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20.   KARL JASPERS

A. Características e
influências.

Karl Jaspers (1883- ) foi um dos primeiros que se apresentaram em
público com trabalhos de tendência existencialista. Mas é igualmente, entre
todos os outros, aquele que concebeu o sistema mais compacto e mais próximo da
metafísica. Por isso nos ocupamos dele em derradeiro lugar. Nos primeiros anos
de sua carreira foi psiquiatra. A importante obra Psychologie der Welt-anschauungen {Psicologia das mundividências, 1919) marca sua passagem para a filosofia, à
qual se dedicou de ora em diante. Sua obra capital em três volumes tem por
título Philosophie (1932) e apresenta uma visão sinóptica de seu sistema
construído com virtuosismo e minúcia. Publicou ainda uma série de outras obras,
entre as quais, em particular, o primeiro volume de um trabalho de grandes proporções,
Philosüphische Logik (1947, 1103 páginas!).

O pensamento de Jaspers é, no
conjunto, bem mais equilibrado que o da maioria dos filósofos
existencialistas. Assim, por exemplo, atribui às ciências espaço muito mais
importante e ocupa-se a fundo com as teorias científicas. Seus livros, escritos
numa linguagem relativamente simples e sem abuso dos neologismos que tanto
dificultam a leitura de outros autores, albergam rico tesouro de análises
extraordinárias. Distingue-se de seus confrades pelo esforço visível em chegar
a uma metafísica e a uma espécie de teologia natural. Encontram-se, além disso,
nele, a atitude fundamental e as convicções comuns a todos os filósofos da
existência.

O filósofo de quem mais
depende, declara o próprio Jaspers, é Kant. De fato, admite as teses kantianas.
Parece terem sido também seus principais padrinhos Kierkegaard, Nietzsche e o
sociólogo Max Weber. Contudo, importa fixar-se em quatro nomes que ele cita
ocasionalmente: Plotino, Bruno, Spinoza, Schelling. Jaspers, e sobre isto não
resta a mínima dúvida, não é só um filósofo da existência fortemente
influenciado por Kant; é também — quem sabe se preferentemente — um
neoplatônico.

B. A busca do ser.

Jaspers, é
certo, repudia uma ontologia racional; contudo, mantém uma atitude
ontológica e metafísica. Segundo ele, a filosofia é, por essência,
metafísica: ela propõe-se o problema do ser. Mas o ser não é, como tantas
vezes se supõe, algo dado. "Seria loucura pensar que o ser é alguma
coisa que todos podem conhecer". A este respeito, Jaspers admite duas
teses fundamentais de Kant, que, em seu entender, é "o filósofo por
antonomásia", que a nenhum outro se pode equiparar. Por um lado,
alega o postulado da consciência: não há objeto sem sujeito, tudo o que é
objeto é determinado pela consciência em geral. O ser objetivo (Dasein, o existente) é sempre uma aparência. Por outro lado,
Jaspers admite a doutrina kantiana das idéias e desenvolve-a: o todo nunca
nos é dado, e assim as três idéias de Kant (mundo, alma, Deus)
convertem-se em três "englobantes" (Umgreifende). Tudo o
que conhecemos é-nos cognoscível dentro dos limites de um horizonte. O que
engloba todas os horizontes é o englobante incognoscível: primeiramente o
englobante que é o mundo, em seguida o englobante de mim mesmo, e finalmente
o englobante total, a transcendência. A estes dois traços fundamentais
acresce ainda uma experiência existencial que constitui, acaso, a medula do
pensamento de Jaspers: a experiência da caducidade e da fragilidade de
todo ser. O mundo como tal, é ruína permanente. Não oferece nenhuma consistência.
A realidade do mundo não é nenhuma totalidade. A existência nunca se
realizou. O homem não é realmente senão como existência histórica,
possível. A genuína realidade do ser retira-se sem cessar, até que possa
fixar-se na Transcendência. Mas a Transcendência não é dada
objetivamente; ela torna-se real para nós só na ruptura com toda
existência. Por esta forma, mediante o fracasso de tudo, inclusive da
própria busca, chegamos ao ser.    "O fracasso é o fim supremo".

Pode-se falar do ser em três
sentidos. Encontramos primeiro o ser como o que existe (Dasein), como o que é
objetivo. Conhecemos, em seguida, o ser como para-si (Fürsichsclbstsein).
que é radicalmente diferente de todo ser das coisas e se denomina
"existência" (Existenz) (1) Temos, finalmente, o em-si
(Ansichseicnde), que não pode ser captado nem pelo existente nem pelo eu — a
Transcendência. Estas três maneiras de ser são outros tantos pólos do ser, no
qual me encontro. Qualquer que seja o ser que eu tome como ponto de partida,
nunca encontro a totalidade do ser. Eis por que a empresa da filosofia é um
transcender. A transcendência efetua-se de três maneiras: na orientação no
mundo, no esclarecimento da existência e na metafísica. A primeira tira o mundo
de sua consciência objetiva que descansa sobre si e vai até às fronteiras que
já não se podem ultrapassar. O esclarecimento da existência arranca do eu como
existente (Dasein), objeto da psicologia, e, transcendendo, chega ao eu
específico como existência. Enfim, na metafísica, transcender não é possível
senão à Existência que, saindo do existente (Dasein) volta a si mesma; ela
eleva-se à Transcendência. Nestas três maneiras trata-se de superar a oposição
entre objeto e sujeito, a fim de encontrar o ser verdadeiro. É óbvio que tal
processo de pesquisa não é acessível à razão. Jaspers busca em sua filosofia o
ponto em que se firmam o objeto e o sujeito. Nesse domínio já não há conceitos.
As palavras já não têm sentido: fala-se em termos de pensamento, que .não têm
significação. As palavras são indicadores que marcam a direção que se deve
tomar, e nada mais.

(1) Note-se que o Dasein de
Jaspers corresponde ao nichtda-seinsmdssige Seiende de Heidegger, ao passo que
o Dasein de Heidegger corresponde à Existenz de Jaspers. E a Existenz de
Heidegger é a existência  do Dasein.    (N.  do trad.).

C. Orientação no mundo

. A orientação filosófica no
mundo tenta quebrar o hermetismo cósmico que nasce da orientação empírica do
mundo. Em primeiro lugar, ela assinala os limites do forçoso: na matemática os
axiomas, nas ciências empíricas a vinculaçâo dos fatos às teorias, na concepção
do mundo a dificuldade da comunicação e a ausência de perfeição sistemática.
Acentua vigorosamente as antinomias que se manifestam’ por toda a parte.
Mostra como é impossível obter a unidade da imagem do mundo. Porque no mundo há
quatro esferas de realidade: matéria, vida, alma e espírito. Todas as quatro
são reais — o espírito, em particular, não é só intencional, mas real em
sentido estrito — embora num sentido diferente das demais camadas de ser. São
modos heterogêneas da objetividade: entre eles há sempre uma fenda. Por
exemplo, a idéia da "descendência" é evidente para a investigação
encaminhada à orientação no mundo, mas está em antinomia com a consciência do
espírito. Há sem dúvida uma tendência para fazer do espírito ou da natureza um
absoluto e para negar qualquer outra realidade, mas uma orientação sensata no
mundo atém-se ao real todo quanto e reconhece a existência das quatro esferas
de realidade. Estas não devem ser referidas a um princípio unitário, nem sequer
ao existente inorgânico.

A falta de unidade
manifesta-se também na ação técnica, na solicitude, na educação, na política:
em toda a parte esbarramos em barreiras insuperáveis. Jaspers ilustra o que
diz pela análise das diversas atitudes de um médico perante um enfermo e mostra
como nenhuma delas é suficiente. Examina, em seguida, o sentido e o valor das
ciências da natureza, estudando as objeções que se erguem contra elas. Depois,
estuda as ciências do espírito e a classificação das ciências. Torna-se patente
que toda classificação das ciências é relativa e condenada ao fracasso, quando
pretende ser verdadeira. Assim como o mundo não se fecha em si mesmo — pois que
não tem nenhum fundamento em si — assim também a orientação no inundo fornecida

pelas ciências não se mantém de pé sobre si.

Outro tanto se pode dizer da
orientação filosófica com limites fixos, como o positivismo e o idealismo. O
positivismo converte em absoluto o pensamento mecanicista e o saber forçoso;
não pode compreender-se a si mesmo. A vida positivista mostra já sua
impossibilidade, quando trata de se justificar: coisa que, do ponto de vista
positivista, carece de sentido. Mas o Idealismo é tão unilateral e falso como o
positivismo. Ambos respondem à questão de saber qual é a verdadeira realidade:
o todo e o universal; mas desconhecem completamente a existência e não conhecem
o indivíduo senão como um objeto. Para eles o ser é algo demonstrado e
demonstrável. Em suas éticas, a resolução humana perdeu sua origem. A
orientação no mundo mostra a impossibilidade de uma imagem válida do mundo.

Contudo, graças precisamente
a suas falhas, estas tentativas prestam serviço à filosofia existencial. Só há
dois caminhos para sair da crise que elas sofrem: ou voltar à autoridade e à
revelação, ou avançar para a independência filosófica. A antítese entre
religião e filosofia manifesta-se em toda sua tensão na especulação teológica e
filosófica. Nem a teologia nem a filosofia podem afirmar um saber forçoso como
explicação de uma fé. Mas é mister escolher entre elas: ou lançar-se nos
braços da autoridade ou correr os riscos próprios da existência. Entre a
filosofia e a religião trava-se uma luta. Mas, quando a filosofia e a religião
são autênticas e não deslizam para um saber objetivo, uma respeita a outra como
verdade possível, embora não consigam entender-se mutuamente.

D. A existência.

O que na linguagem mítica se
denomina "alma", na filosófica chama-se "Existência". :É um
ser que se defronta com todo o ser cósmico. Não é, mas pode ser e deve ser. Eu
próprio sou este ser na medida em que não me converto em objeto para mim mesmo.
Representa uma irrupção no ser do mundo e só reside no agir. Encontramos esta
irrupção em situações-limites (morte, sofrimento, luta e culpa), na consciência
histórica, na liberdade e na comunicação.

A confirmação da existência
pelo pensamento é o esclarecimento da existência (Existenzrhhellung).
Mas os recursos mentais para chegar a este esclarecimento devem possuir caráter
peculiar, porque a existência não é um objeto: nunca posso dizer de mim mesmo
aquilo que sou. O pensamento esclarecedor nunca pode captar a realidade
existencial, porque esta não reside senão na ação efetiva. Se, todavia, ele não
é só pensado, mas também concebido como transcendendo a existência (que, por
sua vez, é um transcender), ele é uma realização da possibilidade existencial
e pode apreender a existência possível.

Os métodos do esclarecimento
da existência são: ir até ao limite, para além do qual só há o vácuo; a
objetivação da linguagem psicológica, lógica d metafísicas e, finalmente, o
Invenção de um universal específico. Este último método permite construir uma
linguagem onde vibra uma possibilidade existencial e se estabelece um esquema
formal de existência, que ó de todo Inadequado e só tem sentido como meio de
Interrogar a existência.

Com a ajuda de semelhantes
esquemas é possível descrever a existência mediante um conjunto de categorias
particulares, opostas às de Kant e que se devem aplicar ao ser existente: a
realidade existencial, em vez de estar subordinada n regras, é absolutamente
histórica. Tem origem em si mesma, ou, por outras palavras, é livre; ser
significa aqui decidir. A existência não é algo rígido, mas confirma-se no
tempo. Não conhece causalidade recíproca, mas sim comunicação. O que nela é
real não é o que corresponde a uma sensação, mas o absoluto no momento
decisivo. À grandeza do existente corresponde aqui o grau de existência; a
possibilidade objetiva contrasta com a possibilidade de escolha como indecisão
do porvir, na qual consiste minha própria existência. À necessidade do
existente corresponde o tempo pleno do instante, e ao tempo indefinido opõe-se
o eterno presente. A existência não é objetiva, mensurável, experimentável,
universalmente válida, mas é livre em sua origem. Cada existência tem seu
tempo; há nela origens e renascimentos.

Entre as muitas
pseudodefinições da existência dadas por Jaspers (uma verdadeira definição é
impossível), pode-se considerar a seguinte a mais adequada: "A existência
é o que nunca se converte em objeto, é a origem de meu pensamento è ação, da
qual eu falo em termos que nada significam; a existência é o que se refere a si
mesmo e, dessa maneira, à sua transcendência".

Mas seria erro perigoso
querer conceber a existência como subjetividade. Na realidade, ela é uma brecha
no círculo do ser formado pelo objeto e pelo eu. Ela está para além desta
distinção: a filosofia põe em questão a objetividade e a subjetividade. A
existência faz força em dois sentidos: no sentido do objetivo e no sentido do subjetivo.
O alvo da filosofia é, neste caso, a posse nova, oscilante da objetividade.
Compreende-se que Jaspers não consiga exprimir-se numa terminologia objetiva,
mesmo quando estuda o problema da objetividade.

Se quisermos descrever com
maior precisão a existência, precisamos de compreender claramente as noções de
comunicação, de historiedade e de liberdade que a existência é.

E. Comunicação.

A existência nasce de si
mesma, mas não só de si mesma e consigo mesma: não hà existência senão enquanto
comunicação consciente; só na comunicação é que eu sou. Jaspers distingue
diversas espécies de comunicação, nas quais o homem existe como Dasein. Todas
têm seus limites, e para além destes se encontra a comunicação existencial.
Esta é um processo de revelação- e, ao mesmo tempo, de realização do eu como
"mesmo" (Selbst). Nela o "mesmo" dá-se ao
"mesmo" em criação recíproca. A comunicação é uma luta amorosa. Nela
a existência pugna por uma franqueza sem reserva. Mas trata-se de uma luta
muito singular: não se pretende a superioridade nem a vitória: cada qual põe
tudo à disposição do outro. O amor não é ainda comunicação, mas é a sua fonte;
sem comunicação existencial o amor é problemático. A luta amorosa da
comunicação nunca cessa, enquanto a comunicação não for interrompida. A
comunicação manifesta-se como um fazer-se a partir do nada, mas não podemos
saber qual seu fim ultimo.

A comunicação pode
manifestar-se igualmente no mando e no serviço (como fidelidade e bondade,
humildade e responsabilidade), no trato social, que é. uma condição de
existência da comunicação, na discussão, quando há compreensão recíproca, e
até na vida política, sempre que não se faça dela algo de absoluto. A
comunicação desempenha um papel particularmente importante em filosofia. Na introdução à sua obra principal Jaspers declara: "Não filosofamos a partir
da solidão, mas a partir da comunicação. Nosso ponto de partida é, no
pensamento e na ação, de homem para homem como de indivíduo para
indivíduo". Não é possível filosofar sem comunicação. Um pensamento é
filosoficamente verdadeiro na medida em que sua marcha exige a comunicação. A
verdade filosófica tem sua origem e realidade na comunicação. A razão é óbvia:
filosofar é um ato da Existência, a qual por seu lado radica unicamente na
comunicação. Sendo assim, não pode haver nenhuma verdade definitiva como
sistema filosófico, porque também o sistema da verdade não se adquire senão
pelo processo da evolução pessoal e só pode ser realizado no fim dos tempos,
quando tiverem cessado o tempo e o processo.

F. Situação e historicidade.

A Existência está sempre em situação. Por situação entende Jaspers uma realidade para um sujeito que se Interessa por ela
como Dasein, para o qual ela significa limitação ou demasiada liberdade. As situações
podem ser modificadas ou contornadas, mas há também situações absolutas. São
as situações-limites, que não está em nossa mão modificar, que são definitivas,
nas quais fracassamos. Estas, não logramos conhecê-las, só podem ser sentidas
pela existência. São as seguintes: eu, enquanto existente (Dasein), estou
sempre numa situação determinada, morte, sofrimento, luta e falta. Reagimos
ante as situações-limites pelo desenvolvimento da existência possível em nós:
tornamo-nos nós mesmas quando penetramos com os olhos abertos nas
situações-limites. Só numa situação-limite se cumpre a realização do todo da
existência. Por outras palavras, a existência real é realidade histórica que
cessa de falar.

Porque existência ê
historicidade. Na historicidade reve-la-se-me a duplicidade da minha
consciência: sou unicamente como existente no tempo e não sou eu mesmo no
tempo. Mas estes dois aspectos são originariamente a mesma coisa na consciência
existencial. A historicidade é a unidade do existente (Dasein) e da
existência (Existenz), da necessidade e da liberdade: tanto a
necessidade absoluta quanto a liberdade sem obstáculos são abolidas na
consciência histórica. Se eu não fosse um existente {Dasein), a
existência nada seria; porque não há existência sem existente. Tampouco eu
seria, se não fosse como existência. Pelo que, a historicidade é unidade do
tempo e da eternidade. A existência não é nem ausência de tempo, nem
temporalidade como tal, mas é uma coisa na outra, Este caráter da existência
manifesta-se no "instante": o instante é identidade da temporalidade
e da a temporalidade, ê aprofundamento do instante real em presente eterno.

"É claro que na
consciência histórica se capta somente o ser individual, nunca o universal. Por
conseguinte, a historicidade não é pensável. Mas por isso ela não é o
irracional, visto que o irracional é algo puramente negativo, ao passo que o
absolutamente histórico é inteiramente positivo. Ê o portador da consciência da
existência, a fonte, não o limite, a origem, não o resíduo.

G. Liberdade e culpa.

A existência "é"
liberdade. Esta liberdade situa-se num plano inteiramente diferente da questão
do determinismo ou do indeterminismo.   Com efeito, estes tomam o ser objetivo
como se fosse todo o ser e por esse motivo perdem a liberdade. A. liberdade
existencial não é objetiva, não é demonstrável nem refutável. Não se identifica
com o saber nem com o livre arbítrio nem com a lei; contudo não há liberdade
sem saber, sem livre arbítrio e sem lei. Tenho consciência da liberdade na
opção existencial, isto é, na resolução de ser eu mesmo. A liberdade, enquanto
idêntica à existência, é simplesmente inconcebível. Tenho seguramente certeza
dela, não no pensamento, mas no existir. Por isso, a liberdade se apresenta
como unidade contraditória de livre arbítrio e de necessidade: posso, porque
devo. Livre na opção, por ela obrigo-me, realizo e suporto conseqüências. É um
constrangimento, não pela realidade empírica, mas pela auto-criação no instante
da opção. Donde se infere que, assim como não há existência sem existente
(Dasein), assim também não há liberdade absoluta.

Como sei que sou livre,
reconheço-me como culpado. Mas a culpa não é algo alheio à liberdade: ela está
no interior de minha liberdade e dá-se pelo fato de eu ser livre. Porque
existimos numa atividade que é sua própria razão de ser: tenho de querer e agir
para viver. Até a inação é já uma ação. Ora, mediante a opção e a ação lanço
mão de uma possibilidade, quer dizer que devo deixar de lado a outra
possibilidade. Mas as outras possibilidades são os homens. Pela decisão de
existir, isto é, pelo meu próprio Dasein, torno–me culpado. Esta culpa destrói
toda autojustificação da existência em devir. Esta falta original é o fundamento de todas as outras.   Ela é inevitável, é a própria existência.

H. A transcendência.

O existente não tem
fundamento e encontra-se estraçalhado; a existência é uma insuficiência sem
fim. Ela é somente em relação à transcendência, ou não é nada. Todo ser como
subsistente e todo ser como liberdade é um ser, não é o ser. O ser verdadeiro é
transcendência. Esta é absolutamente inobjetiva e oculta. A metafísica, que
dela se ocupa, não pode empregar senão símbolos; seu pensamento desmorona-se
logicamente. Ser e não-ser alternam nela em perpétua mudança. Como objetividade
metafísica, a transcendência aparece no mito, na teologia e na filosofia, que
entre si estão em luta constante. Contudo, o verdadeiro método da metafísica
consiste em seguir um dos três caminhos: o caminho da transcendência formal, o
das relações existenciais e o da leitura das cifras.

Na transferência formal não
apenas são transcendidas as categorias do existente (Dasein), como também o é a
própria existência. É quase inevitável pensar Deus como personalidade;  mas a
divindade permanece oculta.

As relações existenciais da
transcendência são: pertinácia e entrega, queda e levantamento da existência, a
lei do dia e a paixão da noite, a riqueza do múltiplo e o uno. Na série das
relações tornou-se célebre a doutrina das duas leis. Nosso ser, ao existir,
parece estar sujeito a duas potências: a lei do dia ordena, exige a claridade e
a lealdade e quer realizar no mundo. A paixão da noite é um ímpeto de se
arruinar no inundo; quebra todas as ordens, é obscuridade, baseia-se na
vinculação à terra, na sujeição à mãe, à raça. Exprime-se no erotismo. Os dois
mundos encontram-se em relação recíproca, mas a síntese não se cumpre em
nenhuma existência. Na teoria do múltiplo e do uno, Jaspers rejeita a
possibilidade de aplicar a unidade ou a multiplicidade numérica à divindade,
bem como qualquer outra unidade ou multiplicidade de nós conhecida. A
transcendência é o uno, mas tanto o monoteísmo quanto o politeísmo são
insuficientes. Nem sequer se pode atribuir a Deus a personalidade, porque a
personalidade só existe juntamente com outras personalidades, e a divindade não
tem semelhantes a si. Em todas estas partes de sua doutrina Jaspers é discípulo
fiel de Plotino. Sua" divindade é como a do neoplatonismo: oculta,
incognoscível, é o uno absoluto que supera todas as categorias. É
Transcendência, mas está, ao mesmo tempo, no existente (Dasein) e na
existência. Pelo contrário, sua teoria das cifras contém algo novo, se bem que
nas linhas gerais Jaspers se mantenha fiel á tradição neoplatônica.

I. Leitura das cifras e Fracasso.
O método mais importante da metafísica é a leitura das cifras (Chiffrelesen).
Cifra é o ser que nos situa em presença da Transcendência, sem que esta deva
converter-se em um ser objeto ou em um ser sujeito (Existência). Na cifra é
impossível separar o símbolo daquilo que é simbolizado: ela traz a
Transcendência ao presente, mas não é interpretável. Permanece sempre ambígua.
Muito menos há uma interpretação geral das cifras; toda e qualquer explicação é
sempre uma interpretação para a Existência. Porque a Existência é o lugar de
leitura das cifras.   Esta leitura leva-se  a  efeito em  nossa ação;  nesta leitura
capto um ser, ao lutar por obtê-lo.   Ela nada tem que ver com a ontologia, não
existe nenhum saber constrangente.

Nada há que não possa ser
cifra: todo existente (Dasein), a natureza e a história, a consciência em
geral, o próprio homem, sua unidade com a natureza e com o seu mundo, sua
liberdade, etc, podem ser cifras da Transcendência. A arte é a linguagem que
serve para ler as cifras. Mas a especulação filosófica é também uma leitura de
cifras. Pelo que, as provas da existência de Deus são também uma leitura
especulativa da escrita cifrada; sua fonte está na consciência ontológica da
Existência. Contudo, nunca se demonstra a Transcendência; apenas se dá
testemunho dela. A cifra decisiva da Transcendência é o desvanecimento do
existente (Dasein) — o ser em fracasso.

Ensina-nos a experiência que
o fracasso é a última palavra: tudo fracassa. Mas o que fracassa nas situações
humanas é a própria Existência. Contudo, há um fracasso autêntico e um fracasso
factício. Assim, por exemplo, quando queremos o fracasso, e especialmente
quando queremos o fim de todas as coisas, trata-se de fracasso factício. O
fracasso autêntico verifica-se na construção de um mundo no Dasein com vontade
de norma e duração, mas com a consciência do risco e da queda. Este fracasso
autêntico significa eternização e pode converter-se em cifra prenhe do ser. A
consciência do fracasso gera a passividade unicamente quando se pressupõe a
duração como padrão de valores e se íaz da existência cósmica um absoluto.

O fracasso é necessário. Como
há liberdade, o valor e a duração devem ser frágeis. Sendo a liberdade só
mediante a natureza e contra a natureza, ela deve quebrar-se como liberdade ou
como existente (Dasein). A leitura de cifras só é possível no fracasso das
mentiras do Dasein — no fracasso de todo saber e de toda filosofia;
principalmente quando o finito deve ser o recipiente do verdadeiro, deve
fragmentar-se. Jàspees dá-nos a impressão de pensar que o fracasso de todo ser
finito significa a revelação e confirmação supremas da infinidade de Deus, o
único ser verdadeiro. Só na ruína total do finito ele pode manifestar-se. Eis
por que a última palavra desta filosofia é: "filosofar é aprender a
morrer", e sua contra-senha: "experimentar o ser no fracasso".

Observações críticas

A fim de fazer justiça a
filosofia da existência, precisamos, antes de mais nada, de distinguir
claramente nela duas características diferentes. A filosofia da existência
consiste, primeiramente, num retorno às questões candentes do destino humano,
tão importantes do ponto de vista mundividencial, e acrescenta a isso uma nova
análise da existência humana baseada em fundamentos ontológicos e metafísicos.

1. Não resta dúvida que,
pensando no porvir da cultura européia, devemos congratular-nos com este
retorno aos problemas humanos — chamá-lo-emos o elemento tíquico (do grego
tτυχη, destino) do existencialismo, uma vez que o interesse
pelo destino humano parece estar indissoluvelmente ligado à cultura européia,
tal como a plasmaram forças helênicas, romanas e cristãs. Mas no decurso dos
séculos "modernos", este elemento tíquico desapareceu quase
completamente da filosofia européia. Já dizia Spinoza: "O homem livre em
nada pensa- menos do que na morte", e no século XIX tudo quanto se referia
à pessoa era tido por "anticientífico". Todavia, não se deve conceber
o elemento tíquico como religioso; Nietzsche, por exemplo, pensador manifestamente
tíquico, não pode ser chamado por forma alguma filósofo religioso. Tampouco
pode ser identificado com o elemento existencial; como fica dito, nem S.
Agostinho nem Pascal foram existencialistas. Um paralelo entre Haeckel e
Nietzsche poderia elucidar a significação deste elemento em filosofia. Ambos eram ateus e deterministas. Assim, para Haeckel, a não-existência de Deus é
uma tese demonstrada, ao passo que para Nietzsche é um drama. Se pensadores do
estilo de Haeckel decidissem da sorte da filosofia européia, esta se afundaria
arrastando consigo a cultura em geral. Ao insistir de novo no elemento tíquico,
o existencialismo contribuiu decerto para sanear nossa vida e nosso pensamento.

A falar verdade, o
existencialismo exagerou também, como acontece freqüentemente, a reação, aliás
justificada, contra o passado. Para muitos filósofos da existência, parece que
nenhuma outra coisa existe além das chamadas questões tíquicas ou do destino.
Todo seu filosofar gira em torno da morte, da dor, do fracasso, etc. Mas
descuram um outro fator essencial da cultura européia, a inteligência,
sobremaneira desenvolvida entre os gregos, do objetivo e do científico. O
existencialismo muitas vezes vai tão longe na direção do "tíquico"
que quase não parece ser mais uma filosofia européia, senão uma filosofia
hindu, ou seja, um pensamento endereçado a ser exclusivamente, até com sua
lógica, um instrumento de salvação. Por esse motivo, muitos filósofos sérios
europeus, e podemos até dizer que a maior parte deles, negam-se a aceitar com
justificado receio o existencialismo.

2. Além do elemento tíquico,
encontramos na filosofia existencial o elemento técnico-filosófico. Sob este
aspecto, podemos assinalar algumas idéias e resultados de grande valor. É
inegável que estes pensadores enriqueceram a filosofia com toda uma série de
excelentes análises psicológicas e fenomenológicas, que exploraram até pela
primeira vez domínios novos, por exemplo, as relações puramente pessoais entre
os homens ("ser-com", "ser-para-outrem", "tu",
"comunicação"). Surgiu neste ponto uma nova problemática que
significa uma ampliação essencial da filosofia. Também são fundamentais as
análises dos existencialistas em relação ao positivismo, por um lado, e ao
idealismo, por outro lado. Ao primeiro opõem com êxito a irredutibilidade do
ser humano à matéria e superam o segundo ao afirmarem com grande energia e
convicção a prioridade do ser em frente do pensar. Pela sua parte, eles muitas
vezes também fizeram ontologia, que nalguns até foi desenvolvida e coroada por
uma metafísica. Resta enfim notar especial mente que a compreensão, por parte
deles, de diversos problemas antropológicos ultrapassa de longe tudo o que o
século XIX produziu a este respeito. Nunca se insistirá demasiado neste ponto:
a filosofia da existência não é só um apelo profético, senão também uma
filosofia técnica e sob muitos aspectos valiosa.

Mas neste aspecto técnico é
onde precisamente se revelam as maiores fraquezas do existencialismo. Estes
filósofos muito a custo lograram superar completamente o idealismo; pressupõem
que o objetivo deve estar necessariamente condicionado pelo sujeito e por isso
buscam o ser num pretenso "transobjetivo" que não é mais pensável
nem, por conseguinte, exprimível por palavras. O concreto tornou-se para eles
numa preocupação tão instante que não mais querem ocupar-se senão do próprio
eu. Mas, deste modo, a filosofia da existência converte-se não raro era pura
autobiografia,  que somente exprime, numa forma não já científica senão
poética, simples sentimentos quase vazios de sentido. A situação é, todavia,
mais grave no que se refere à ontologia dos existencialistas: do ponto de
vista da profunda doutrina do ser que ressurge na atualidade, essa ontologia
aparece muito freqüentemente como um jogo de diletantes com noções insuficientemente
aprofundadas (em Sartre, principalmente com a noção do nada). Nenhum filósofo
da existência penetrou realmente no ser enquanto ser, e todos confundem sempre
o grau de ser particular, que é próprio do homem como tal, com uma maneira de
ser, que erradamente lhe atribuem. A cisão cartesiana do ser em humano e não
humano, que fez enveredar numa senda fatal quase todo o pensamento
"moderno", não é superada nestes pensadores por uma autêntica ontologia;
pelo contrario, é agravada. Por esta razão, e malgrado seus grandes méritos e
múltiplas contribuições metafísicas de valor, — entre outras, sua análise da
contingência do ente e da transcendência de Deus — o existencialismo, em última
instância, continua sendo insatisfatório. Estes mesmos problemas serão
tratados de maneira muito mais séria e penetrante pela filosofia do ser.

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