COSMOPOLITISMO E NACIONALISMO

Oliveira Lima

COSMOPOLITISMO E NACIONALISMO

Exmo. Sr. Presidente, Meus Amigos:

O presidente do Centro Acadêmico disse-me, ao convidar-me para estar presente à posse da nova diretoria, que desejava que as minhas últimas palavras em Pernambuco, antes de partir, fossem de animação à mocidade da Faculdade de Direito do Recife. Eu quero, porém, que elas sejam de agradecimento, porque nestes quatro anos de residência na terra natal encontrei junto a vós muita generosidade, muita bondade e muito carinho. Acreditai que levo desta casa verdadeiras saudades e que o meu coração vai cheio de reconhecimento, não só pelos discípulos como pelo mestre eminente que enfermo, mas felizmente convalescente, hoje não preside esta sessão solene e ao qual sou devedor, em outras ocasiões, de palavras que me sensibilizaram e penhoraram profundamente.

* No meu livro Pernambuco e o São Francisco contestei a existência desse documento de 1715 ou de 1718 — e a duplicidade das datas já era argumento — assim como a alegação das invasões a que Oliveira Lima se refere. O domínio da margem esquerda do rio São Francisco sempre foi pernambucano, até a revolução de 1824, e registrou-se no vocabulário da região como "banda de Pernambuco" c "banda da Bahia", como se pode ver pelos viajantes que o percorreram, inclusive o inglês Richard Burton. As "invasões" se limitavam à contestação do domínio das ilhas situadas no curso do rio São Francisco (Nota do coordenador).

Apelastes para mim para falar-vos das minhas impressões de professor em Haward, da guerra, da questão social, e não só me deixastes, como era natural, absoluta liberdade de doutrina, como soubestes respeitar opiniões e simpatias diversas das dominantes, mesmo quando delas se pretendia fazer um crime contra a civilização e o direito. Hoje sabeis todos o que foi feito do direito e se não era a própria guerra que eclipsara a civilização. Conferiste-me também a honra de presidir o primeiro congresso de estudantes aqui realizado, e hoje quereis que vos diga alguma coisa mais sobre este assunto de solidariedade acadêmica, a qual vosso presidente teve a corajosa e fecunda iniciativa de querer ampliar fora mesmo dos limites nacionais, fazendo da cidade um albergue internacional da juventude estudiosa e desta faculdade uma ressurreição momentânea das velhas universidades medievais, em/ que os estudantes eram aboletados por nações.

A tentativa — não digo o sonho, porque já deixou de haver os que se não possam converter em realidades — é ousada mas não é humanamente impossível e direi mesmo que a acho de todo ponto lógica. Os congressos dessa natureza foram inventados para aproximar indivíduos de nacionalidades diversas e trocarem estas idéias que aproveitem ao progresso moral da nossa espécie. Ora, somente na América é hoje possível celebrar esses ágapes intelectuais. A Europa continua em estado de guerra ou dividida por ódios que parecem insanáveis, porque à humilhação de uns corresponde a semivi-tória dos outros, que a querem transformar em triunfo romano, pomposo e inexorável.

Num meio semelhante trocam-se golpes, não se permutam impressões, e cuida-se em destruir, não em construir. Se o mundo não fosse porém todo êlc educado na prepotência em vez de o ser na tolerância, na violência em vez de o ser na brandura, não sucederia o que sucede; não teríamos tido o espetáculo sinistro de tantos milhões de mortos e de outros tantos milhões de estropiados, com o fim de recompor-se o mapa da Europa, tantas vezes alterado, des-manchando-se umas federações como a austríaca e uns impérios centralizadores como o russo, para amanhã se recomeçar o trabalho pela convergência das partes dispersas para novos centros de atração.

A mocidade do Velho Mundo, à qual pertencerão amanhã os destinos das suas sociedades políticas com responsabilidades próprias, deve ter aprendido com a lição, e se não aprendeu devido à obsessão que prolonga a paixão, é justo que a mocidade do Novo Mundo lhe ensine, ou antes lhe recorde, para não assumir tom impertinente, que o ideal do futuro não pode mais ser a conquista, do que tem que ser a solidariedade pela comunidade das riquezas c das aspirações, isto é, tanto pelo lado material como pelo lado cs piritual.

Sob este ponto-de-vista é intuitivo que há muito a lucrar com o alvitre proposto de uma convocação nesta terra dos jovens representantes do pensamento mundial e que a concepção do vosso presidente efetivo tanto tem de inspirada quanto de exequível. Também os juristas ingleses, de combinação com outros, escolheram Buenos Aires, por motivo da neutralidade argentina, para lugar da próxima reunião dos especialistas que vão tratar de consertar o direito internacional, integrando-o nas suas novas e velhas normas e for-necendo-lhe a orientação necessária para tornar a desempenhar a função de cultura de que os maus instintos da humanidade despojaram, em detrimento do adiantamento moral do mundo, porque a explosão daqueles instintos não pôde ainda ser contida pelos povos estimulados por uma falsa idéia de patriotismo.

Todo povo deve ter patriotismo — não se concebe mesmo um qualquer, dotado de organização social, que não experimente esse sentimento em forma consciente ou instintiva — mas o patriotismo não deve ser agressivo à força de egoísta. Este é precisamente o perigo do nacionalismo, que é a modalidade combativa do patriotismo, tanto assim que se desenvolve nas quadras como esta, de lutas e ambições, ou melhor dito, de lutas por ambições.

Nós temos tido na nossa história tão honrosa várias erupções nativistas e estamos presentemente ameaçados de uma. Um meu amigo do Rio, romancista de valor e observador de implacável ironia, escrevia-me que me felicitava pelo meu volume sobre a Argentina, por ser concebido num espírito de aproximação sincera, quando estamos vendo perfilar-se um "Brasil valentão". A expressão é do meu amigo, e eu ajuntarei apenas à sua observação que "valentão" não é Exército de verdade, que cumpre sua missão e ao qual compete sacrificar-se pela defesa nacional na hora da agonia, mas sim o exército de plumitivos ou de discursadores, que vivem a açular populações labutando em paz.

Que o Brasil esteja sempre disposto a repelir agravos à sua honra — as nações a têm como os indivíduos — concebe-se e aplaude-se, mas quantos são os atentados que devam realmente ser resolvidos à bala? O nosso país perderia no seu caráter histórico se se fizesse "valentão", o que quer dizer provocador. Provocar não é aliás sinal certo de força; pode ser às vezes sinal de fraqueza. Eu confio que nunca se dará o caso de sermos agressores, como nunca o fomos, e os congressos, como o internacional de estudantes, que o novo presidente do Centro Acadêmico planeja, podem não ser um remédio infalível, mas constituem ainda assim o melhor corretivo de quaisquer eventuais veleidades no sentido de uma exaltação mórbida, porque em reuniões como essa se expõem o erro e a ameaça de tais atitudes belicosas e a persuasão age com força quando os ânimos não andam desvairados.

Os nossos tempos devem ser de um cosmopolitismo temperado, discreto e conciliador. A Europa carece em primeiro lugar de pão para comer, e, depois, de reconstruir-se moralmente. A América, que nem tem porque brigar, pois terras as tem de sobra, cabedais que lhe entram pela casa adentro, crenças as hospeda todas sem distinção, deve apenas agir impregnada desse espírito de paz e de concórdia, que será seu maior título de glória na História.

O cosmopolitismo será de resto o melhor meio de evitar guerras, como o nacionalismo tem sido o melhor meio de fomentá-las. Os chamados direitos nacionais implicam freqüentemente o sacrifício dos direitos do cidadão, imolados no altar de Marte, e entretanto o estado atual da Europa indica exuberantemente que a guerra não constitui uma solução. O nacionalismo na política, conforme é preconizado por alguns, como agente ativo, prepara contudo incontestavelmente, se bem que possa ser inconscientemente, para a guerra.

Gladstone, que foi o maior dos liberais ingleses de vistas pací ficas, que os seus sucessores não partilharam — mas também não eram dignos do manto de Alexandre —, disse com profundo acerto:

Não temos uma idéia adequada do poder de predisposição que para pr~ duzir a guerra exerce uma série imensa de preparativos para ela, tornando familiares idéias que assim perdem o horror que devem inspirar e acendendo uma chama interior de excitação, da qual perdemos a consciência, uma vez que dela se alimenta a nossa alma.

Cosmopolitismo encerra uma compreensão moral muito mais larga e muito menos eivada de prejuízos do que a pode jamais permitir o nacionalismo, cujo ponto-de-vista é forçosamente estreito e apaixonado. Sem êle impossível é a qualquer concepção elevar-se a humana, pois a força moral reside na sua continuidade e na sua universidade. O que é verdadeiramente moral aqui deve sê-lo ali, hoje como ontem e como amanhã. Se o conceito fôr passageiro, sinal é mais do que de incoerência da opinião, da inconsistência do próprio conceito.

O nacionalismo dispõe às guerras e é também resultado das guerras, na sua recrudescência é uma flor de sangue, como são vegetação do charco os lucros realizados pelos projiteurs da guerra. Como querer que se retraia a onda revolucionária diante de espetáculo abjeto do esbanjamento a que esses açambarcadores se entregam, nos próprios países mais vitimados pela guerra, e diante das imposições que outros açambarcadores fazem no terreno econômico, produzindo a carestia de vida, que se tornou insuportável de um extremo a outro do mundo e que não é somente o produto da diminuição da produção como o é da especulação e da ganância?

À sombra do nacionalismo medra bem o espírito absorvente do lucro. Nada de estrangeiros: queremos tudo para nós, ao que nada haveria a dizer se o "nós" não significasse sempre em casos tais um número o mais reduzido possível, um grupo ou às vezes mesmo uma família. Nada há entretanto mais cosmopolita do que o comércio: supõe transações internacionais, que, para se desenvolverem, precisam ser lucrativas para os dois lados. As vantagens imensas auferidas por poucos, por uma parte só, favorecem a tendência ao mando que é geral na espécie e geram as oligarquias que falseiam as democracias, cujo recurso extremo consiste então na revolução, quando o desespero faz surgir algumas vontades resolutas entre as muitas entibiadas pela corrupção, fácil aos que captam as fontes do poder e entram a distribuir as graças e os favores.

O cosmopolitismo, facultando às reformas sociais uma orientação comum, é uma condição mais da sua segurança, exercendo-sc simultaneamente e em colaboração com as tendências inovadoras c as tendências conservadoras, as exaltadas e as moderadas. O bolchevismo, sobre o qual entram tanto a divergir as opiniões, havendo espíritos ponderados e esclarecidos, ingleses e americanos, que elogiam a organização social estabelecida na Rússia, teve incontestavelmente — se é que já terminou — seu período de terror, porque foi uma reação nacionalista contra velhas iniquidades locais. Se o movimento social tivesse podido ser coletivo, teria perdido da sua violência pela influência dos elementos de cultura superior, que foi o que aconteceu na Alemanha.

O espírito universitário não pode ser um espírito de nacionalismo agressivo, sem faltar ao seu papel essencial na expansão civilizadora do mundo. Uma universidade nacionalista — e infelizmente as tem havido — é um viveiro de prevenções e de rancores. Também as religiões nacionalistas, como o são as semitas, o judaísmo e mesmo o maometanismo, apesar do caráter de proselitismo que a distingue, são religiões de muito maior intolerância. As religiões universalistas, como o budismo e o cristianismo, são as de um altruísmo amplo, de uma brandura essencial, embora possam ser adulteradas na sua natureza.

Nem sequer é incompatível o cosmopolitismo com o patriotismo. Por acaso não coexistem nos nossos espíritos — e o traço é especialmente comum à América — o espírito particular, de província, e o espírito geral, de nação, o que funde os pequenos centros dentro do grande todo? O mais curioso é que os nacionalistas não recuam por vezes diante das piores incoerências, não só pensando pelas cabeças dos estrangeiros — assim é que nós geralmente pensamos segundo se pensa em Paris, apesar de estarmos vendo que ali se pensa sem generosidade em aniquilar para sempre o adversário pela miséria e pela fome — mas não recusando sequer a vassalagem ao estrangeiro, sempre que êle traga com que lhes adormecer as susceptibilidades.

Eu compreendo o nacionalismo à japonesa, que nada quer dever aos estrangeiros, que lhes veda até possuírem bens imóveis fora de certas c determinadas zonas nalguns dos portos: o que não compreendo é que se solicite dinheiro dos estrangeiros, para exploração dos recursos nacionais para se lhes declarar depois que é um insulto quererem estar como em casa própria. O modo porque se reliza a transação autoriza-os porém a assim julgar. O Presidente Wilson, discursando em outubro de 1913 na inauguração da exposição agrícola de Mobile, condenou o sistema de "concessões" aos capitalistas estrangeiros praticado na América Latina e desconhecido nos Estados Unidos, onde apenas se os pode convidar a que coloquem capitais em empresas nacionais. Os americanos não entregam aos de fora os seus negócios, de que conservam a direção, sem que ao estrangeiro se faculte um privilégio. O estrangeiro pode ser chamado a colaborar pelo seu capital ou pelo seu trabalho, nunca a ser o dono em casa alheia.

É claro que o Sr. Presidente dos Estados Unidos assim falava antes da guerra: hoje a Europa não possui capitais para oferecer à América e carece dos braços para sua reconstrução. Benjamim Kidd num livro recentíssimo, intitulado The Science of Power, escreve que a Europa deu contudo, com os últimos acontecimentos, uma lição ao mundo, a saber, que o poderio organizado, baseado sobre a emoção do ideal na alma coletiva, possui um alcance quase sobre-humano. O escritor americano reconhece aliás que potência alguma quase superou ou mesmo igualou a Alemanha cm capacidade de organização.

O verdadeiro nacionalismo não deve todavia consistir em organizar a destruição, sim em organizar o afeto entre os povos. Cada qual deve organizar em redor de si a justiça e criar ao lado da higiene dos corpos a higiene dos espíritos. O atrativo principal que a América pode ter para as que de além-mar pensem vir nela empregar suas atividades é ser um meio onde a guerra não medra como instituição, causando surpresa sua ocasional aparição, e onde as liberdades essenciais do cidadão tendem a ser menos coarctadas pelas autoridades.

A higiene trata de fazer muito, tem feito bastante, mas carece de fazer mais no sentido do saneamento da terra. O que eu chamo a higiene dos espíritos é o cultivo do sentimento de dignidade, tra-duzindo-se de duas maneiras, que afinal redundam numa: o dever cada um sua elevação ao seu próprio esforço e não ao patrocínio alheio, porque esse processo de recorrer a tal valimento, e sobretudo o fato de que sem esta proteção não se consegue vencer a concorrência, embora superiormente manifestada a competência — idéia que só vinga porque nela se consente — é o que gera a lepra da aduação sistemática e irritante, que se tornou um dos característicos da nossa sociedade.

Os poderosos do dia — de uns dias — em toda a parte recebem o incenso das multidões. Chamfort perguntava de quantos imbecis se compunha uma multidão — mas em poucos lugares exercerão a mesma influência absorvente. Por ser transitória não é esta menos perniciosa, orientada como não pode deixar de ser no sentido das conveniências ou das paixões daqueles poderosos, porque quantos são entre eles os que se guiam unicamente pelo bem público? Pela subordinação assim voluntariamente formada é que os caracteres se entibiam e o homem perde o predicado que mais nobilita a sua espécie, e que é a independência espiritual.

O congresso que o vosso presidente imaginou nunca daria, estou certo, pelo que vos diz respeito, o espetáculo da intolerância produzida ainda mais pela ignorância do que pela maldade; antes constituirá certamente o reflexo dos sentimentos que na juventude costumam ser mais vivos, mas são também mais generosos. Precavei-vos em todo caso contra os exageros do nacionalismo; se os alemães invocavam o deus das batalhas, os franceses costumam dizer que Nosso Senhor é bem francês. Se até o foot-ball quer exercer o papel de dissolvente da solidariedade nacional, pelo menos da solidariedade atlética, fomentando rixas interestaduais, das quais ainda nenhuma se rematou, graças a Deus, por morte de homem e o conseqüente ultimatum, mas que aí estão semeando a sizania!

Se um conselho de despedida posso dar à mocidade desta Faculdade de Direito, que tanto me tem distinguido, é o de zelar a sua independência moral, preservando-a das tentações fáceis da corrução, que não age apenas pelo dinheiro — esta é a sua forma rudimentar e vulgar — mas que age mais habilmente e mais eficazmente, proporcionando facilidades de vida aos que se fazem dependentes dos adventícios de maior sorte c lhe sacrificam sua altivez.

 

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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