JOÃO DE BARROS – Escritor português quinhentista

JOÃO DE BARROS (Viseu, 1496-1570) exerceu o cargo de tesoureiro e feitor da Casa da Índia e Mina. Escreveu muitas obras, e entre elas: uma Crônica do Imperador Clarimundo; uma Gramática Portuguesa; diversos diálogos sobre assuntos literários e morais; e a monumental Ásia, história dos feitos portugueses no descobrimento e conquista das terras do Oriente. Esta obra é geralmente conhecida por Décadas, e mais tarde foi continuada por Diogo do Couto.

Com razão apelidaram Barros o Tito-Lívio português; e tanto o mereceu pelo patriotismo da narrativa quanto pela pureza da linguagem, relativamente melhor que a do latino, pois não se lhe podem apontar patavinismos.

 

Descobrimento do Brasil

Ao seguinte dia, que eram nove do mês de março, diferindo suas velas, que estavam a pique, saiu Pedro Álvares com toda a frota, fazendo a sua viagem às ilhas do Cabo Verde, para aí fazer aguada, onde chegou em treze dias. Pero (481) antes de tomar este cabo, sendo entre estas ilhas, lhe deu um tempo (482) que lhe fêz perder de sua companhia o navio de que era capitão Luís Pires, o qual se tornou a Lisboa. Junta a frota, depois que passou o temporal, por fugir da terra de Guiné, onde as calmarias lhe podiam impedir seu caminho empegou-se (483) muito no mar, por lhe ficar seguro poder dobrar o cabo da Boa Esperança. E havendo já um mês que ia naquela grão volta, quando veio a segunda oitava da Páscoa, que eram vinte e quatro de abril, foi dar em outra costa de terra firme, a qual, segundo a estimação dos pilotos, lhe pareceu que podia distar pera aloeste da costa de Guiné quatrocentas cinqüenta léguas, e em altura do polo antártico dez graus. A qual terra estavam os homens tão crentes em não haver alguma firme ocidental a toda costa de África, que os mais dos pilotos se afirmavam ser alguma grande ilha, assi como as Terceiras e as que se acha-ram per Cristóvão Colon, (484) que eram de Castela, a que os Castelhanos comumente chamam Antilhas. E por se afirmar no certo se era ilha ou terra firme, foi cortando ao longo dela todo um dia, e, onde lhe pareceu mais azada pera poder an-torar, mandou lançar um batel fora. O qual, tanto que foi com leira, viram (485) ao longo da praia muita gente nua, não preta e de cabelo torcido como a da Guiné, mas toda de côr baça e de cabelo comprido e corrido, e a figura do rosto coisa mui nova, porque era tão amassado e sem a comum semelhança da outra gente que tinham visto, que se tornaram logo os do batel a dar razão do que viram, e que o porto lhes parecia, bom surgidouro. (486).

Pedro Álvares, por haver notícia da terra, encaminhou ao porto com toda a frota, mandou ao batel que se chegasse bem à terra e trabalhasse por haver à mão alguma pessoa das qiu-viram, sem as amedrentar (487) com algum tiro que os fizesse acolher; mas eles não esperaram por isso; porque, como viram que a frota se vinha contra eles, e que o batel tornava outra vez à praia, fugiram dela e puseram-se em um teso soberbo, todos apinhoados, a ver o que os nossos faziam. Os do batel, enquanto Pedro Álvares surgia (488) um pouco largo do porto, por não amedrentar aquela nova gente mais do que o mostrava em se acolher ao teso, puseram-se debaixo no mesmo batel, e começou um Negro grumete falar a língua de Guiné, e outros que sabiam algumas palavras do arávigo; mas eles nem à língua, nem aos acenos, em que a natureza foi comum a todalas (489) gentes, nunca acudiram. Vendo os do batel que nem aos acenos, nem às coisas que lhes lançaram na praia acudiram, cansados de esperar algum sinal de entendimento deles, tornaram-se a Pedro Álvares contando o que viram.

Tendo êle determinado ao outro dia de lançar mais batéis e gente fora, saltou aquela noite tanto tempo com eles, que lhe conveio levar as âncoras, (490) e correram contra o sul sempre ao longo da costa, por lhe ser por aquele rumo o vento largo, té que chegaram a um ponto de mui bom surgidouro, que os segurou do tempo que levavam, ao qual por esta razão Pedro Álvares pôs o nome que ora tem, que é Porto Seguro. Ao outro dia, como a gente da terra houve vista (491) da frota, posto que toda aquela fosse uma, parece que permitiu Deus não ser esta tão esquiva como a primeira, segundo logo veremos.

E porque, em a quarta parte da escritura da nossa conquis-ta, a qual, como no princípio dissemos, se chama Santa Cruz, e o princípio dela começa neste descobrimento, lá fazemos mais particular menção desta chegada de Pedro Álvares, e assi do sítio e coisas da terra, ao presente basta saber que ao segundo dia da chegada, que era domingo da Páscoa, êle Pedro Álvares saiu em terra com a maior parte da gente, e ao pé de uma grande árvore se armou um altar, em o qual disse missa

Fr. Henrique, guardião dos religiosos, e houve pregação. E naquela bárbara terra, nunca trilhada de povo cristão, aprouve a Nosso Senhor, per os méritos daquele Santo Sacrifício, memória de nossa Redenção, ser louvado e glorificado não somente daquele povo fiel da armada, mas ainda do pagão da terra, (492) o qual podemos crer estar ainda na lei da natureza, com o qual logo Deus obrou suas misericórdias, (493) dando-lhe notícia de si naquele Santíssimo Sacramento, porque todos se punham em giolhos, (494) usando dos atos que viam fazer aos nossos, como se tiveram notícia da Divindade a que se humil-davam; (495) e ao sermão estiveram mui prontos, mostrando terem contentamento na paciência e quietação que tinham, por seguir o que viam fazer aos nossos, que foi causa de maior contemplação e devoção, vendo quão oferecido estava aquele povo pagão a receber doutrina de sua salvação, se ali houvera pessoa que os pudera entender.

Pedro Álvares, vendo que por razão de sua viagem outra coisa não podia fazer, dali expediu um navio, capitão Gaspar de Lemos, com nova pera el-rei D. Manuel do que tinha descoberto; o qual navio com sua chegada deu mui prazer a el-rei e a todo o Reino, assi por saber da boa viagem que a frota levava, como pela terra que descobrira.

Passados alguns dias, enquanto o tempo não servia e fizeram sua aguada, quando veio a três de maio, (496) que Pedro Álvares se quis partir, por dar nome àquela terra per êle novamente achada (497) mandou arvorar uma cruz mui grande no mais alto lugar de uma árvore, e ao pé dela se disse missa, a qual foi posta com solenidade de bênçãos de sacerdotes, dando este nome à terra Santa Cruz, quase como que por reverência do sacrifício que se celebrou ao pé daquela árvore, e sinal que se nela arvorou com tantas bênçãos e orações ficava toda aquela terra dedicada a Deus, onde Êle por sua misericórdia haveria por bem ser adorado por culto de católico povo, posto que ao presente tão sáfaro (498) dele estivesse aquele gentio. E, como primícias desta esperança, dalguns degredados que iam na armada leixou Pedro Álvares ali dois, um dos quais veio depois a este Reino, e servia de língua (499) naquelas partes, como veremos em seu lugar; per o qual nome Santa Cruz foi aquela terra nomeada os primeiros anos, e a cruz arvorada alguns (500) durou naquele lugar. Porém, como o demônio por o sinal da Cruz perdeu o domínio que tinha sobre nós, mediante a Paixão de Cristo Jesus consumada nela, tanto que (501) daquela terra começou de vir o pau vermelho chamado Brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo, e que se perdesse o de Santa Cruz, como que importava mais o nome de pau que tinge panos, que daquele pau que deu tintura a todos os Sacramentos per que somos salvos, por o sangue de Cristo Jesus, que nele foi derramado; e, pois em outra coisa nesta parte me não posso vingar do demônio, amoesto, da parte da Cruz de Cristo Jesus, a todolos que este lugar lerem, que dêem a esta terra o nome que com tanta solenidade lhe foi posto, sob pena de a mesma Cruz, que nos há-de ser mostrada no dia final, os acusar de mais devotos do pau Brasil que dela.

(Década I, Liv. V, Cap. II). Obra de João de Barros

 

Excelência da Paz

Que descanso ou que contentamento pode haver no reino, ou república, onde não há paz? Por isso, assim como o fim do bom piloto é fazer próspera a viagem, e do médico dar saúde, e do capitão alcançar vitória; assim do bom príncipe é conservar a vida e descanso de seus vassalos, a qual coisa em tempo de guerra não pode ser.

Alegre parece a guerra de fora; mas quem a experimenta, este conhece bem os trabalhos de uma e os bens da outra; porque, assim como na doença se conhece o bem da saúde, e na tormenta do mar o bem da terra, assim não há tempo em que melhor se julgue e entenda o bem da paz, que quando se carece dela. (502) Se a um homem que nunca ouvisse falar em armas, nem tivesse alguma experiência delas, subitamente fosse mostrado o aparato de dois grandes exércitos por mar e por terra, ordenados para se darem batalha, (503) e visse os formosos penachos, as armas reluzentes, a multidão dos cavalos, a ordenança da gente de pé, toda bem disposta e prestes para pelejar, as bandeiras, os esquadrões em seu concerto; doutra parte visse no mar muitas naus e galeões com muita gente bem armada, cobertas de formosas bandeiras, rodeadas de paveses e cercadas de toda a sorte de artilharia, sem dúvida, quem quer que isto visse, não sabendo mais nada, não cuido eu que receasse de se meter entre eles, e lhe parecia (504) que via a mais formosa coisa do mundo. Mas se, depois de travada e mui cruamente (505) ferida a batalha, esse mesmo sentisse e visse com seus olhos o grande ruído e estrondo das armas, a grita da gente, os golpes e os tiros de artilharia, a multidão dos mortos, corpos espedaçados, ais e gemidos dos feridos, outros serem pisados dos cavalos, a confusão, o medo e o espanto da morte presente; e assim visse no mar as naus e galeões arrombados com tiros de fogo, umas delas irem-se ao fundo, outras arderem-se (506) em fogo, e chamas de alcatrão, as ondas vermelhas com sangue, o fumo da pólvora, os homens lançarem-se ao mar, e afogarem-se, quem isto tudo visse, bem creio eu que escolhesse antes a paz que a guerra; e que tomasse antes por partido viver em descansada e segura paz debaixo da obediência de um príncipe justo, que (507) não querer arriscar-se a tamanhos perigos por uma mostra falsa, e enganos de olhos, e esperança incerta da vitória.

Não se devem julgar as coisas pelo apetite (508), senão pela razão. Quem isso assim fizer, verá quanto mais vale o descanso da boa paz que o sobejo exercício das armas; porque, posto que elas prometam vitórias, ou a guerra em si é de todo injusta, e não pertence ao príncipe cristão; ou tem muitos inconvenientes que dela podem nascer, que devem todos ser olhados primeiro que (509) nada se cometa; porquanto os começos da guerra estão em nosso poder, e os cabos não. Eu não entendo aqui da que se faz aos infiéis inimigos da nossa santa fé; porque esta, sendo justa, é proveitosa, e traz grande louvor ao rei cristão; mas toda a outra sorte dela, que agora se usa, mais do necessário, (510) não sendo em defensão da Pátria se deve muito fugir e estranhar.

(Panegírico a El-Rei D. João ¡11, ed. de 1791, p. 30). Obra de João de Barros

 

Glossário

 

  • (481) Pero (do lat. per hoc), conjunção arcaica, correspondente a porém (por ende < pro inde).
  • (482) um tempo = um vento, um temporal.
  • (483) empegou-se — engolfou-se, dirigiu-se para o’ mar alto, para o pélago ou pego, afastou-se da costa.
  • (484) as que se acharam per Cristóvão Colon — voz passiva pronominal com o agente verbal claro, o que não é usual, mas foi praticado por vários clássicos e por modernos. Rui, na Rêpl. escreveu: "Este verbo, em nossa língua, nunca se usou pelos escritores vernáculos"… (384, p. 480). Veja-se a anotação n.° 70 do 9.° vol. da Estante Cláss. da R. de Língua Port., pp. 207-208. Em Os Lusíadas deparam-se mais de doze exemplos deste fato sintático.
  • (485) Observe o anacoluto.
  • (486) surgidouro . = ancoradouro.
  • (487) amedrentar, contração de *amedorentar, de um analógico *medor e o suf. verbal entar; hoje predomina a forma amedrontar. (Camões escreveu amedrontar algumas vezes no poema; mas valeu-se de amedrentar para a rima (X, 72).
  • (488) surgia = ancorava, fundeava.
  • (489) todalas, ambolos, poilo, mailo — são vozes arcaicas, em que se junta o artigo lo, la los, las a formas cujo — s — final se perde antes do — l: todas las, ambos los, pois lo, mais lo; dizia-se: Deu lo sabe, com a queda do — s — seguido do — /.
  • (490) levar as áncoras = levantar, erguer, ascender: "En outro dia, quando o sol era já levado, cavalgou Giflet… e partiu-se d’ali…" (Demanda do Santo Graal, ap. Padre Aug. Magne, na Rev. de L. Port., n. 45, p. 54). V. também n. 51.
  • (491) haver vista = avistar, ver.
  • (492) pagão = não cristianizado, não batizado. Do latim paganus, aldeão, de pagus, aldeia, povoação, território. Alterou o sentido por terem os povoados rurais conservado o culto dos deuses, quando em Roma já se expandia o Cristianismo. Daí a antinomia entre cristãos e pagãos. A raiz é a mesma de país, paisagem, paisano,
  • (493) suas misericórdias. V. n. 415.
  • (494) giolhos = joelhos (do lat. *genuc(u)lu, por geniculu, diminut. de gemi, joelho). Houve metátese de ageolhar para ajoelhar, como assevera Gonçalves Viana em suas Apostilas, I, p. 508. No 2.° diálogo da Consolaçam de Samuel Usque se lê: .. ."agiolha-te a êle" (p. 36); e "agiolhado em terra, pidiu misericórdia…" (p. 38). Camões empregou giolhos (II, 12) e geolhos (VI, 93).
  • (495) humildar = humilhar; este do lat. humillare, de humilis, e aquele de humilitare, formado de humilitate, donde humilde, humildade, humildoso. O superlativo é duplo: humílimo e humildíssimo.
  • (496) quando veio [o tempo] a três de maio…
  • (497) novamente = recentemente, pouco antes.
  • (498) sáfaro aqui é alheio, estranho, distante, já não usado hoje com tal sentido, mas freqüente nesse A., de quem é também a seguinte abonação: "estavam mui sáfaros da cubica". (Déc, cit. em Morais, Dicion., s. v.)
  • (499) língua — intérprete entre dois idiomas, tradutor; termo assaz usado, em tal sentido, pelos cronistas de quinhentos.
  • (500) alguns [anos].
  • (501) tanto que = logo que.
  • (502) carecer (do lat. carescere, freqüentativo de carere: ter falta, não possuir; e daí o subst. carência, falta, e os adjetivos carente, carecente e carecido com a significação’ de privado ou falto de alguma cousa. São muitos os exemplos nos clássicos. O verbo, contudo, recebeu outro sentido, lógico e compreensivo: o de necessitar ou precisar de algo. E explica-se a nova acepção, porque "natural é — diz ilui — que se necessite daquilo que se não tem, isto é, daquilo de que se carece. Daí a tendência a confundir-se a falta, ou carência com a necessidade, ou precisão". (Répl., 99). O sentido tradicional continua, porém, em pleno vigor, na boa linguagem.
  • (503) para se darem batalha — se, obj. indir. recíproco.
  • (504) parecia por pareceria.
  • (505) cruamente —cruentamente.
  • (506) ir-se, arder-se. V. n. 370.
  • (507) que (ou do que) conj. comparativa.
  • (508) apetite tem aí a significação própria, que possuía no latim (appetitu), de desejo, vontade, cobiça, ambição; e não a que hoje se lhe dá comumente, de apetência, ou desejo de comer.
  • (509) primeiro que = antes que, "Ninguém que empreenda uma jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as suas forças, por saber se o levarão ao cabo." (Rui, Oração de São Paulo, em Elog. Acad. e Orações de Paraninfo, p. 358).
  • (510) mais do necessário — mais do que o necessário. Entre os antigos (e entre alguns modernos, por mais simples e leve a construção) foi uso substituir-se, a revezes, a conj. comparativa que ou do que, pela preposição de, como se nota aí e se comprova na epígrafe do texto em prosa de Garcia de Resende, nesta Antologia, p. 350. Camões, no c. II, estr. 9.a, escreveu: "A cidade correram, e notaram / muito menos daquilo que queriam (= de que aquilo que queriam). Camilo, Latino, Machado de Assis, Rui Barbosa abonam tal sintaxe.

 


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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