a estrela Polar. Por fim, avistou para o ocidente um grande promontório, junto do qual desembarcou a 20/26 de janeiro ou 20 de fevereiro; era o cabo de Santo Agostinho (província de Pernambuco), que foi por ele denominado Cabo de Sanda Maña de la Consolación, e ulteriormente por outros descobridores Rostro Hermoso ou Cabo de Sanda Cruz, e é o ponto extremo oriental do continente sul-americano.
Depois de haver Pinzón tomado posse da terra para a coroa de Castela, e feito gravar inscrições em rochas e em árvores, tendo ainda procurado, debalde, travar relações amistosas com os naturais, fez-se novamente de vela e navegou em rumo do NO, ao longo da costa. Assim descobriu, primeiro, a foz do rio Maranhão (província do Maranhão), onde teve de empenhar-se com os índios em porfiada escaramuça; e depois atingiu um "Mar de águas doces", no ponto em que a vigorosa massa do rio Amazonas se mete como uma cunha, na extensão de várias léguas, pelo oceano a dentro; e finalmente alcançou na fronteira norte o rio O ¡apoque, que hoje separa o império do Brasil da Guiana Francesa. O prosseguimento da sua viagem ao longo da costa colombiana e às índias Ocidentais não cabe aqui; queremos apenas mencionar que, em fins de setembro de 1500, Pinzón regressou a Paios e, como recompensa de seus serviços, lhe foi conferido, por decreto real de 5 de setembro de 1501, em nome da soberania da Espanha, o direito — de que não fez uso algum, entretanto, — de colonizar e governar as terras por ele descobertas.
Poucas semanas depois de Pinzón, surgia em águas brasileiras, ao norte, segundo espanhol, Diego de Lepe, que provavelmente, zarpou nos últimos dias de 1499 do porto de Paios; também este alcançou o cabo de Santo Agostinho, bordejou pelo mesmo cabo rumo sul, descobrindo deste modo que a costa do outro lado do promontório corria para SO.
Assim, graças a de Lepe, já se tinha, desde 1500, a idéia da configuração de pirâmide que apresenta a América do Sul. Pena é que não tivesse prosseguido na derrota, que lhe teria aberto caminho para novos descobrimentos; também voltou, como Pinzón, para o N e deixou a costa brasileira.
Antes, porém, que ambos os espanhóis houvessem regressado ao porto de origem, apareceu em latitude mais meridional uma armada portuguesa, que ia levar adiante os seus descobrimentos.
Alguns meses antes, a 10 de julho de 1499, havia tornado ao Tejo o descobridor do caminho das índias Orientais, Vasco da Gama; diante do seu relatório, resolveu el-rei d. Manuel de Portugal (1495-1521) mandar uma nova frota pelo mesmo caminho, a fim de estabelecer relações permanentes e fundar feitorias em Calecut, e assim a 9 de março de 1500 treze navios saíram da embocadura do Tejo. O seu almirante, Pedro Álvares Cabral, recebeu instruções, dadas pelo próprio Vasco da Gama, de afastar-se, na altura de Guiné, o mais possível da costa africana, a fim de evitar, deste modo, as calmarias ardentes e insalubres daquela região; e Cabral tomou o conselho. Pelo fato, porém, de levar o rumo demasiado a O, a sua esquadra veio dar na corrente marítima conhecida pelo nome de "corrente brasileira", e esta a conduziu, embora um pouco mais ao S, à mesma costa que Pinzón e de Lepe haviam deixado algumas semanas antes.
Foi na semana pascoal, a 22 de abril de 1500, que a gente de Cabral avistou de bordo das naus, a O, uma terra desconhecida — ou, como a princípio se supôs, uma grande ilha — sendo que, em primeiro lugar, um monte alto, de forma arre dondada; da parte do S prolongava-se por uma cadeia de montanhas (serra dos Aimorés); as encostas, levemente inclinadas, eram cobertas de grande mata. O almirante considerou adequado dar a esse monte o nome da festa, em cuja semana justamente se achavam; daí ter-se-lhe posto o nome de monte Pascoal; e deu à terra descoberta o de terra da verdadeira cruz, "Terra da Vera Cruz".
Ainda no mesmo dia, foi de bote à terra, onde os silvícolas, em multidão cerrada, haviam acudido para saudar o navio estrangeiro; debalde, entretanto, procuraram entender-se com eles por meio de intérpretes, em dialetos asiáticos e africanos. Cabral resolveu, então, dar a seus navios nestas novas costas uma pequena folga e completar o seu abastecimento; navegou ao longo da costa, rumo N, a fim de procurar um bom porto, e a cerca de 10 léguas do monte Pascoal achou uma baía que assegurava bom ancoradouro à sua esquadra, reduzida a 12 naus, pois que uma se havia perdido pelo caminho — e a que, assim, deu o nome de Porto Seguro, que até hoje se conserva (província da Bahia).
Ali permaneceu a frota oito dias, travando relações com os indígenas, fazendo aguada e abastecendo-se do que precisava; mas o que aí se fez de mais importante foi que na sexta-feira, l9 de maio de 1500, mandou Cabral erguer, num outeiro, onde ficava visível de grande distância, uma grande cruz de madeira, com as armas e a divisa do rei d. Manuel; fez celebrar missa solene, e tomou então posse da nova terra em nome da coroa de Portugal.
No dia seguinte, 2 de maio, prepararam-se para continuar a derrota, deixando na terra dois criminosos, condenados à deportação, a fim de aprenderem o idioma dos naturais e mais tarde poderem servir de intérpretes.
Cabral prosseguiu na sua viagem para as índias Orientais com 11 naus; Gaspar de Lemos, que comandava a 12*, foi encarregado de levar imediatamente à corte de Portugal a boa nova e o relatório oficial, que o escrivão da frota 4 "A, Pero Vaz de Caminha, havia redigido.
Gaspar de Lemos, nessa viagem de regresso, seguiu provavelmente a costa brasileira até ao cabo de São Roque (província do Rio Grande do Norte); e com isto se estabelecia a continuidade entre os descobrimentos de Pinzon e de Lepe, por um lado, e de Cabral, por outro.
Pode-se imaginar a alegre surpresa que produziu em Lisboa a nova levada por Gaspar de Lemos, pois era o segundo continente aberto, no espaço de poucos meses, pelo espírito empreendedor da nação portuguesa. Na verdade, do que até então era conhecido, não se podia comparar o Brasil com o Indostão; o trato com as suas hordas bravias prometia muitíssimo menos que o dos antigos povos civilizados daquela península; logo se aferiu, porém, à primeira vista, a importância de uma terra situada, por assim dizer, a meio caminho do cabo da Boa Esperança, para a navegação para as índias Orientais — podemos acrescentar agora, para a navegação às costas orientais americanas e à Austrália — e já el-rei d. Manuel chamava a atenção para isso aos seus reais vizinhos, na sua carta de 29 de julho de 1501, em que lhes dava parte desse descobrimento.
Sob tal ponto de vista, era já de importância prosseguir nas iniciadas explorações da costa; e para esse fim zarpou da foz do Tejo, a 10 de maio de 1501, uma segunda frota, constante de três velas. É ainda incerto qual fosse o seu comandante: em todo caso, o homem mais eminente nela embarcado era o cosmógrafo Américo Vespucci, de Florença, que, antes, na comitiva de Alonso de Hojeda (maio de 1499 a. meados de junho de 1500) e sob a bandeira espanhola, havia explorado as costas da Guiana e da Colômbia, e que, agora a convite especial do rei, havia entrado para o serviço de Portugal.
Na altura de Cabo Verde, toparam estas embarcações com a frota de Cabral, de regresso das índias; daí rumaram para o poente, tocando a costa brasileira na> alturas do cabo de São Roque, no dia desse santo, 16 de agosto de 1501. Prosseguiram para o sul, ao longo da costa, e deles provavelmente procedem as denominações dos seguintes acidentes geográficos, que aplicaram à proporção que os iam descobrindo, com o calendário católico romano na mão: cabo de Santo Agostinho, 28 de agosto; rio São Francisco (?); cabo São Tomé, 18 de setembro, e Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1501, na província deste nome; na província de São Paulo, a ilha de São Sebastião, 20 de janeiro de 1502, o porto de São Vicente, 22 de janeiro, e finalmente a baía de Cananéia. Na altura da província do Rio Grande do Sul, ou talvez do vizinho Uruguai (cabo de Santa Maria, 34-359 latitude sul), deixou, enfim, Vespucci a costa sul-americana, a 13 de fevereiro, a fim de tomar rumo de regresso, descrevendo larga curva para SE, e, depois de longa e tormentosa travessia, alcançou ele felizmente o ancoradouro de Lisboa, a 7 de setembro de 1502.
No ano seguinte, acompanhou Vespucci a segunda expedição portuguesa, que foi lançada provavelmente sob o comando de Gonçalo Coelho, a 10 de maio de 1503, a fim de procurar um caminho ocidental para a península de Malaca, ou as Molucas. Na verdade, essa expedição não realizou essa missão, contudo enriqueceu consideravelmente os conhecimentos possuídos até ali sobre o Brasil.
Primeiramente foi descoberta a ilha de Fernando de Noronha, em cuja vizinhança a nau almirante soçobrou e dispersou-se a frota; ali ficou Vespucci algum tempo ancorado, para tomar novas provisões de víveres; prosseguindo depois na sua derrota com as duas naus que lhe restavam, alcançou a baía de Todos os Santos (província da Bahia) a l9 de novembro de 1503 e navegou ainda umas 260 léguas, descendo ao longo da costa.
Aí, nas vizinhanças de Porto Seguro, demorou-se uns cinco meses em amistosas relações com os indígenas; em companhia destes, alguns marujos foram pelo país a dentro cerca de quarenta léguas; foi construída a feitoria fortificada de Santa Cruz — o primeiro estabelecimento português no Brasil — provida com o necessário armamento e abastecimento de gêneros alimentícios por seis meses, e vinte quatro homens da equipagem ficaram ali de guarnição; Vespucci carregou o seu navio de madeiras de tinturaria e, após 77 dias de viagem de retorno, entrou no Tejo a 28 de julho de 1504. Por esta forma, toda a extensão costeira do atual império ficava conhecida em seus lineamentos gerais; mas o principal merecimento de Américo Vespucci é o de haver reconhecido que não podia esta terra ser uma "ilha de Vera-Cruz", como a princípio Cabral supôs; que, ao contrário (conforme ele expressava em sua carta de 4 de julho de 1501), estava-se "diante de uma parte do mesmo país", "que eu antes descobri para o rei de Castela, apenas mais para leste".
Assim, se se deve a Diego de Lepe a primeira idéia da configuração piramidal da América do Sul, foi Vespucci o primeiro a formular a suposição de que a costa oriental da América do Sul não era formada de um grande grupo de ilhas, mas pertencia a um continente inteiriço, especialmente que o Brasil se unia num só todo continental à Colômbia e à Guiana.
Depois disso, por algum tempo nada mais fez a coroa de Portugal em prol do Brasil; contudo ficou este considerado como uma estação intermediária para as longas viagens às índias Orientais; e as grandes esquadras, uma após outra, que sob o comando de Afonso de Albuquerque (1503) e de outros heróis do mar, seus contemporâneos, navegavam para o Indostão, ancoraram ali, provavelmente nas imediações de Porto Seguro e da feitoria de Santa Cruz, recém-construída.
Além disso, entravam agora as empresas comerciais a dirigir a sua atenção para essa costa; naturalmente a coroa de Portugal havia, a princípio, reservado para si o monopólio do comércio com essa terra, e por seu lado passou a arrendá-lo a um rico armador, Fernando de Noronha, que, além disso, recebeu em feudo a ilha, que tomou seu nome, desde 24 de janeiro de 1504. Porém, nem mesmo os mercadores portugueses respeitavam esse monopólio, muito menos os de outras nações, que também souberam seguir o roteiro para o Brasil, muito embora.houvesse Portugal proibido a seus marinheiros o servirem nas armadas estrangeiras, e houvesse prescrito a seus cartógrafos que omitissem nos seus mapas geográficos e cartas marítimas as terras abaixo do Equador, aquém e além do Atlântico. Não obstante, dentro de pouco tempo ali chegavam navios mercantes espanhóis, holandeses e especialmente franceses, que, numa enseada qualquer, levantavam feitoria provisória ou mesmo permanente, e tratavam de estabelecer relações comerciais amistosas comos indígenas, ao mesmo passo instigando-os de todos os modos contra os seus concorrentes.
Sabe-se da tradição de um horrível exemplo da ferocidade com que esses rivais se perseguiam uns aos outros; e citamo-lo aqui, por ser durante muitos anos característico das relações entre os europeus nas costas brasileiras.
No ano de 1549, um alemão, Hans Staden, natural de Homberg, em Hesse, cujo amor às viagens o impelira a atravessar o oceano, e que por algum tempo tivera o comando de um fortim português na província de São Paulo, havia caído prisioneiro dos selvagens. Sucedeu que, justamente por essa ocasião, chegou à mesma tribo um intérprete de um navio mercante francês, fundeado nas proximidades, para o comércio de permutas; foi-lhe apresentado o prisioneiro, e como este não pudesse incontinenti responder ao interrogatório, que lhe foi dirigido em francês, gritou então o intérprete para os indígenas no idioma gentio: "Matem e comam este malvado! É um legítimo português, inimigo vosso e meu!’
Quando daí a poucas semanas o francês regressou da sua excursão aos aldeamentos vizinhos e encontrou de novo Staden, só então verificando que se tratava de um alemão, manifestou-se arrependido das suas cruéis palavras e fez todo o possível para libertar esse infeliz: "Supunha-o português — disse ele para desculpar-se, — e os dessa raça são uns refinados perversos. Pudéssemos nós deitar as unhas a alguns deles, e os mandaríamos logo enforcar"5.
Depreende-se daí que, se os europeus procediam desse modo uns com os outros, muito menor consideração haveriam de usar, por certo, para com o gentio. Para se fazerem agradáveis a uma tribo, com a qual haviam entabulado lucrativa mercancia, não trepidavam em atacar sem razão alguma aos inimigos dela; assim, por exemplo, narravam os indígenas, entre os quais Hans Staden esteve prisioneiro:
Certa vez, havendo arribado à costa, onde se achavam, um navio português, foram ter a bordo em grande número os índios dessa tribo, no intuito de fazer trocas, como habitualmente se praticava com os franceses; logo, porém, a gente da equipagem caiu-lhes em cima e os entregou amarrados de pés e mãos a inimigos mortais, para serem devorados.
Aliás, era muito comum o fato de fazer-se atrair ao navio alguns índios, aprisioná-los e vendê-los na pátria como escravos, tal qual praticava então o português Gaspar de Corte Real, nas costas do Labrador (1501).
Também nesse sentido consta-nos outro exemplo frisante: a 22 de fevereiro de 1511 largava Cristóvão Pires, com a nau Bretoa, de Lisboa para o Cabo Frio (província do Rio de Janeiro); havia tido ele instruções positivas dos seus armadores para tratar bem aos selvagens, e não trazer consigo para a Europa um só que fosse, "pois que, se acontecesse algum deles morrer em viagem, ou por al não regressar, os outros pensariam que houvessem sido mortos, para serem comidos, como de seu costume". Isso não obstou, porém, a que se contassem, por ocasião do seu regresso, no carregamento da nau Bretoa, nada menos de 36 índios escravizados*.
Ao sítio onde um navegador houvesse perpetrado semelhante roubo de homens, não se atrevia ele a tornar facilmente, preferia sempre experimentar a sorte por outras paragens; mas os índios, vendo assim arrebatados os seus amigos e parentes, em represália buscavam tirar desforço sangrento no primeiro europeu que lhes aparecesse. Por esta forma, viu-se piorar de muito com o tráfico europeu o estado selvagem em que jaziam os povos autóctones do litoral do Brasil; até então só se guerreavam eles uns aos outros; agora, porém, concorriam também os brancos; e cada nação européia tomava por aliados certo número de tribos indígenas, de maneira que o total das inimizades e dos atos de crueldade foi sempre crescendo.
Naturalmente, o comércio brasileiro era todo feito pelo sistema de permutas; os europeus costumavam trazer panos para vestuário, instrumentos de ferro para o trabalho e, a par disso, na maioria, objetos de ornato para os seus fregueses, os selvagens, tais como espelhos, chocalhos, colares, etc.; em troca, recebiam, em parte, meras curiosidades, enfeites de penas artisticamente confeccionados, armas e utensílios indígenas, papagaios e macacos, que, na pátria, eram adquiridos por bom preço; e em parte, valiosos produtos da terra, algodão, pimenta, etc; contudo, a principal carga trazida pelos navegantes de regresso do Brasil era sempre o pau vermelho de tinturaria, chamado pelos indígenas ibirapitanga, cujo equivalente era já desde muito conhecido na Europa com o nome de pau-brasil (Bresil, Brasilly, Braxilis, Brasilium).
Com efeito, desde muito era trazida das índias Orientais uma espécie congênere de madeira, própria para tingir lã e algodão, podendo-se encontrar a notícia desse precioso produto do Oriente nas tarifas ou pautas aduaneiras das cidades italianas, por exemplo, em Ferrara até 1193, em Módena até 1306, e nos documentos relativos ao tráfico dos catalães até o ano de 1221-1243; até mesmo, remontando ao século IX, o viajante árabe Abuzeid el Hacen, e posteriormente, em 1153, o geógrafo Edrisi, gabavam a excelência do pau vermelho da ilha de Alrami ou Sumatra, empregando para ele o texto árabe a palavra bakkam, que no latim se traduziu por bresillum, designação esta que, de certo modo, se relaciona com a raiz românica bras "fulgor do fogo" (no português brasa, no italiano brace, no francês braise, no inglês to br ase, soldar, bronzear; compare-se ao sânscrito bhradsch, luzir, brilhar, e bhakam, amante do brilho).
A geografia fantástica da Idade Média referiu-se a uma ilha do Brasil {Brazir, Brade, Bersil), situada em remota paragem ocidental do oceano Atlântico, cujo nome parece provir da sua origem ígnea, de algum vulcão, ou de haver dele sofrido devastação; essa ilha não tem posição certa entre os paralelos do cabo de São Vicente (Portugal) e da Irlanda, e foi assim que, na geografia nova, aparece o nome duplamente fixado, sobre o Brasil rock a 6o a O da extrema ponta meridional da Irlanda, e sobre a Punta dei Brasil da ilha Terceira (grupo dos Açores).
Finalmente, ao ser descoberto o Novo Mundo, nele encontraram igualmente os seus devassadores um pau vermelho de tinturaria; assim, Colombo, na sua segunda expedição, em Haiti, e na terceira, na costa da Colômbia; tomou um carregamento do mesmo, bem como, tempos depois, Vespucci, 1503-1504, foi o primeiro a fazer igual carregamento ná costa do Brasil.
Foi então adotado para o pau americano o nome da madeira das índias Orientais; e em parte alguma se encontrava em tal abundância esse produto, como nas costas do país, que oficial e primitivamente recebera o nome de "Terra de Vera Cruz", ou, segundo a mais antiga feitoria, "Terra de Santa Cruz". Nada mais natural, portanto, do que referir-se, em breve, todo o mundo comercial europeu à Terra do pau-brasil, ou, para encurtar, "Brasil", ao passo que as designações anteriores iam caindo, cada vez mais, em esquecimento.
O nome do lenho do martírio, santificado pela fé cristã, cedeu lugar ao de um precioso pau de tinturaria, "mudança, que, — na expressão de um historiador português, Barros, — o demônio havia inspirado, pois a miserável madeira que tinge o pano de vermelho, não compensa o sangue derramado para a salvação de nossas almas" 6.
Assim se transplantou o nome de "Brasil", do arquipélago das índias Orientais, com escala por um cabo da ilha Terceira, para costas orientais do Novo Continente (Humboldt)*.
* * *
Prosseguiu, entretanto, sem interrupção, o ciclo das viagens e descobrimentos nas plagas sul-americanas, sob os auspícios da coroa de Espanha; mas nem por isso deixaram de ter significação para o Brasil, pois em seguida foi descoberto o grande rio que deveria ser a artéria vivificante de todo o continente sul-americano.
A 29 de junho de 1508, partiram da Espanha para a América do Sul duas naus, sob o comando de Vicente Yánez Pinzon e Juan Diaz de Solis; tendo alcançado a costa brasileira junto ao cabo de Santo Agostinho, navegaram ao longo da mesma até 40° de latitude S, sem terem, entretanto, avistado a embocadura do Rio da Prata, situado 5o mais ao N.
Mais feliz foi a segunda expedição espanhola, que zarpou a 8 de outubro de 1515, sob o comando único de Juan Diaz de Solis; depois de haver seguido a costa do continente desde o cabo de São Roque, alcançou finalmente aos 35° de latitude S um "mar de águas doces", e tendo o chefe da expedição ordenado ali entrar, descobriu-se então um majestoso rio, ao qual deu o próprio nome, rio de Solis, e é o atual Rio da Prata.
Nas margens deste rio encontrou Solis a morte; os índios, que se achavam na praia, por meio de sinais o chamaram e ele acudiu ao convite, na intenção talvez de capturar algum dos selvagens; estes, porém, alimentavam, por sua vez, pérfidos desígnios, e quando menos o esperava foi a sua canoa destruída e cortada toda retirada. O próprio Solis e oito dos seus homens foram mortos e os seus corpos carregados para serem comidos, agosto de 1516; o restante da equipagem levantou ferros e depois de, em caminho, haver feito carregamento de pau-brasil, regressou à Espanha.
Estas duas expedições marítimas deram então, pela primeira vez, ensejo a desavenças diplomáticas entre as coroas de Portugal e de Espanha; na primeira delas, haviam ficado sete marinheiros espanhóis, provavelmente próximo à baía de Cana-néia (São Paulo), dentro, portanto, da linha de demarcação portuguesa, e ali caíram nas mãos dos portugueses; por outro lado, havia Solis, na segunda viagem, aprisionado um barco com 11 portugueses, que se deixaram surpreender dentro da linha de demarcação espanhola, e os remeteu para a Espanha. A este respeito houve fácil acordo, fazendo-se a troca de prisioneiros, uns pelos outros.
Mas d. Manuel opôs logo objeções contra as repetidas excursões costeiras ao longo de suas possessões, e exigiu não só a entrega dos carregamentos, mas, também, das equipagens, a fim de que pudesse castigá-las como contrabandistas. Com isso não se conformou o governo castelhano, principalmente porque já estava autorizado, pela linha de demarcação, a reivindicar para si não somente os novos descobrimentos de Solis, mas igualmente a parte meridional dos mais antigos de Vespucci.
De fato, sem tardar foi explorado minuciosamente por parte da Espanha o curso do rio descoberto por Solis.
No verão de 1525, surgiu na foz desse rio uma frota comandada por Sebastião Caboto, agora ao serviço da Espanha, que antes havia descoberto para a Inglaterra a ilha da Nova Finlândia e o continente norte-americano; navegou ele rio acima pelo Paraná (ind. "água grande", "mar"), até à confluência do Paraguai (ind. para-guazií, o "rio grande"), prosseguiu neste último em uma grande extensão e foi, por toda parte, tomando posse das terras marginais para a coroa de Castela.
Ainda estava nisso entretido, eis que uma segunda frota espanhola, do comando de Diego Garcia, visitava essas mesmas águas; e foi ela, provavelmente* a que primeiro avistou a embocadura do rio Uruguai, sem contudo deter-se na exploração desse rio, pois desde que soube, pelo posto deixado ali por Caboto, que este navegava pelo rio acima, tomou também por esse curso até encontrar enfim no rio Paraguai o seu predecessor (1527);
Desta expedição em diante, tomou o rio Solis o seu novo nome de rio da Prata. Tanto Caboto como Diego Garcia receberam, nas trocas com os índios nesta prolongada viagem, uma porção de pequenas placas de prata, que, provavelmente, ho decorrer dos tempos, haviam vindo do Peru, passando de mão em mão, até estas plagas, trazendo-as agora os indígenas como ornatos. E como então se vivia em toda Europa na persuasão de que todo o continente ocidental, de N a S, deveria conter inesgotáveis jazidas de metais preciosos, julgaram os descobridores haver achado ali um novo Eldorado, e em recordação disso deram ao caudaloso curso de água o nome de rio da Prata, designação que atualmente, como se sabe, foi fixada e limitada propriamente ao estuário do rio.
Os seus três grandes formadores, ao contrário, conservaram o seu antigo nome indiano; assim, o Uruguai, que nasce aos 28° de latitude S, na província brasileira do Rio Grande do Sul; o Paraná, cujos formadores correm para L e para o N, na província de São Paulo até 23°, na de Minas até 21°, e na de Goiás até 17°, latitude S; finalmente o Paraguai, que nasce na província de Mato Grosso, a 14° latitude S. O conhecimento das linhas gerais desse sistema fluvial demorou muito a ser adquirido e ainda é superficial em muitas partes. Menos ainda se tem curado até aqui de utilizar para o tráfico essa densa rede de rios, afluentes e lagunas, que penetra em todas as direções no coração do continente sul-americano.
Toda essa bacia potamográfica apresenta-se, ainda hoje, quase no mesmo estado em que a acharam há trezentos anos atrás os primeiros descobridores; por um lado, as colônias brasileiras, por outro as de origem castelhana, somem-se como oásis na interminável selva virgem, e uns poucos miseráveis bandos de índios erram por ali, onde muitos milhões de agricultores, de origem européia, poderiam encontrar uma pátria rica e feliz.
Como a bacia do Prata, assim também a outra grande bacia fluvial do império sul-americano deve a sua primeira exploração minuciosa aos espanhóis, e conquanto entre o descobrimento de uma e outra distem muitos anos, em que na costa brasileira se deram não pequenos acontecimentos históricos, vamos desde já expor a história da primeira exploração fluvial no Amazonas, para assim concluir a história do descobrimento do Brasil.
Desde Vicente Yánez Pinzon (1501), o primeiro europeu que navegou no "mar de águas doces", na foz do Amazonas, outros navios repetidas vezes visitaram essas águas; a coroa de Espanha até cometeu a um dos conquistadores do México, Diego de Ordas, quando se fez de vela em 1530, para fundar uma colônia na atual Venezuela, a incumbência expressa de valer-se do ensejo para explorar o rio que Pinzon havia avistado e ao qual se dava ainda então geralmente o nome de Maraíion.
De todas essas expedições, não houve, entretanto, resultado digno de nota; o vale do Amazonas quedou, por largos anos, sendo a mesma terra desconhecida, até que enfim um descobridor, vindo de O, nele penetrou. Foi Francisco de Orellana, cavalheiro espanhol, vindo na comitiva do governador de Quito, Gonzalo Pizarro, em sua aventureira expedição rumo ocidental, em busca da terra fantástica do ouro, o Eldorado.
Encarregado por seu chefe do comando de um bergantim, que devia acompanhar nos afluentes do Amazonas a marcha do exército expedicionário, sentiu-se possuído do mesmo entusiasmo que dominava então a alma da juventude espanhola: quis fazer descobrimentos por sua conta, achar, se possível, essa terra rica que Pizarro debalde procurava. Finalmente um dia em que a rápida correnteza do rio Napo (no atual Equador) distanciara muito o bergantim, das tropas que marchavam demoradamente ao longo da margem desse rio, não pôde Orellana resistir por mais tempo à tentação: reuniu em conselho a sua equipagem e com palavras de entusiasmo lhe fez a proposta de se desligarem da expedição aventureira de Pizarro, a fim de prosseguirem a viagem pelo rio, em que agora navegavam, até ao lugar onde ele desemboca no mar, e assim alcançar para a pátria uma nova província, e para si a glória e a recompensa pela realização de um novo descobrimento. Somente um dos homens se recusou, e ficou na margem, a fim de informar a Pizarro e ao exército de terra, da separação de Orellana; os demais, porém, concordaram jubilosos com o plano audaz; e, dessa forma, prosseguiu o bergantim a derrota a 31 de dezembro de 1540, primeiro pelo curso do Napo e depois rio abaixo pelo Amazonas, viagem em que os ousados exploradores tiveram, dentro em pouco, de sofrer não só as mais duras privações, como as hostilidades das tribos marginais, achando, porém, em outros sítios ribeirinhos, hospitaleira acolhida pelos índios e generoso auxílio em tudo que precisavam.
Não é aqui o lugar próprio para relatar por miúdo as aventuras de Orellana e seus companheiros; destacamos apenas a circunstância seguinte, pelo fato de haver dado ao rio o nome que hoje tem. Era no dia 22 de junho (1541); os espanhóis estavam combatendo com uma horda de índios, no meio da qual se avistavam umas poucas mulheres armadas, provavelmente mulheres que acompanhavam os seus maridos ao combate, segundo ainda é costume entre algumas tribos brasi-lienses; os espanhóis, entretanto, iludidos por uma falsa erudição, lembraram-se das lendárias amazonas da Antiguidade, e viram nessas mulheres guerreiras as rainhas, a chefiar os exércitos da nação inimiga. Do trato com alguns prisioneiros, ou com índios vizinhos, haviam depreendido que aquela tribo era vassala de uma poderosa nação de índias guerreiras, cuja nação habitava, mais além, no interior, em povoados esplêndidos e bem fortificados, mui temida e famosa nos arredores; nenhum homem era admitido entre elas; mas, em épocas determinadas, recebiam visita de índios das tribos vizinhas, e após algum tempo despediam os seus hóspedes, obsequiando-os com presentes e com os filhos homens nascidos dessas relações.
Eis como chegou ao remoto Ocidente, ao vale do Amazonas, a migrante lenda oriental das amazonas, procedente das margens do Don e do mar Negro, com escala por uma ilha fabulosa da geografia mitológica da Idade-Média ("Ilha dos homens e mulheres solitários", que figura no mapa-múndi de Behaim).
Bem se vê que, depois de Orellana, nenhum outro viajante avistou jamais a nação de mulheres guerreiras na América do Sul; apesar de tudo, não parece ser essa lenda produto apenas da imaginação européia; antes, até certo ponto, já era corrente; em todo caso foi encontrada mais tarde, entre algumas tribos ribeirinhas amazônicas, pois por várias vezes se referem as sucessivas relações de viagens ali feitas às narrações, mais ou menos fantasiosas, a respeito das amazonas, ouvidas pelos viajantes, da própria boca dos índios. E assim poderá talvez existir um traço de verdade nessa fábula: efeito do jugo servil que pesava sobre as mulheres, é possível que, de tempos a tempos, pequenos grupos de índias se evadissem das malocas dos seus cruéis esposos, para o mato, a fim de nele procurarem a sua salvação na independência primitiva, dando tal fato origem à lenda romântica. Seja como for, o fato é que essa lenda deu ao grande rio o novo nome que lhe ficou; o de Maranhão designou o rio mais a L, na parte costeira, e a província por causa dele chamada de Maranhão; o nome de rio Orellana, que se lê nos mapas mais antigos, em honra ao descobridor, breve desapareceu, para somente persistir o de Amazonas.
A 26 de agosto de 1541, Orellana desembocou do Amazonas e penetrou no oceano Atlântico; havia concluído a obra do descobrimento; o Brasil ficava agora conhecido em seus contornos gerais, em suas três grandes divisões naturais; e, o que era principal: assim como anteriormente Vespucci estabelecera a continuidade da massa continental entre as diversas partes da costa de leste, assim verificou Orellana não haver solução de continuidade entre essa costa e a ocidental da América do Sul. Assaz merecida foi, portanto, a recompensa, que lhe conferiu a coroa de Espanha, com o governo das terras por ele descobertas no vale do Amazonas, região que deveria ter, a partir daí, o nome de Nova Andaluzia, 27 de fevereiro de 1544; deviam caber-lhe os ônus da conquista e da colonização, e, em compensação, seriam suas todas as rendas do novo Estado agrícola, por dez anos. Investido dessa concessão, organizou Orellana uma expedição, e a 11 de maio de 1544 zarpou, com quatro velas, das costas espanholas; desta vez, porém, foi-lhe infiel a sorte, que tão firmemente o havia favorecido em sua primeira viagem de aventuras. Já de caminho pereceu grande parte da sua gente e perdeu dois navios; depois levou meses a procurar, em toda a vastidão do estuário, o braço do rio que deveria levá-lo ao coração do continente, e nesse entrementes as febres reinantes habitualmente nas margens baixas do Amazonas devastavam a sua equipagem, com uma virulência tanto maior quanto se achavam os homens enfraquecidos, à míngua de alimentos e à força de pesados trabalhos.
O próprio Orellana acabou por ser vítima do clima; seus companheiros tomaram então caminho de regresso; e um grupo deles que, a princípio, por livre vontade, haviam permanecido numa ilha do delta fluvial, entre índios afeiçoados, muito se alegraram quando, pouco depois, ali surgiu uma embarcação portuguesa, vinda de Pernambuco, oferecendo-lhes oportunidade de abandonar aquelas regiões tórridas, equatoriais, em extremo malsãs, ao menos para os europeus.
Nada mais foi feito, a seguir, pela Espanha para a posse e colonização do Amazonas; apenas das colônias castelhanas do Prata e do Peru penetravam bandos armados aqui e ali, nas cabeceiras do rio, em busca do fabuloso Eldorado ou das cidades maravilhosas das Amazonas. Eram, contudo, simples expedições, aventureiras, sem plano e sem significação durável, e quando, depois de muito vaguearem por ali, não aparecia a cobiçada terra do ouro, e se esgotavam os víveres, retrocediam e procuravam obter alguma compensação dos trabalhos e canseiras por meio da venda dos prisioneiros de guerra, que haviam arrastado para longe da sua terra natal.
Assim, continuou a bacia amazônica, então como dantes, quase completamente desconhecida, até que afinal, quase um século depois de Orellana, foi tomada, em Quito, a iniciativa de reencetar a exploração rigorosa desse rio, podendo-se bem dizer que para redescobri-lo. Com efeito, por volta do ano de 1635, enviou o governo de Quito alguns missionários franciscanos, com uma pequena escolta armada, a fim de ir ter com os índios que habitavam as margens do rio Napo; debalde, porém, procuraram eles reduzir o gentio à lei do Evangelho; vários desses missionários foram trucidados e os sobreviventes desesperaram do êxito da empresa.
Nessas condições, tornaram alguns a O para Quito, enquanto dois irmãos leigos e seis soldados, receando empreender viagem por terra, tão penosa e cheia de perigos, vogaram, a exemplo do que fizera Orellana, pelos rios Napo e Amazonas, em pequena embarcação, que os levou, com bom êxito, à colônia portuguesa de Gurupá (província do Pará). Dali os conduziram a São Luís, à presença do governador do Maranhão, Raimundo de Noronha, que, à vista das informações deles colhidas, decidiu-se logo a mandar explorar cuidadosamente essa via fluvial, tão importante para o comércio interior com o Peru; uma frota, composta de 45 embarcações leves, 70 soldados e 1.200 índios, foi constituída para esse fim e deixou o porto de Gurupá, a 28 de outubro de 1637, sob o comando de Pedro Teixeira, a empreender a primeira entrada rio acima no Amazonas.
Após penosa viagem de dez meses, alcançou a expedição as extremas povoações espanholas, e daí Pedro Teixeira tomou caminho por terra para Quito, em agosto de 1638. Ali chegados, souberam o governo e o povo dar o devido apreço a esse importante feito; Pedro Teixeira foi acolhido nessa capital com uma festiva procissão; o então vice-rei, conde Chinchon, quando Pedro Teixeira lhe mostrou o seu diário, com um esboço cartográfico do rio, convidou-o a regressar pela mesma rota, e por este meio completar os seus descobrimentos; ele dar-lhe-ia por companheiros dois homens ilustrados, que o deveriam auxiliar. Teixeira logo se dispôs à empresa; Cristóvão d’Acufia, reitor do Colégio dos Jesuítas em Cuenca, e André de Artieda, professor de teologia do Colégio de Quito, embarcaram com ele e, depois da segunda expedição de dez meses, de 16 de fevereiro a 12 de dezembro de 1639, desembarcavam de novo nas costas do Pará.
Datam desta segunda viagem de descobrimento, em que, uma a uma, foram exploradas as confluências dos tributários do Amazonas, e foram dados os nomes a estes, os primeiros dados precisos sobre o rio Amazonas; porém muitíssimo mais tardou que fossem conhecidos, mesmo perfunctoriamente, esses mesmos afluentes e as numerosas cabeceiras que remontam além das fronteiras brasileiras, em todas as direções, nas repúblicas do Peru e da Colômbia, e até hoje não se pode ‘ considerar completo o conhecimento geográfico dessa rede fluvial.
Ainda menor é a importância até hoje assumida pela colonização européia, nessa bacia potamográfica amazônica.
De fato, teremos que acompanhar, quando tratarmos do histórico da província do Pará, como foram pouco a pouco os lusos levando avante ao longo do rio principal e dos seus mais importantes afluentes, uma série de estabelecimentos, todos, porém, de pouca importância, a não ser alguns portos mais consideráveis no delta do rio; e, mesmo atualmente, pode-se dizer que até o despovoado vale do Prata, em comparação com o do Amazonas, é densamente povoado. Tal qual está, certamente permanecerá durante séculos. As causas, as razões de tal asserto parecem evidentes, quando se cotejam entre si os dois grandes rios da América do Sul.
O Prata oferece ao europeu, logo na sua embocadura, um clima moderado e saudável, um solo fértil e produtivo; acresce que a terra consiste, na maior parte, em campinas, mais fácil, portanto, de cultivar; e tanto a lavoura, como a criação de gado, podem ali tomar o maior incremento. Se, nada obstante, as terras platinas ainda permanecem meio despovoadas, a culpa é das circunstâncias exteriores, do velho sistema exclusivista dos espanhóis, que, incapazes e fracos demais para explorarem eles mesmos as colônias, não permitem que o façam os estrangeiros; e, modernamente, das contínuas dissensões políticas e guerras civis, as quais necessariamente afugentam qualquer imigrante, sobretudo o colono lavrador. Contudo esses empecilhos exteriores podem ser removidos, e então o vale sul, temperado, do rio da Prata virá a atrair, sem dúvida, as forças vivas do trabalho e o capital europeu, em não menor escala do que atualmente sucede nos Estados Unidos da América do Norte.
Mais para o Norte, fica o vale do Prata sob a zona tórrida, e, portanto, inconveniente para a imigração direta da raça européia; mas, pouco a pouco, também essas regiões, onde o algodão, o açúcar e outros produtos dos trópicos prosperam admiravelmente, receberão colonos da superabundância da imigração para o sul, e também ali a colonização progredirá com vigor, transbordando o incessante povoamento do frio sul para o norte cálido, exatamente como agora acontece, somente em sentido contrário, com a população branca, e ainda mais com a preta, que se derrama do N para o S, na região algodoeira do vale do Mississipi.
Coisa toda diversa se dá com o Amazonas: de O para L ele cOrre na zona tórrida, quase debaixo do Equador; o território do seu delta é insalubre, e até mesmo a criação do gado vacum e cavalar, que antes se fazia em escala relativamente grande, presentemente não mais medra; numa extensão de centenas de léguas, ao longo do rio, apresentam-se terrenos baixos, sujeitos a inundações periódicas, e onde reinam malignas febres biliosas e domina uma asquerosa praga dos insetos; finalmente, a terra é, na maior parte, recoberta de matas virgens tropicais, dificultando muito por isso a sua lavoura. E já temos a história do vale do Mississipi a ensinar quantos esforços e quanto sacrifício de vidas humanas custa a colonização das marcas férteis, mas insalubres, do estuário de um grande rio e como exigirá ainda sacrifícios por muitas gerações, e isso não obstante o Mississipi desaguar fora da zona tórrida, enquanto o Amazonas o faz justamente sob o Equador.
De mais, a experiência nos tem ultimamente demonstrado que o imigrante europeu, mesmo do S, não se dá bem nos climas tropicais, ao ar livre, como lavrador ou operário, e ainda menos em terras planas e baixas; a maioria das empresas de colonização, nessas condições, uma após outra, tem-se extinguido desastrosamente, e não é um dos piores exemplos o fato de que dos 14.867 naturais da ilha da Madeira, que em 1846-1848 foram para as índias Ocidentais Britânicas e para as Guianas, sucumbiram em breve 6.668 de febre amarela e outras moléstias.
Não se pode, pois, pensar em colonização do território amazônico, rio acima, pelos europeus, e se não obstante recentemente o governo peruano buscou atrair colonos alemães do Norte para o alto vale do rio, e a Companhia Brasileira de Navegação do Amazonas para o baixo vale, o mesmo foi que seduzir infelizes para a ruína certa, sem de modo algum aproveitar ao país!
Será necessário contentar-se a princípio com o comércio feito pelo rio Amazonas, com a exportação dos produtos das selvas tropicais e talvez atrair algumas levas de trabalhadores chineses ou naturais das índias Orientais, para atender aos serviços das feitorias.
Quanto, porém, a colonos verdadeiramente agrícolas, o vale do Amazonas só poderá recebê-los, quando o vizinho planalto interior do Brasil, até hoje deserto e desabitado, se houver povoado tão densamente a ponto de extravasar as demasias da população para os terrenos baixos.
Até lá — e isso haja talvez de durar séculos — a raça dos índios, naturais do Amazonas, campeará senhora dessa região; as outras nações indígenas suas irmãs, a pouco e pouco enxotadas de outros pontos do sertão brasileiro, de planalto e dos territórios do Prata, ali encontrarão uma nova pátria, e do seu caldeamento com o imigrante branco e de cor, se formará finalmente o povo de mestiços, que será destinado a tornar algum dia rendosa para o comércio do mundo a fertilidade assombrosa daquela região equatorial.
Mas, mesmo assim, jamais o Amazonas culminará numa significação histórica igual à do Prata ou do Mississipi; o comércio amazonense permanecerá sempre monótono, porque o vale do rio apresenta quase que os mesmos produtos em suas partes superior e inferior, não proporcionando, pois, a permuta de produtos de diferentes climas; identicamente nele não florescerá jamais uma vida política intensa, porquanto as condições de colonização, e com elas as características e a formação das classes populares, têm necessariamente de ser as mesmas em todo o vale.
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