EXISTENCIALISMO – FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA –

J. M BOCHENSKI – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL

 Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Fonte: Ed. Herder.

VI -FILOSOFIA  DA  EXISTÊNCIA

Olhou em torno de si: não viu senão a si mesmo.
Começou a gritar; Sou eu!… Começou a inquietar-se; porque quando se está só
começa-se a ter medo.
Brihadaranyaka Upanishad

16.   CARACTERES GERAIS DA
FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA

A.     O  QUE A FILOSOFIA DA
EXISTÊNCIA NÃO É.    

A filosofia  da existência
passou a ser de moda em vários países, depois da Segunda Guerra Mundial. L’Être
et le Néant
, a obra tão difícil de Sartre, que supõe profundos
conhecimentos da história da filosofia e cujas análises são a tal ponto
técnicas e abstratas que geralmente só são acessíveis a filósofos especializados
e bem formados, está novamente esgotada, apesar de suas oito edições sucessivas
e do número correspondente de exemplares publicados — umas dúzias de milhar.
Sem dúvida, os filósofos existencialistas franceses — especialmente Sartre —
vieram ao encontro do público com seus romances e peças de teatro. Mas esta
popularidade acarretou consigo certos equívocos a propósito do existencialismo
filosófico, equívocos que importa começar por dissipar. Por isso, diremos
imediatamente, e de uma vez por todas, o que o existencialismo filosófico não
é.

É certo que o existencialismo
se ocupa de problemas do homem, hoje chamados "existenciais", tais
como o sentido da "ida, da morte, da dor, etc, mas o existencialismo não
consiste em desenvolver tais problemas, que têm sido discutidos em quase todas
as épocas. Seria erro palmar qualificar de existencialistas S. Agostinho ou
Pascal ou certos escritores modernos, como o crítico espanhol Miguel de Unamuno
(1864–1937),
o grande romancista russo Fjedor M. Dostoievski (1821-1881) ou o poeta alemão
Rainer Maria Rilke (1875-1926). Estes escritores e poetas, sem dúvida,
debateram e trataram em suas obras de maneira particularmente impressionante diversos
problemas humanos, mas nem por isso são filósofos da existência.

Outro erro consiste em chamar
existencialistas aos filósofos que estudaram a existência no sentido clássico
do vocábulo ou o ser existente. Não faz sentido que muitos tomistas pretendam
fazer de S. Tomás de Aquino um existencialista. Não menos grotesco é o
equívoco de incorporar Husserl na filosofia da existência, pelo fato de haver
exercido grande influência sobre ela; sucede que Husserl colocou entre
parêntesis precisamente a existência.

Por último, importa não
identificar a filosofia da existência com uma única doutrina existencialista,
por exemplo a de Sartre, dado que, como a seguir veremos, há diferenças
essenciais entre as diferentes direções.

Em face de todos estes
equívocos, tenha-se como ponto assente que a filosofia da existência é uma
tendência filosófica que só tomou forma pela primeira vez em nossa época e, ao
sumo, remonta a Kierkegaard, tendência que se desenvolveu em direções entre si
divergentes, e das quais só o denominador comum pode ser denominado a
filosofia da existência.

B. Seus representantes.

 Afigura-se-nos ser mais
conveniente, no quadro desta exposição, agrupar primeiro os filósofos que
podem considerar-se como pertencentes à escola e, em seguida, procurar tirar a
limpo aquilo que lhes é comum. São pelo menos quatro os filósofos da atualidade
que sem contestação podem ser considerados "existencialistas":
Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Todos eles
apelam para Kierkegaard, o qual, apesar de muito distanciado no tempo, é
geralmente tido como um existencialista hoje muito influente. Afora estes
quatro pensadores eminentes, não se encontram muitos outros filósofos da existência
propriamente ditos, embora o existencialismo interesse a muitos filósofos e
exerça influência sobre eles. Poderíamos citar, entre outros, a colaboradora de
Sartre, Simone de Beauvoir, e sobretudo Maurice Merleau-Ponty, um dos pensadores
mais eminentes da filosofia francesa atual.   Também podem ser aqui mencionados
dois pensadores russos, Nicolai Berdiaev (1874-1948) e Leo Chestov (1866-1938),
que se tornaram conhecidos por suas obras escritas em francês. Mencionemos ainda o célebre pensador protestante Karl Barth (1886- ), fortemente
influenciado por Kierkegaard. Mas comete equívoco quem conta entre os
existencialistas a L. Lavelle, que é manifestamente um filósofo do ser. Em
nossa exposição circunscrevemo-nos aos quatro primeiros pensadores mencionados;
simplesmente, exporemos muito sumariamente a doutrina de G. Marcel, porque sua
principal obra filosófica até este momento ainda não veio a lume e de seus
restantes escritos é impossível obter uma visão de conjunto do seu pensamento.
Como datas principais do existencialismo podem ser fixadas as seguintes: em
1855 morre Kierkegaard; em 1919 publica Karl Jaspers sua Psychologie der
Weltanschaungen (Psicologia das mundividências); em 1927 aparecem o Journal
métaphysique
de Gabriel Marcel e Sein und Zeit de Heidegger; em 1932
vem a público a Philosophie de Jaspers, e em 1913 L’Être et le Néant de
Jean-Paul Sartre. Importa ainda assinalar que nos países latinos, especialmente
em França e Itália, o existencialismo só alcançou importância nos últimos
tempos, ao passo que na Alemanha já exercia sua maior influência por alturas de
1930.

C. As origens.

Já assinalamos a grande
importância das obras de Sören Kierkegaard (1813-1855) para o existencialismo.
Durante a vida, o filósofo protestante dinamarquês exerceu apenas influência
mínima e sua redescoberta do século XX deve-se à relação íntima que une seu
pensamento trágico e subjetivo ao espírito de nosso tempo. Marcel desenvolveu
suas idéias, afins das de Kierkegaard, num momento em que nem sequer conhecia
ainda as obras do dinamarquês. Kierkegaard não construiu um sistema
propriamente dito. Investe energicamente contra a filosofia hegeliana por causa
de sua "publicidade" e objetividade e nega a possibilidade da
conciliação, isto é, a possibilidade de abolir a oposição entre a tese e a
antítese numa síntese racional e organizada. Afirma a prioridade da existência
sobre a essência e parece ter sido o primeiro que deu à palavra
"existência" um sentido existencialista. É antiintelectualista
radical: segundo ele, não é possível chegar até Deus pela via intelectual, a
fé cristã está repleta de contradições e qualquer tentativa de racionalizá-la
representa uma blasfêmia,   Kierkegaard une a sua teoria da angústia à teoria
da solidão total do homem em face de Deus e do caráter trágico do destino
humano. Vê no "instante" uma síntese de tempo e de eternidade.

A par de Kierkegaard, Husserl,
com sua fenomenologia, tornou-se muito importante para o existencialismo.
Heidegger, Marcel e Sartre aplicam constantemente o método fenomenológico,
apesar de não aceitarem as teses nem sequer a posição fundamental de Husserl.
De fato, Husserl, que exclui de suas investigações a existência, mantém-se
inteiramente à margem do existencialismo.

Também a filosofia da vida
influiu fortemente no existencialismo e podemos até asseverar que este a
prolongou, desenvolvendo principalmente seu atualismo, suas análises do tempo,
sua crítica do racionalismo e freqüentemente até das ciências da natureza.
Bergson, Dilthey e principalmente, segundo parece, Nietzsche, podem ser
considerados como predecessores do existencialismo.

Enfim, a nova metafísica
repercutiu muito fortemente na filosofia da existência. Todos os
existencialistas levantam o problema tipicamente metafísico do ser, e alguns
deles, como Heidegger, salientam-se por seu profundo conhecimento dos grandes
metafísicos da Antigüidade e da Idade Média. No esforço que envidam para chegar
ao ser em si, os existencialistas procuram também, via de regra, superar o
idealismo. Contudo, alguns dentre eles, nomeadamente Jaspers, são ainda
fortemente influenciados pelo idealismo.

Vemos pois que o
existencialismo arranca das duas grandes correntes espirituais que provocaram
a ruptura com o século XIX, e é, além disso, influenciado por um outro movimento
típico do pensamento contemporâneo, a saber, a metafísica.

D. Traços comuns:

a) O traço comum fundamental
das diversas filosofias da existência de nossa época reside em que elas
procedem todas de uma denominada vivência "existencial", difícil de
definir mais de perto e que varia de filósofo para filósofo. Assim, em Jaspers
ela parece consistir numa percepção da fragilidade do ser, em Heidegger na
experiência da "marcha para a morte", em Sartre numa repugnância ou
náusea geral. Os existencialistas não ocultam por forma alguma que a filosofia
deles parte de uma vivência desta espécie.

Isso explica que a filosofia
existencial apresente em seu conjunto — até mesmo em Heidegger — o cunho de
experiência pessoal.

b) O objeto principal da
investigação é, para os existencialistas, aquilo que se chama
"existência". Mas é difícil determinar o sentido que eles atribuem a
este vocábulo. Em todo caso, trata-se da maneira de ser peculiarmente humana. O
homem (raramente assim denominado, mas preferentemente designado por
"Dasein", "existência", "eu",
"ser-para-si") é o único ser que possui a existência. Com maior rigor
de expressão, ele não a possui, ele é sua existência. Se tem uma essência,
esta essência é sua existência ou resulta de sua existência.

c)         A existência é
concebida de maneira absolutamente atualista. Ela nunca é, mas cria-se a si
mesma em liberdade, devêm. É um esboço, um projeto. A cada instante, ela é mais
(e menos) do que é. Os existencialistas reforçam ainda freqüentemente esta
tese, afirmando que a existência coincide com a temporalidade.

d) A diferença entre este
atualismo e o da filosofia da vida consiste em que os existencialistas
consideram o homem como mera subjetividade e não como manifestação de outra
corrente vital mais vasta (cósmica), como, por exemplo, sucede com Bergson.
Além disso, a subjetividade é, entendida em sentido criador: o homem cria-se
livremente a si mesmo, ele é sua liberdade.

e)Não obstante, seria inexato
concluir que, para os existencialistas, o homem se encontra fechado em si
mesmo. Pelo contrário, enquanto realidade imperfeita e aberta, ele parece
estar, por essência, muito Intimamente ligado ao mundo e em particular aos
outros homens. Todos os representantes do existencialismo admitem esta dupla
dependência, de modo que, por um lado, a existência humana parece estar inserta
no mundo, e por isso o homem tem sempre uma situação determinada; mais ainda,
é sua situação, e, por outro lado, há um vínculo particular entre os homens;
vínculo que, do mesmo modo que a situação, constitui o ser próprio da
existência. Este é o sentido da "co-existência" (Mitdaseín) de
Heidegger, da "comunicação" (Kommunikation) de Jaspers e do
"tu" (toi) de Marcel.

f) Todos os existencialistas
rejeitam a distinção entre sujeito e objeto e depreciam assim o conhecimento
intelectual no domínio da filosofia. Segundo eles, o verdadeiro conhecimento
não se adquire pela inteligência, mas é mister que a realidade seja vivida.
Esta vivência dá-se principalmente mediante a angústia, pela qual o homem se torna
cônscio de sua finitude e da fragilidade de sua posição no mundo, no qual foi
jogado, destinado à morte   (Heidegger).

A par destes traços
fundamentais comuns ao existencialismo, aos quais poderíamos ainda acrescentar
outros, existem igualmente profundas diferenças entre seus representantes tomados
isoladamente. Assim, por exemplo, tanto Marcel como Kierkegaard são
decididamente teístas, ao passo que Jaspers admite uma transcendência, que não
sabemos se deve ser entendida como teísmo, panteísmo ou ateísmo, todos os três
igualmente rejeitados por Jaspers. A filosofia de Heidegger parece ser ateia;
no entanto, segundo a declaração expressa, sem dúvida, de alcance limitado, do
autor, não o seria. Por último, Sartre tenta elaborar um ateísmo franco e conseqüente.

Diferem igualmente muito
entre si o fim e o método das várias filosofias da existência. Heidegger
pretende brindar–nos com uma ontologia em sentido aristotélico e aplica um
método rigoroso, como o faz Sartre, inspirando-se nele. Jaspers rejeita toda
ontologia no domínio da demonstração da existência, mas também faz metafísica e
emprega um método menos exigente.

17.   MARTIN HEIDEGGER

Origens. Características.

 Martin Heidegger (1889- )
foi noviço jesuíta. Estudou em seguida na universidade e doutorou-se com
Rickert em Friburgo; mais tarde entrou em relações com Husserl, habilitou-se
como professor com uma tese sobre a doutrina das categorias e da significação
de Duns Esgoto (1916) e foi coeditor do Jahrbuch für Philosophie und
Phänomenologische Forschung
. Em 1923, foi nomeado professor em Marburgo,
onde, em 1927, publicou sua obra mais importante, a primeira parte de Sein und
Zeit (Ser e tempo). Logo após (1928), voltou a Friburgo de Brisgóvia, aonde foi
chamado para suceder a Husserl, e aí exerceu sua atividade docente até 1946.

Heidegger é um pensador multo
original. A questão de conhecer seus precedentes históricos não se reveste, por
agora, de muita importância. Além de Husserl, cujo método adota, teríamos de
nomear Dilthey, que nele influiu em diversos aspectos. De-mais-a-mais, sua
temática inspira-se fortemente em Kierkegaard. Por outro lado, revela um conhecimento extraordinário dos grandes filósofos do passado, entre os quais amiúde
destaca Aristóteles, interpretando-o de maneira muito pessoal. Dedicou a Kant
um trabalho que produziu sensação (Kant und das Problem der Metaphysik,
1929).

Poucos pensadores há que
sejam tão difíceis de compreender como Heidegger. Esta dificuldade de
compreensão não provém de insuficiência da linguagem ou de uma falta de
construção lógica. Em todos seus escritos Heidegger procede sempre de maneira
rigorosamente sistemática. Mas seu hermetismo provém da terminologia estranha e
não habitual que ele criou a fim de poder exprimir suas concepções. Esta é uma
das fontes principais de freqüentes interpretações falsas e também uma das
razões pelas quais sua filosofia tem sido por vezes posta a ridículo,
especialmente por parte dos neopositivistas.

B. Problema e método.

 O intuito da obra capital de
Heidegger é a elaboração concreta da questão acerca do sentido do ser. Esta
questão não só tombara no esquecimento, senão que, graças a uma explicação
pretensamente clara e compreensível do ser, nunca havia sido posta nos devidos
termos. Não resta dúvida que possuímos uma compreensão vaga e comum do ser,
todavia o conceito de ser continua sendo o mais obscuro. Na realidade, o ser
não é algo semelhante ao ente (Seiende), mas é aquilo que determina o
ente enquanto ente. Se queremos aprofundar a questão do sentido do ser,
precisamos de buscar um ente que nos seja acessível tal como é em si mesmo.
Mas é óbvio que esta questão não é mais do que um modo de ser dum ente, a
saber, o ente que nós próprios somos. Heidegger denomina-o Dasein (existência,
literalmente: "ser-aí"). A análise do ente que é existência
constitui, portanto, o ponto de partida declarado da investigação. A
particularidade do Dasein consiste em que é um ente para o qual em seu ser está
em jogo este próprio ser. A compreensão do ser é já uma determinação do ser do
Dasein. Por este motivo, o Dasein é "ontológico", ao passo  que  
todos  os  outros  entes  são  apenas   "ônticos".   O próprio ser,
para com o qual o Dasein se comporta de tal ou tal maneira, chama-se
existência. Nunca se pode definir a essência do Dasein enunciando o que ele
contém. A essência do Dasein reside na sua existência e explica-se sempre por
esta existência. Só o fato de existir deve sempre fazer compreender a questão
da existência: esta compreensão é denominada "existenciária" (existentiell).
Pelo contrário, o conjunto da estrutura da existência chama-se
"existencialidade" e a análise desta é a "compreensão
existencial" (existentiales Verstehen). Consiste numa explicação
dos caracteres ontológicos do Dasein, que (contrariamente aos caracteres
ontológicos do ente que não é Dasein: as categorias) se chamam os
"existenciais". A análise existencial é uma ontologia fundamental.
Constitui a base de toda ontologia e de todas as ciências. Seu único método
possível é o método fenomenológico. "Fenômeno" aqui é tudo o que
se-mostra-em-si-mesmo (das Sich-an-ihm-selbst-zcigende). Portanto, os
fenômenos não são aparências ou aparições no sentido vulgar do termo. A
terminação "logia", em fenomenologia, procede de λεγειν,
que tem aqui a significação de "tirar o ente de sua obscuridade".
Porque há muitos fenômenos que ou não foram ainda postos a descoberto, ou ainda
estão cobertos de entulho. Portanto, a fenomenologia é aqui uma hermenêutica
(Dilthey). Aplica-se à existência, a fim de lhe interpretar a estrutura. Por
conseguinte, a filosofia é uma ontologia fenomenológica universal, que arranca
da hermenêutica do Dasein, a qual, como análise da existência, fixou o termo do
fio condutor de todas as questões filosóficas no ponto onde surge e aonde
retorna.

Mas Heidegger não foi além da
análise do Dasein que devia servir de fundamento a uma ontologia universal. A
segunda metade de Seini und Zeit ainda não veio a lume (1).

(1) Na Carta sobre o
humanismo e noutros ensaios recentes de Heidegger expressam-se algumas idéias
que parece indicarem uma viragem no seu pensamento. Mas, como esta última fase
de sua filosofia é mais insinuada do que exposta em suas últimas obras, prescindimos 
 dela   aqui.

C. O ser-no-mundo. (Das
in-der-welt-sein
).

O Dasein caracteriza-se pelo
fato de que existe, de que é sempre o meu (Jemeinigkeit), isto é, porque
não pode ser exemplar de uma espécie e, finalmente, porque se comporta de
maneira diferente relativamente a seu próprio ser.    O fundamento deste modo
de ser é o ser-no-mundo. Este ser-em não é uma relação de ser de dois entes
extensos no espaço, nem tampouco a relação entre sujeito e objeto. Tem antes a
maneira de ser que é a preocupação, quando se trata de entes brutos ou de entes
que não têm Dasein, e a maneira de ser que é a solicitude quando se refere a
outros existentes. O mundo compõe-se não de coisas, mas de instrumentos, que
são, por essência, "alguma coisa para…". O modo de ser do instrumento
chama-se amanualidade (Zuhandenheit, o estar à mão). O instrumento (das
Zuhandene
) está sempre em relação com outros instrumentos, Cada instrumento
remete-nos a outro instrumento, bem como àquele que manipula e utiliza o instrumento.
O caráter de ser do instrumento é o seu estado (Bewandtnis); este
refere-se, em última instância, a um para-quê (Wozu), o qual é uma
vontade-para-quê (Worum-Willen), isto é, ao Dasein. Portanto, o Dasein é
a condição da possibilidade de revelabilidade do instrumento. Cada instrumento
tem seu lugar, quer dizer, é colocado nele, exibido, etc. O lugar possível de
um instrumento é a proximidade (Gegend). Há no Dasein uma tendência
essencial para a proximidade, isto é, para uma distância (= aproximação) do instrumento.
As distâncias objetivas não coincidem com o
afastamento e a proximidade do instrumento: a "preocupação" é que
decide da proximidade e da distância. Donde se infere que o mundo é uma
determinação ontológica do Dasein: ele é unicamente no modo de existir do
Dasein.           

Todas- as velhas ontologias
cometeram o erro de confundir o instrumento, o que está à mão (Zuhandenes),
com alguma coisa simplesmente presente (Vorhandenes); este erro é
notório particularmente em Descartes (res extensa). Na realidade, o estar-à-mão
(Zuhandenheit) nunca se fundamenta unicamente na presença (Vorhandenheit),
mas, ao invés, o presente é sempre um "somente presente" (nur
Vorhandenes
); portanto, um modo defectivo do instrumento, daquilo que
está-a-mão.

Com o instrumento de trabalho
são dados outros Dasein: o mundo do Dasein é um co-mundo (Mitwelt). Seu
ser-em é uma existência-com (Mítdasein), e o Dasein é, por essência,
ser-com-outros (Mitsein). Se o modo de comportamento do Dasein
relativamente aos instrumentos é a preocupação, relativamente a outros Dasein
é a solicitude, que pode encarregar-se do que deve procurar para os outros, ou
ajudá-los a ser livres  em  seu  cuidado.    A simpatia   (Einfühlung)  
só -possível à base do ser-em-comum.

D.   A facticidade e o
cuidado. 

  O Dasein não só está no
mundo,  senão  que é  essencialmente constituído  pelo ser-no–mundo:  é 
precisamente seu ser-aí,  em  que se decompõe a palavra  alemã  Dasein  
(existência):  da,  aí,  e sein,   ser.    O Dasein é este aí iluminado por si
mesmo, ou seja, sua abertura, seu caráter aberto (Erschlossenheit).  
Esta abertura não se identifica com o conhecimento, mas é um
"existencial" que fundamenta o conhecimento.    A este modo de ser
correspondem três elementos: 1. o sentimento da situação original (Befindlichkeit,
literalmente: o sentimento abrupto de se encontrar-aí)  é um sentimento, um
estado de alma pelo qual o Dasein se revela como existente e se mostra a
"facticidade", o fato de ser do Dasein.    Este "fato de
ser" chama-se abandono (Geworfenheit), condição de o Dasein haver
sido jogado e abandonado no mundo para existir.   Note-se que a facticidade
não é um simples encontrar-se, senão um caráter ontológico  do Dasein.    2. 
A  compreensão   (Verstehen)   deve ser aqui tomada no sentido em que se
diz: "poder estar perante uma  coisa":  na compreensão ou 
interpretação reside a maneira de ser do Dasein como poder-ser.   O Dasein
nunca é alguma coisa dada de uma vez para sempre, mas é aquilo que ele pode
ser: uma possibilidade projetada.   A compreensão   possui   uma   estrutura  
que   Heidegger   chama   "projeto" (Entiwurf): a captação
ontológica existenciária do âmbito do poder-ser.    É uma maneira de ser do
Dasein, na qual este é sua  possibilidade.    A apercepção   (Ausbildung)  
do Dasein como interpretante chama-se "explicitação"  (Auslegung):
não é  necessariamente  uma  expressão   (Aussage).    3.  A  discursividade
(Rede) ê o fundamento da linguagem, não a própria linguagem.    É a
articulação significativa da inteligibilidade do ser-no-mundo,    O homem é
ζωον λóγον εχον, um
ser que fala.   A discursividade é concebida com tanta amplitude que abarca
também como possibilidades o ouvir e o calar.

Podemos captar a estrutura
global do "aí", apoiando-nos no fenômeno da angústia. A angústia
difere do medo, em que, na angústia, a ameaça não se encontra em parte alguma.
A fonte da angústia é o mundo como tal; e aquilo que nos angustia é a nossa
possibilidade-de-ser-no-mundo. Assim a angústia mostra o Dasein, enquanto
existindo facticamente em seu ser-no-mundo.    Mas este ser transcende-se
sempre a si mesmo. Como estrutura do Dasein temos, portanto, a de
ser-por-antecipação-no-mundo, como ser ante os entes que lhe saem ao encontro.
Isto não é outra coisa senão o cuidado (Sorge). Tudo o que o Dasein faz,
deseja, conhece, etc, preocupação, solicitude, teoria, prática, querer,
desejar, impulsão e inclinação, não são mais do que manifestações do cuidado.  
O cuidado é o ser do Dasein (do "ser-aí").

E. O "se" e o
ser-para-a-morte.

Esta análise é incompleta,
porque o Dasein, enquanto existe, nunca chega a alcançar sua totalidade; há em
sua essência um inacabamento constante. Só a morte representa o fim do Dasein.
Mas com a morte o Dasein não mais pode ser apreendido como ente, e nunca temos
uma experiência autêntica da morte de outrem. Contudo, na morte o Dasein nunca
se perfaz nem simplesmente desaparece: o fim que a morte significa quer dizer
que o Dasein é um ser que termina. A morte é uma possibilidade de ser, a
possibilidade mais pessoal, mais sem par, mais irrepetível. O próprio ser do
Dasein é ser-para-a–morte.   O Dasein, desde que é, assume esta maneira de
ser.

Esta é justamente a fonte da
angústia do Dasein. Busca refúgio no mundo. Por temor de ser ele mesmo, por
medo de se defrontar com a angústia, o Dasein refugia-se no impessoal
"Se" (Das Man). O "se" é um existencial, um modo de
ser, é o ser inautêntico do Dasein, no qual este se sujeita a um elemento
neutro que impõe seu ponto de vista e sua maneira de agir. Este "se"
não é uma pessoa em concreto nem todos os homens em conjunto. Seus traços característicos consistem em que procura a mediocridade e possui tendência
para o nivelamento. Descarrega o Dasein de toda decisão e responsabilidade
próprias: age-"se" e fala-"se" desta ou daquela maneira. O
"se" seduz, tranqüiliza, aliena. Manifesta-se no palavrório, no qual
o diz-"se" passa por ser a verdadeira realidade do discurso, na
curiosidade versátil, na distração e agitação contínuas, enfim no equívoco: já
não se consegue distinguir entre o que se sabe e o que se ignora. Estes três
fatores caracterizam o ser da quotidianidade, a existência quotidiana,
qualificada de queda do Dasein. O Dasein desprendeu-se de si mesmo e tombou no
mundo.

A angústia da morte faz que o
Dasein caia neste ser inautêntico, quotidiano, num ser que é a não-verdade
fáctica. Porque o "se" não permite pensar na morte própria, e só fala
da morte na forma impessoal de "morre-se".

F. Consciência e resolução.

Retirar-se do "se"
é uma opção, um decidir-se em favor de um poder-ser por parte do mais autêntico
eu. O testemunho deste poder-ser é a consciência. A consciência (Gewissen)
é um modo da discursividade, um apelo que faz que o Dasein cesse de escutar o
"se" e seu palavrório. Não é possível explicar a consciência por uma
função biológica nem ver nela a voz de uma potência estranha (Deus): quem chama
é o cuidado, o Dasein, que, jogado no seu abandono, se angustia pelo seu
poder-ser. A voz da consciência nada diz que pudesse ser "falado"; é
no modo inquietante do silêncio que ela mostra a culpa. Não se trata aqui de um
estado de culpabilidade no sentido vulgar, senão daquilo que a fundamenta:
culpa é ser fundamento de uma niilidade (Nichtigkeit). O estado de
culpabilidade não resulta, portanto, de uma falta, mas ao invés; porque o nada
pertence ao sentido existenciário do abandono (Geworfenheit) e o projeto
não é só determinado pela niilidade do fundamento, mas é também essencialmente
negativo. O estado de culpabilidade pertence pois ao ser do Dasein e significa:
fundamento nulo de sua niilidade.

A escolha, que o
"querer-ter-consciência" constitui, é uma disposição para a angústia,
que se perfaz no silêncio. Ao autoprojetar-se, assumido no silêncio e na
angústia, para esta culpabilidade genuína, dá Heidegger o nome de resolução (Ent-schlossenheit).
Constitui a lealdade do Dasein a si mesmo; é a liberdade para a morte. Liberta
o Dasein do "se", mas não de seu mundo. Pelo contrário: ela dá aos
outros que existem conosco a possibilidade de ser em seu poder-ser mais
autêntico. Só a resolução desvela a situação, ou seja, o "aí" {Da)
que nela cada vez se patenteia. Graças à resolução, o homem aceita corajoso seu
destino e desempenha decididamente seu papel no mundo.

G. Temporalidade e história.

 Partindo da
"resolução", é possível solucionar o problema da unidade do Dasein.
Esta não se fundamenta no eu. Na realidade, é o "se" quem com maior
freqüência e alvoroço diz eu-eu, porque, no fundo, ele não é o eu autêntico. A
tradição e Kant não lograram superar este ponto de vista do "se".
Uma análise do eu mostra que com o eu se exprime o cuidado. O "mesmo"

(Selbst) é pois a base sempre presente do cuidado, e a autonomia do eu
não significa outra coisa senão a resolução que se antecipa.   Ora, a
resolução que se antecipa é o ser para o poder-ser mais autêntico e
característico (para a morte). Mas isto só é possível se o Dasein puder volver
sobre si, isto é, agüentar. O agüentador deixar-vir-sôbre-si a mais autêntica
possibilidade é o porvir. Por outro lado, o abandono só é possível, porque o
Dasein por vir pode ser seu "ter sido", ser tal qual foi: o Dasein só
pode volver a si na medida em que pode retroceder para si. Finalmente, o ser
resolvido na situação só é possível se o ente se fizer presente. Retrocedendo
para si, tendo em vista o porvir, a resolução torna-se presente na situação.
Isto como fenômeno unitário chama-se temporalidade. A temporalidade é o sentido
do cuidado e, portanto, o sentido da existência. Ê essencialmente
"extática", a exterioridade original (ursprüngliche Ausser-sich).
O futuro, o passado e o presente são êxtases (Ekstasen, ec-stases) da
temporalidade, sendo o futuro o elemento primário. Mas, visto que o Dasein é
ser-para-a-morte, o futuro autêntico revela-se como finito.    O tempo
primordial é finito.

Todos os existenciais podem e
devem ser explicados pela temporalidade que os torna possíveis. Mas o Dasein
não existe como soma das realidades momentâneas, não preenche uma vida traçada
de antemão, mas "estende-se" de maneira que desde o início seu ser
próprio se constitui como um estender-se. Tanto o "término" como o
"ente" são unicamente, enquanto o Dasein existe. A mobilidade
específica do ser que se estende é denominada por Heidegger o acontecimento (Geschehen)
do Dasein e a descoberta da estrutura do acontecimento significa compreensão
da historicidade (Geschichtlichkeit). Pelo que, só o Dasein é
primariamente histórico, mas secundariamente também o são o intramundano e o
mundo, que só é na medida em que o Dasein se temporaliza.

À base desta análise
desenvolve-se uma teoria do tempo e criticam-se as teorias anteriores,
especialmente as de Aristóteles e de Hegel.

H. A transcendência e o nada.

Heidegger não fêz mais do que esboçar os temas básicos de sua metafísica, que é
muito difícil de interpretar corretamente. Limitar-nos-emos aqui a dar um
resumo muito sumário.

A relação do Dasein com
existentes brutos comporta uma transcendência dupla. Por um lado, o Dasein é
jogado no mundo, e é regido pelo ente: o mundo transcende o Dasein. Mas, por
outro lado, o Dasein é essencialmente "construtor de mundo", 
transcende o mundo, ultrapassa o existente, no sentido de que extrai este
existente de seu ocultamente fundamental e lhe dá o ser, isto é, o sentido, a
verdade. Sem Dasein não há ser, embora haja ente. Ora, este ultrapassamento (Ucberstieg)
parece justamente constituir a "ipseidade" (Selbstheit) do
Dasein: o Dasein devêm na medida em que transcende o ente. A essência (Wesen)
do Dasein é o transcender.

O Dasein tem ainda uma
terceira transcendência: a transcendência do nada. O nada não é só uma
categoria lógica, mas também primariamente uma categoria ontológica: não é a
negação que funda o nada, mas o nada (ôntico) que funda a negação. A relação
entre o Dasein e o nada é a seguinte: primeiramente, o Dasein carece de fundo,
procede de um abismo sem fundo, do nada; em segundo lugar, seu fim é a morte,
outro abismo do nada; em terceiro lugar, o próprio ser do Dasein é uma corrida
para a morte, para o nada: o Dasein é, em si mesmo, nada. Por outro lado, o ser
de cada ente que não é Dasein é tirado do nada. Podemos dizer em geral: ex nihilo
omne ens qua ens fit
. Heidegger deveria propriamente dizer: "o nada
existe"; mas para evitar esta fórmula contraditória diz que "o nada
nadifica", — expressão que muitos ridicularizaram, entre outros os
neo-positivistas.

A questão agora é: que deve
significar o "nada"? A resposta é a seguinte: como o ente bruto (= o
ente que não é Dasein) sai do nada graças ao Dasein, e como este devir consiste
em que o Dasein lhe confere inteligibilidade (verdade) e  como, por outro
lado, para Heidegger, segundo vimos, só o ser, e não o ente, provém do Dasein,
talvez seja possível interpretar o pensamento do filósofo no sentido de que se
deva entender o nada como um existente bruto sem ser, um caos absolutamente
ininteligível. O Dasein é para ele o "lumen naturale", que
confere ao ente estrutura e sentido. Se esta interpretação é justa, poderíamos
interpretar a filosofia de Heidegger no sentido de um imanentismo radical, no
qual todo sentido depende do Dasein; mas o próprio Heidegger repudiou
energicamente esta interpretação geralmente admitida. Como quer que seja, sua
filosofia não deve ser interpretada num sentido subjetivista. Heidegger ensina
expressamente que o mundo se encontra na origem da subjetividade e da objetividade.

Com estas idéias se prende a
doutrina heideggeriana da liberdade,   O Dasein constitui-se a si próprio como
pro-jeto (Ent-wurf) na transcendência: a transcendência é a própria
liberdade. Poderíamos dizer igualmente que o Dasein é liberdade. E como todo
sentido, portanto, todo fundamento, provém do Dasein, resulta que a liberdade é
o fundamento último de toda inteligibilidade: a liberdade é o fundamento do
fundamento, parece ser a última palavra da filosofia de Heidegger.

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