FRANCISCO DE MORAIS e as novelas de cavalaria

FRANCISCO DE MORAIS, natural de Bragança, nasceu em um dos últimos anos do século XV, ou no começo do XVI, segundo pensava Odorico Mendes, e morreu em 1572. Serviu em Paris como secretário do embaixador D. Francisco de Noronha, e aí viveu na brilhante corte de Francisco I. De volta a Portugal, em 1543, publicou a novela Palmeirim de Inglaterra, obra que, conquanto muito diversa do gosto atual, sumamente aprazia ao de então, e por isso mereceu a honra de muitas imitações.

Enumerando, no seu Dom Quixote, as novelas de cavalaria que deveriam ser condenadas ao fogo, Cervantes excetua o romance de Francisco de Morais.

"Este livro — sentenciou Cervantes pela boca de uma de suas personagens — tem autoridade por duas coisas: uma porque por si é excelente, e a outra porque é fama que o compôs um discreto rei de Portugal. Todas as aventuras do castelo de Miraguarda são boníssimas e de grande artifício, as razões corteses e claras, e respeitam o decoro de que fala com muita propriedade e entendimento".

O Gigante Almourol e o Cavaleiro das Donzelas

Vendo o gigante Almourol que por nenhuma via o cavaleiro das Donzelas queria batalhar com Florendos, mandou trazer de dentro da torre um cavalo baio, crescido e formoso, tal qual convinha ao peso de sua pessoa. Este mandou ao cavaleiro das Donzelas, pedindo-lhe que cavalgasse nele e quisesse que ambos fizessem alguma coisa diante da senhora Miraguarda, para lhe pagar o desgosto que houvera de se não acabar a outra contenda. E, se houvesse por bem que o vencedor ganhasse algum preço, folgaria muito, porque a batalha fosse com mais gosto.

— O preço ponde vós, respondeu êle, que, sendo coisa justa, não há de quebrar por mim.

— Se vós quisésseis, disse o gigante pois estais sem cavalo, logo aventuraria perder esse que vos agora mandei, que é um dos melhores que nunca vi, com a condição que sendo vencido, me deis por galardão essa senhora maior de corpo, que convosco trazeis (acenando contra Arlança) (524) porque, depois que aqui chegastes, me pareceu tão bem, e lhe sou tão afeiçoado quanto nunca o fui a outrem; e a ela peço que não despreze o partido, pois, ganhando-a eu, será senhora de mim, e em vosso poder não sei se será ainda de si.

— Não dou eu tão barato, disse o das Donzelas, as coisas que muito estimo; mas, contudo, façamos o que havemos de fazer e seja este o partido: que vencendo eu, fique o cavalo comigo, e, sendo ao contrário, fique em escolha dela com qual de nós se contenta.

— Sou contente, disse Almourol, que não a tenho por de tão mau conhecimento (525) que por homem tão livre, como vós, queira enjeitar vontade tão ganhada como a minha.

Sem gastarem mais palavras, com as lanças baixas, cobertos dos escudos, remeteram um a outro; (526) e os encontros foram tão bem acertados que o cavaleiro das Donzelas perdeu os estribos, e Almourol com a cilha rebentada caiu no chão pouco contente de si, pelo desejo que teve, de não parecer mal a seus amores novos. Às donzelas pareceu bem aquele primeiro acontecimento, especial às quatro que ganhara no vale; que, como não fossem costumadas a ver gigantes, e a presença de Almourol as fizesse medrosas e desconfiadas, tinham em muito (527) a valentia de seu cavaleiro. Almourol, tanto que se viu no chão, coberto do escudo, com a espada na mão se veio a êle, que, saltando do cavalo, por lho não matar a mesma maneira o recebeu. Como o das Donzelas quisesse contentar a elas, parecer bem a Florendos e mostrar a Miraguarda que não com medo de seu cavaleiro negara a batalha, e visse Almourol que naquela batalha aventurava perder ou ganhar a Arlança, a quem estava rendido, começaram ambos fazer maravilhas, experimentando toda a sua força, dando golpes sinalados à custa de quem os recebia. De sorte que em pouco espaço desfizeram as armas, dando-se feridas mortais, de que saía muito sangue; especialmente ao gigante, que por ser menos destro andava pior tratado. Como nisso se detivessem muito espaço’ sem tomar nenhum repouso, quis-se arredar Almourol, por poder folgar algum tanto; mas o cavaleiro das Donzelas, que sentiu sua fraqueza o apertou tanto e com tamanhos golpes que o fêz vir à terra por caso de (528) uma ferida que trazia na coxa esquerda, de que se não podia menear. (529) A Florendos pesou vê-lo em tal estado. Miraguarda descontente de seu desastre se tirou da janela, mandando que o recolhessem na fortaleza, para ser logo curado. Florendos o acompanhou té sua pousada e ali esteve ao curar de suas feridas, que pareciam perigosas, tendo em muito quem lhas deu, pela presteza e desenvoltura com que o vencera. Pois o cavaleiro das Donzelas, ainda que delas fosse desamado, ou ao menos pouco amado, vendo-o ferido e maltratado, o ajudaram a desarmar e assim no campo ao pé de uma árvore lhe viram as feridas, que eram pequenas e sem nenhum perigo, depois de lhas apertarem, se armou e pôs a cavalo com tenção de se partir.

(Palmeirim, tomo II, p. 430). Obra de Fernão de Morais

  • (524) contra = na direção de.
  • (525) não a tenho por (= não a julgo) [pessoa] de tão mau conhecimento,...
  • (526) — remeteram ~ arremeteram, investiram, avançaram.
  • (527) ter em muito — prezar, estimar, acatar: "Em muito tenho a muita obediência" (Lus., II, 87); ter em nada == desdenhar, menosprezar: "Tu que as armas tiféias tens em nada" (Lus., IX, 37); ter em preço — estimar, apreciar: "Que me hão-de venerar e ter em preço" (Lus., IX, 38). Rui escreveu, no elogio de Osvaldo Cruz’. "Eis senão quando nos vêm as provas científicas de que não a devíamos ter em desdém e nojo [a família dos ratos] mas em medo e inimizade irreconciliável", (p. 18). Outras expressões semelhantes se colhem em nossos escritores: ter em conta, ter em honra, ter em pouco; estimar em muito, estimar em nada, prezar em mais etc.

Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

 

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