Ilíada de Homero – Canto XXIV

Ílíada de Homero
Resumo e apresentação da Ilíada
Prefácio a Ilíada de Homero
Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
Canto XI
Canto XII
Canto III
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XXIV

Ilíada de Homero – Tradução de Odorico Mendes – Canto XXIV

Argumento do Livro XXIV

Aquiles transido de mágoa faz passar o cadáver de Heitor três vezes ein redor do túmulo de Patroelo. — Os deuses propõem a Mercúrio arrebatar o cadáver de Heitor. — Juno e Neptuno se opõem. — Apoio censura a crueldade de Aquiles. — Resposta de Juno, que lembra a origem divina de Aquiles. — Juno é convidada a ir ao Olimpo, onde Júpiter a consola por haver resolvido que o cadáver fosse entregue a Príamo. — Tétis vai ter com Aquiles e lhe comunica a vontade de Júpiter. — Preparativos feitos por Príamo para ir pedir o cadáver de seu filho. — Príamo chega ao acampamento dos Gregos. — Descrição da tenda de Aquiles. — Príamo lança-se aos pés de Aquiles, e lhe implora em nome de seu pai. — Ao lembrar-se de seu pai chora o Pelides. — Episódios de tão triste encontro de Pr/amo e de Aquiles. — Aquiles promete a Príamo entregar-lhe o cadáver de Heitor e coucede-lhe dez dias de tréguas para as honras fúnebres. — Saída de Príamo de entre o exército Grego. — Cassandra apercebeu de longe o velho Príamo. — O povo vai às poxías da cidade. ~ Funerais de Heitor,

Ilíada de Homero – Livro XXIV

Findo o certame, às naus dispersos correm;
Cuidam na ceia, em brando sono pegam.
Reluta à quietação, que enleia a todos,
O Pelides saudoso a revolver-se,
Ou supino, ou de bruços, ou de ilharga;
Lembra-lhe a valentia, o ardor daquele
Com quem tanto empreendeu, curtiu fadigas,
Em duro marte, em perigosos mares,
E debulha-se em lágrimas. Levanta-se,
Vaga ao longo da praia, até que as ondas
A aurora purpureia: então, jungindo
O alado coche, atrás liga o Priâmeo;
Roja-o três vezes do sepulcro em giro,
Torna ao leito, e no pó deixa o cadáver.
Dói-se Febo de Heitor, conserva-o puro,
De égide áurea coberto, a fim que a rastos
Lacerado não seja indignamente.

Do mau trato os celícolas ditosos
Compadecendo-se, o Argicida incubem
De subtrair o divo herói defunto.
O arbítrio aprouve, menos a Netuno,
À irmã Satúrnia, à virgem de olhos garços:
Elas a Príamo e seu povo odeiam
Pela injúria e sentença de Alexandre,
Que, em paga da lascívia e amor infesto,
Em seu tugúrio a Vênus dera o pomo.
Na duodécima aurora exclamou Febo:
“Numes cruéis, Heitor seletas coxas
Não vos queimou de bois e nédias cabras?
Morto, ingratos, vedais que o veja a esposa,
Mãe, filho e genitor, que o povo inteiro
Alce-lhe a pira e o funeral celebre?
Só vos agrada o iníquo atroz Pelides,
Leão que, em si fiado, ama cevar-se
Na triste grei, sem pejo ou consciência,
Que humanos corações compensa ou pune.
Quem perde irmão, conjunto, ou mesmo a prole,
Suspira e chora, mas o nojo enfreia,
Que é dos humanos sorte o resignar-se:
Este, roubada ao nobre Heitor a vida,
O arrasta pela campa do consócio;
Contra insensível barro afronta inútil,
Bruto furor que nos irrita e inflama.”

Grita em cólera Juno: “Argenti-archeiro,
Sócio dos maus, tais homens não compares:
Heitor foi por mulher amamentado;
Por deusa Aquiles, que, por mim nutrida,
Esposei com Peleu, dos Céus dileto:
Vós à boda assististes; ao convívio
Tu, pérfido, na lira a decantaste.”

Logo o Tonante: “Não te enfades, Juno.
Diferem muito em honras; mas aos deuses
E a mim esse era o Teucro predileto;
Nem dons poupava, libações, banquetes,
Nidor e fumo, recompensas nossas.
Furtado não será, pois dia e noite
Vela Tétis assídua. Aqui ma chamem;
Discreto lhe direi que aceite Aquiles
A remissão de Heitor e o renda a Príamo.”

A núncia procelípede, por Samos
E Imbro fragosa, ao pélago descende,
E o salso lago freme; cala ao fundo
Qual plúmbea péla que em selvagem corno
Aos crudívoros peixes leva a morte.
Numa gruta acha a Tétis e as Nereidas,
Chorando o exímio Aquiles, n’alma Tróia
Longe da pátria a falecer fadado:
“Vem, Tétis, que te chama o Onipotente.”
A argentípede acode: “Que pretende?
Ir aflita me pesa à etérea corte;
Mas Júpiter o manda, é quanto basta.”

Eis cinge a deusa augusta o véu mais negro,
De todos lugubríssimo, e dispara;
Íris de aérea planta a precedia,
E em derredor as ondas se apartavam.
Tomam terra, ao céu voam: lá sentou-se
No feliz coro Tétis; a cadeira
Do Altitonante ao pé lhe cedeu Palas.
Juno a consola, e em ouro passa o néctar;
Bebe a Nereida e restitui o copo.
E o pai de homens e deuses: “Cá vieste,
Bem que indelével mágoa em ti concentres;
Conheço-o, Tétis, mas te exponho a causa.
Há nove dias sobre Heitor e Aquiles
Urbífrago se alterca: instam que a furto
O Argicida sutil salve o cadáver:
Eu, por nossa amizade e o que te devo,
Deixar quero a teu filho a glória toda.
Anda, informa-o da cólera dos numes,
Da minha indignação, pela crueza
De reter ante as naus de Heitor o corpo;
Remido o renda, se me teme e acata.
Íris despacha ao Tróico rei brioso;
Vá resgatar seu filho à Grega frota,
E com largueza ao vencedor contente.”

Frecha do Olimpo Tétis, e acha Aquiles
Em ais na tenda; os íntimos cuidosos
Para o festim lanuda rês degolam.
Senta-se Tétis perto, a mão lhe afaga:
“Filho, tua alma em lágrimas consomes?
Enjeitas a comida, o leito esqueces?
Busca alívio em amante carinhosa,
Já que te acena a Morte e vou perder-te.
Núncia de Jove, a indignação declaro
Dele e de todo o Céu, pela crueza
Com que reténs Heitor e a Tróia o negas.”
Responde Aquiles: “Se é querer do Olimpio,
Venha quem traga o preço e o corpo leve.”

Enquanto a mãe e o filho assim discorrem,
A Príamo o Satúrnio Íris deputa:
“Sem demora, prescreve ao rei Troiano
Que generoso rima o seu mais caro;
O vencedor as dádivas contentem.
Ele que vá sozinho, e idoso arauto
Governe andejas mulas e a caleça
Onde o morto carreie; e vá sem medo,
Guia-lo-á Mercúrio aos pés de Aquiles.
Do herói não tema em casa ofensa alguma,
Nem de qualquer: sisudo, humano e atento,
Um suplicante poupará benigno.”

Disse; Íris procelípede ao palácio
Real chega: o alarido e o luto encontra,
Filhas de choro umedecendo as vestes
Em cerco ao velho no seu manto envolto,
Sujos cabeça e colo em cinza imunda,
Que a rolar-se aos punhados esparzira;
Filhas e noras ululando, errantes,
Seus valentes invocam, tais e tantos,
Pelos Aquivos golpes derribados.
Ao rei trêmulo a núncia, em voz depressa
Para o não abalar: “Coragem, disse,
Nada receies, Príamo. Aqui Jove
Benévolo me envia, e longe embora,
De ti se compadece e tem cuidado.
Que resgates Heitor ele te ordena,
E o Pelides com dádivas comovas;
Que vás às naus sozinho, e idoso arauto
Governe andejas mulas e a caleça
Onde o morto carreies: e vai sem medo,
Guiar-te-á Mercúrio aos pés de Aquiles.
Do herói ofensa alguma ali não temas,
Nem de qualquer: sisudo, humano e atento,
Um suplicante poupará benigno.”

Partiu-se; aos filhos manda o rei que aprestem
Mular caleça, e uma arca em cima liguem;
Desce à fragrante câmara cedrina
De excelso teto, encerro de tesouros;
Chama por Hécuba: “Infeliz de Jove
Me veio núncia prescrever que parta
A remir nosso filho com presentes.
Teu coração que diz? No meu resolvo
Ir já buscar os arraiais dos Gregos.”

E ela em soluços: “Onde o siso d’antes,
Que estrangeiros e Teucros te louvavam?
Sozinho ires às naus e ao cru verdugo
Dos teus guerreiros numerosos filhos!
De ferro entranhas tens. Se ele te empolga,
Sem dó, respeito ou fé, será contigo.
No interior destes paços o choremos;
Pois ao pari-lo eu mesma, a feia Parca
Fiou que, de seus pais ele apartado,
Fartasse a gula dos sanhudos perros
Do cruel, cujo fígado eu trincara
Para vingar ultrajes do meu filho…
Ah! nem fugiu, nem se esquivou cobarde;
Morreu firme, por Tróia e pelas Teucras
De regoado seio combatendo.”

Replica o divo esposo: “Ave agoureira
Tu não me sejas, nem me aqui demores:
Não me convencerás. Fosse um terrestre
Arúspice, adivinho ou sacerdote,
Hesitar ou não crê-lo nos coubera;
Mas ouvi mesmo a deusa e a vi presente,
Não baldarei meu rogo. E se é destino
Junto às naus Gregas acabar, acabo:
Mata-me Aquiles; mas sequer meu filho
Nestes braços estreite, e em choro apague
Meu amargo pesar, minha saudade.”

E destampando as caixas, doze aparta
Peplos louçãos, mantas singelas doze,
Doze tapetes, opas doze e estas
Conformes várias túnicas; talentos
Áureos dez, duas trípodes luzidas,
Caldeirões quatro, e um copo superfino
Que embaixador em Trácia lhe ofertaram:
Nem reserva este em casa; a todo custo
Redimir seu Heitor almeja o velho.
Do pórtico o tropel gritando arreda:
“Fora, vis; dor não tendes nem tristeza,
Para aqui virdes agravar a minha?
Ou folgais de que Jove me roubasse
Meu bravo Heitor? Senti-lo-eis, perversos;
Ele por terra, sois dos Gregos preia.
Antes que Tróia aos olhos meus desabe,
Do Orco me sorva o tragador abismo!”

Disse, e os toca a bastão; mal que os expulsa,
Os filhos nove increpa, Heleno, Páris,
Divo Agáton, Antífono, Pamones,
E Deifobo, e Hipotoo e o nobre Agavo,
E Polites belaz: “Sus, preguiçosos,
Paterno opróbrio! Em vez de Heitor, vós todos
Jazêsseis ante as naus. Em Ílio, ai! Triste,
Fortes gerei, nenhum dos quais me resta:
Mestor deiforme, o campeão Troílo,
Heitor, que entre os humanos parecia
Não de um mortal nascido e sim de um nume,
Perdeu-os Marte; ignavos sós me ficam,
Falsos, hábeis na dança, ou na rapina
De cabritos do público e de ovelhas.
Como! Tardais em preparar as mulas,
Pôr tudo na caleça, a fim que eu parta!”

Humildes e submissos, leve e nova
Caleça, arca, de buxo tiram jugo
De embigo e anéis fornido, mais de um loro
Jugal de nove cúbitos, que agitam
Ao cabo do temão, por cuja argola
E chaveta passando, com três voltas
No embigo o enleiam de uma e de outra banda,
Em nó sumindo por debaixo as pontas;
Na caleça, da câmara trazido,
O resgate acumulam precioso;
As solípedes mulas emparelham,
Com que a seu pai os Mísios regalaram;
Ao velho os brutos férvidos conduzem,
Que ele mesmo criara à manjedoura:
Estes o arauto e o rei, no altivo pórtico,
Jungem, n’alma conselhos fomentando.

Chega-se Hécuba triste, e em áurea copa
Vinho tendo suave, e junto pára
Dos corcéis: “Toma, liba, ao grã Satúrnio
Roga feliz tornada, já que à frota,
A meu pesar, o ânimo te impele;
Suplica e exora a Júpiter nimboso,
Que do Ida em nós atenta, anúncio fausto:
Voe à destra sua águia a mais dileta;
Vejam-na os olhos teus, e afouto partas.
Mas, se o altitonante o agouro nega,
Bem que ardas em desejo, eu não te exorto
A ir às naus dos furibundos Gregos.”

“Sim responde o bom rei, concordo, esposa;
Cumpre, a Jove implorando, alçar as palmas.”
Nisto, água pura à despenseira pede;
Ela queda sustêm bacia e jarro.
Depois que lava as mãos, recebe o copo;
No átrio em pé, liba e ora, os céus fitando:
“Potente sumo deus, que do Ida imperas,
Dá que benigno se apiade Aquiles;
Tua águia mais dileta envia à destra;
Vejam-na os olhos meus, para que afouto
Às naus eu vá dos furibundos Gregos.”

Próvido o escuta Jove, e a caçadora
Morfom manda infalível nos augúrios,
Percnon também chamada. Quanto é largo
Portão soberbo de opulenta régia,
Tanto ela à destra expande as asas fuscas;
Tróia com regozijo a viu librar-se.
Do ruidoso vestíbulo, montado,
O rei despede o coche; Ideu prudente
Rege de quatro rodas a caleça;
Príamo atrás pela cidade excita
E os ginetes flagela. Os mais conjuntos,
Qual se andasse a morrer, chorando o seguem;
Tanto que da muralha ao campo desce,
Mestos genros e filhos se recolhem.

Os dois compadecido avista Jove,
E ao seu Mercúrio fala: “É-te agradável
Os homens freqüentar e a gosto ouvi-los:
Príamo às naus conduze, e o não pressintam,
Antes que aos pés de Aquiles o introduzas.”
À voz do excelso pai se inclina e apresta:
Calça os áureos talares, com que adeja
Sobre as terras sublime ou sobre ondas,
Como rápido sopro; a vara empunha,
Com que aos olhos mortais carrega o sono
Ou desperta o prazer, e os ares tranca.
À vista já de Tróia e do Helesponto,
Num príncipe galhardo se disfarça
Em venusta e pubente juventude.
Aqueles, de Ilo o túmulo passado,
Corcéis no rio e mulas abeberam;
A Mercúrio, ao crepúsculo noturno,
O arauto enxerga: “Para nós caminha,
Dardânida, um varão; cogita o meio
De nos salvarmos: ou fugir no carro,
Ou de joelhos suplicar piedade.”

Confuso o velho, atônito, hirta a coma,
Retêm-se a estremecer. Mercúrio avança,
A destra lhe segura e o interroga:
“Quê! De noite, ancião, corcéis e mulas
Chicotas, quando o sono os mais procuram!
De inimigos cercado, não te assustas?
Se algum te visse carretar no escuro
Tesouros tais, que alvitre buscarias;
Não és mancebo, e um velho te acompanha,
Para a qualquer ataque resistires.
Tu não me temas, defender-te quero,
Pois te assemelhas a meu pai querido.”

Príamo respondeu: “Bem dizes, filho:
Mas protege-me um deus, que me apresenta
Guia esbelto e gentil, prudente e afável;
Ditosos os mortais que te geraram!”

“Cordato falas, torna-lhe o Argicida;
Mas sê sincero: onde as riquezas levas?
Por ventura a estrangeiros, que tas guardem?
Ou todos Ílio abandonais com medo?
Ah! teu filho bravíssimo perdeste,
Nada inferior aos Gregos no conflito.”

E Príamo: “Quem és, de quem procedes,
Ótimo jovem, que do extinto filho
Falas-me assim cortês?” – Então Mercúrio:
“Informações de Heitor obter ensaias.
Muitas vezes o vi, mormente quando,
Com assombro geral de lança botes
Contra os baixéis os Dânaos rechaçava.
Iroso Aquiles nos continha ignavos;
Sou Mirmidon, na mesma nau viemos:
Rico, velho também, de sete filhos,
Me expediu Polictor por seu companha,
Feito o sorteio. O acampamento exploro;
Pois, na alvorada, os olhinegros Dânaos
Ílio acometerão, que já não podem
Os reis conter o exército fogoso.”

Príamo inda: “Se fâmulo és de Aquiles,
Dize, ante a frota jaz meu filho, ou preia
Dos cães do vencedor foi lacerado?”
“Jaz ante a frota, replicou Mercúrio;
Aves nem cães o corpo lhe tocaram;
Há doze dias, puro está sem vermes,
De que os mortos na guerra são comidos.
Ímpio, ao luzir da aurora, em torno o roja
Do sepulcro do amigo: admirarias
Quão fresca se acha a carne, estanque o sangue,
Sem mais lesão, fechadas as feridas,
Que lhe pregaram tantos. Já defunto,
Gratos os deuses do Priâmeo curam.”

Jubiloso o Dardânida: “Meu filho,
Bom é render o que se deve aos numes;
Em vivo nunca Heitor os esquecia;
Dele extinto os celícolas se lembram.
Toma este copo, e com favor supremo,
Guarda-me e guia ao pavilhão de Aquiles.”

“Sou moço, torna o deus, mas não me tentas;
Na ausência do Pelides nada aceito;
Muito o venero, desfalcá-lo temo
E em seu ódio incorrer. Na via de Argos,
Vás por mar ou por terra, hei-de ir contigo;
Eu sendo o condutor, ninguém te ofende.”
Eis pula ao carro; o açoite e as rédeas pega;
Fogo inspira aos corcéis, às mulas fogo.

Junto às navais trincheiras o Argicida
Na ceia às ocupadas sentinelas
Sono infunde, a porteira abre e destranca,
Introduz a caleça e o real coche.
Apropínqua-se à tenda, que de abeto
Os Mirmidões para seu rei teceram,
De híspida agreste cana a cobertura,
Em derredor extensa paliçada.
Sustinha a porta, que cerrava o claustro,
Lígnea barra, a três homens grave peso,
Do só Pelides facilmente alçada;
O deus do lucro a Príamo a franqueia,
Introduz a caleça, e em terra salta:
“Velho, guiar-te aqui me ordenou Jove;
Sou Mercúrio. O Pelides não me sinta,
Volto; a mortais favorecer às claras
Não cumpre às divindades. Entra, ajoelha,
Pela mãe Tétis, pelo pai, depreca,
Para amansá-lo o filho seu memora.”

Mercúrio se ala; Príamo se apeia,
Deixando fora a Ideu corcéis e mulas
Seguiu direito; achou de Jove o aluno
Dentro sentado, à parte os sócios, menos
Alcimo e Automedon, ramos de Marte,
Que à mesa diligentes o serviam,
Onde satisfizera a sede e a fome.
Não visto passa o corajoso velho,
Até que prosternado, humilde beija
A mão terrível que imolou seus filhos.
Quando por homicídio alguém se exila,
E em país estrangeiro e nobre albergue
Refúgio encontra, espectadores pasmam:
Pasma Aquiles assim, e os circunstantes
Olham-se estupefatos. O Dardânio
Súplice roga: “Lembre-te, ó Pelides,
O idoso pai, como eu posto à soleira
Da pesada velhice. Por vizinhos
Talvez opresso, defensor não tenha;
Vivo ao menos te sabe, e folga e espera
Ver tornar cada dia o egrégio filho.
Ai! Gerei tantos bravos na ampla Tróia,
Dos quais eu penso que nenhum me resta.
Cinqüenta ao vir o assédio, eram de um leito
Dezenove, os demais de outras mulheres:
Morte nos tem segado quase todos.
O único esteio nosso, pela pátria
A combater, acabas de roubar-mo,
Heitor… Venho remi-lo à frota Argiva
Com magníficos dons. Respeita os numes;
Por teu bom pai, de um velho te apiades:
Mais infeliz do que ele, estou fazendo
O que nunca mortal fez sobre a terra:
Esta mão beijo que matou meus filhos.”

De Peleu mais saudoso, o herói suspira,
Pega-lhe a destra e brando afasta o velho:
Um de joelhos por Heitor pranteia;
Outro chora seu pai, chora a Patroclo:
De ambos o soluçar na tenda estruge.
Desafogada em lágrimas a pena,
Ergue-se da cadeira o divo Aquiles,
Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
“Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te; ao luto agora devemos tréguas.
Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.
Há dois tonéis ao limiar de Jove
De males e de bens: se misturados
Os derrama o Tonante, o que os recebe
Ora sofre e ora goza; mas, se entorna
Somente males, em penúria o triste
Vaga de pesadume em pesadume,
Dos imortais ludíbrio e dos mundanos.
Assim teve Peleu mil dons celestes,
Brilho, opulência, império e uma deidade
Por consorte; mas Júpiter negou-lhe
Ao trono sucessor, porque imaturo
Devo longe acabar, sem que de arrimo
Lhe seja na velhice, em Tróia estando
Para desgraça dela e teu flagelo.
Também lograste já de quanto abrange
Lesbos ao sul, de Macaris morada,
A Frígia eoa e amplíssimo Helesponto;
Brilhaste, velho, em filhos e riquezas;
Mas, dês que o Céu mandou-te a crua guerra,
Geme Ílio de matança e horror cingida.
A alma em luto perpétuo não consumas;
Com te afligir Heitor não ressuscitas;
Quiçá maiores danos te ameaçam.”

Mas Príamo: “Sentar-me, herói, não faças;
Dentro sem sepultura está meu filho.
Redimido, o mais breve mo apresentes;
Os dons que trago aceita numerosos;
Logra-os, à pátria volvas, tu que à vida
E a luz do sol gozar hoje me outorgas.”

Minaz Aquiles: “Não me irrites, basta;
Heitor hei-de render, que prescreveu-mo,
De Jove em nome, a genetriz Nereida.
Sei, não mo ocultes, Príamo, às naus Graias
Conduziu-te algum nume: entrar no campo
Nunca ousara mortal, por mais florente;
Nem iludira os guardas, nem das portas
As barras facilmente descerrara.
Não me comovas mais com teus queixumes;
Inda que és suplicante, eu posso, velho,
Expulsar-te, infringindo a lei de Jove.”

Ei-lo, em susto, obedece; fora Aquiles
Pula como um leão, mais seus dois pajens
Alcimo e Automedon, que sobre todos,
Morto o Menécio, honrava. Eles desatam
As mulas e os corcéis; na tenda assentam
Ideu canoro; da caleça tiram
Do resgate os presentes preciosos;
Dois mantos e uma túnica luzida
Reserva o herói de Heitor para envoltório.
As criadas mandou lavá-lo e ungi-lo,
Sem visto ser do pai; receia que este
Aflito rompa em cólera, e o constranja,
Contra o querer de Jove, a assassiná-lo.
Já perfumado, a túnica e um dos mantos
Lançam-lhe; Aquiles o ergue e o põe num féretro,
Que os dois com ele na caleça metem.
Gemendo invoca o sócio: “Não te agraves,
Patroclo, se constar no reino escuro
Que Heitor a Príamo entreguei remido;
Pois tive egrégios dons, e a melhor parte
Ser-te-á consagrada, alma querida.”

Volve à tenda e à cadeira artificiosa,
Donde saíra, na parede oposta:
“Fiz, Príamo, o teu gosto, jaz teu filho
No féretro; ao partir, na aurora o vejas.
Porém da ceia agora nos lembremos.
Níobe de comer também lembrou-se,
A quem seis filhos e seis filhas jovens
O Arcipotente com a irmã frecheira
Prostrara a setas, porque a mãe formosa
Se afrontava à pulcrícoma Latona,
Tendo esta só dois partos, e ela doze:
Os dois porém dos doze deram cabo.
Nove dias sangüentos e insepultos,
Pois Jove o povo em pedra convertera,
Celestes ao dezeno os enterraram.
Enfim comeu, de lágrimas cansada.
Ora em Sípilo, entre ásperas montanhas,
Onde as ninfas, que às margens do Aqueloo
Guiam coreias, como é fama, alverga.
Já transformada em rocha, inda sensível
Estila a dor que os deuses lhe infligiram.
Tratemos pois da ceia: ao transportá-lo,
Divo ancião, prantearás teu filho.
Tens muito que chorar, sossega um pouco.”

Súbito sacrifica branca ovelha:
Esfolam-na, esquartejam-na, e a preceito
Assam de espeto no brasido as postas;
Em canistréis na mesa o pão reparte
Automedon, e Aquiles trincha as carnes.
Às viandas se deitam; e saciados,
Príamo admira o talhe do Pelides
E a divina beleza, admira Aquiles
A facúndia e presença do Dardânio.
Depois de mutuamente se esguardarem,
O ancião começa: “De Jove aluno,
Repassar pelo sono me permite:
Dês que às mãos tuas expirou meu filho,
Não preguei mais as pálpebras; na cinza
Rolo, em pranto recozo os meus pesares.
Ora um bocado engulo a vez primeira,
E em roxo vinho as fauces umedeço.”
Estender manda ao pórtico o Pelides

Belos colchões vermelhos, e por cima
Tapetes e felpudos cobertores;
Saem fora de tocha e diligentes
As cativas preparam duas camas.
O herói com falso medo: “Hospede amigo,
No pórtico estarás, porquanto os Gregos
Soem vir consultar-me n’alta noite;
Se algum te enxerga e informar-se Agamêmnon,
Ser-te-ia o resgate retardado.
Que tempo dize aos funerais precisas,
Para eu conter o exército em repouso.”

E o Tróico rei: “Se em funerais consentes
Ao meu bom filho, esse favor me é grato.
Em sítio nós, a mata longe temos,
Ílio aterrada: ao luto nove dias,
À sepultura o décimo e ao banquete,
Ao túmulo o seguinte se consagre;
Já que é força, ao dozeno combatamos.”

“O que pedes será, tornou-lhe Aquiles;
O ataque sustarei todo esse tempo.”
E por mais segurança, a real destra
Na sua aperta. Ao pórtico dormiram
Príamo e Ideu, cuidados revolvendo:
Mas dentro Aquiles e a gentil Briseida.

Numes e campeões do sono logram;
Velando só Mercúrio negocioso,
Cogita como às naus subtraia o velho,
E das portas iluda as sentinelas.
Põe-se-lhe à cabeceira: “Entre inimigos
Repousas, por te haver poupado Aquiles,
Por excessivo preço Heitor vendendo?
Por ti vivo os que restam lhe dariam
Presentes em tresdobro, se Agamêmnon
E outros Gregos aqui te lobrigassem.”

O rei, sobressaltado, o arauto acorda;
Mesmo aparelha o deus corcéis e mulas,
E sem que o sintam pelo campo os guia;
No vau já do de Júpiter progênie
Rápido Xanto, o vasto Olimpo sobe,
Ao desferir seu manto a ruiva Aurora.
Ambos chorosos e em suspiros trotam,
Nem dos varões nem damas percebidos;
Porém, montando a Pérgamo, Cassandra
Áurea e venusta, o amado pai descobre
E o defunto na tumba e Ideu canoro;
Pela cidade soluçando ulula:
“Vede, eis Heitor, ó Teucros e Troianas,
Que em vivo, ao regressar de horrível pugna,
De júbilo e esperança o povo enchia.”

Nem homem nem mulher nas casas fica,
Todos em nojo à entrada se apinhoam
Do cadáver em torno; avante a esposa
E augusta mãe ao féretro se arrojam,
Carpem-se a coma, tocam-lhe a cabeça.
A turba lastimava, e até sol posto
Em pranto ali seria, se do assento
O rei não grita: “Às mulas dêem passagem,
Depois de mestas lágrimas fartai-vos.”
Arredam-se, e a caleça ao paço roda.

Em recortado leito o herói colocam,
E músicos ao pé entoam nênias,
A que o femíneo gemebundo coro
Triste responsa. A bracinívea Andrômaca,
A cabeça ao bravíssimo sustendo,
O luto enceta: “Esposo em flor troncado,
Viúva me abandonas, e o filhinho
Que em mim geraste por desgraça dele!
Púbere não será, sem que primeiro
Do fastígio arruíne a excelsa Tróia;
Pois acabaste, ó guarda e certo apoio
De castas mães, de míseras crianças,
Que arrastadas às naus serão comigo.
Tens, meu Astianax, de acompanhar-me,
Sob um cruel senhor escravo indigno;
Ou ser de horrível torre despenhado
Por Graio a cujo irmão, genitor, prole,
Fez morder a poeira em cem batalhas
Teu valoroso pai, na guerra acerbo:
É por isso que o povo inteiro o chora.
Dos parentes, Heitor, é grave a pena;
Mas a dor que me punge é inda mais crua.
Ah! moribundo a mão nem me estendeste,
Nem adeus me disseste e os bons conselhos,
Que dia e noite em pranto eu recordasse!”

O lamento femíneo então redobra,
E Hécuba em ais prorrompe: “Heitor, meu filho
O mais amado, em vivo aceito aos numes,
És seu valido em morto. Os mais Aquiles
Tomados os vendia além dos mares,
Em Samos, Imbro, em Lemnos de árduo porto:
A ti, cortada a vida a brônzeo gume,
Te rojou pela campa de Patroclo,
Se do inferno evocá-lo a que o mandaste;
Mas fresco e belo estás, como a quem Febo
Do arco argênteo vibrou rápida seta.”

Exaspera-se o luto, e Helena exclama:
“Heitor, ó meu cunhado e o mais querido,
Pois, consorte me trouxe o divo Páris,
E oxalá que primeiro eu perecesse!
Quase há vinte anos sou da pátria ausente,
Nunca te ouvi dictério e um só remoque;
E, se irmã tua ou cunhada minha,
Irmão teu, minha sogra (pois no sogro
Meigo pai sempre encontro) me increpava,
Manso e humano e indulgente o coibias.
Choro-te pois e a mim, que, odiosa a todos,
Não tenho quem me ampare e me perdoe.”

Seu suspirar maior tristeza infunde;
E ao povo imenso Príamo: “Troianos,
Ide, lenhai, sem susto de emboscada;
Que, ao despedir-me, Aquiles prometeu-me
Só na dozena aurora o saltear-nos.”

Ligam presto às carroças bois e mulos,
Juntam-se ante a muralha. Ingentes cargas
De lenha acarretando nove dias,
Ao décimo entre lágrimas levantam,
E no cimo da pira Heitor colocam,
E ateiam fogo. A dedirrósea Aurora
Veio raiando, e a gente refervia.
Depois que em roxo vinho apagam todos
Em roda a chama, seus irmãos e amigos,
De arroios d’água as faces alagadas,
Em urna de ouro os brancos ossos colhem,
De finos mantos carmesins coberta,
Na cova a metem, que por cima forram
De grossas lajes. Do sepulcro ereto
Em roda há sentinelas, que previnam
Dos de greva louçã qualquer ataque.
Já tumulado, aos paços reverteram,
Onde Príamo rei, de Jove aluno,
Lhes deu funéreo esplêndido convívio.
Heitor doma-corcéis tais honras teve.

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