Perfil biográfico de Alexandre Herculano

Oliveira Lima

ALEXANDRE HERCULANO

DlZIA um poeta francês de outro poeta também francês — não há furor mais terrível do que o de um lírico que se zanga — que há mortos que é preciso matar. Vejam que requinte de crueldade! Chega a parecer uma atrocidade, e esta ocorrida em tempo de paz. Dizia lie isto de Casimir Delavigne, um autor dramático de excelentes Intenções se bem que de estro menos excelente, que se apegava às formas clássicas quando o figurino romântico entrava na moda. Ora, toda moda, quando começa, é exagerada: carece para se impor de ferir a imaginação. Haja vista a moda das saias curtas, que nos vale muitas exibições deleitosas, e algumas burlescas.

Em compensação, dos tais mortos que é preciso matar, mortos há que se faz mister continuem a viver para serem nosso exemplo e guia, daqueles pelo menos que querem seguir os bons exemplos e desejam reforçar a sua diretriz com o valor de semelhante auto ridade. Herculano é um desses, e o culto piedoso que lhe vota o coração português, o qual, deste lado do Atlântico, bate mais patrióticamente ainda se possível, porque o que aqui se ins-tala para trabalhar pretende instintivamente mostrar não haver desmerecido do que outrora desbravou os sertões, tem a sua razão de ser, a sua justificação perfeita no fato de ter Herculano sido o maior dentre os portugueses do século XIX. O maior num século que tão belos nomes forneceu ao patrimônio, que chamarei comum aos dois povos, da intelectualidade lusitana: o maior pelo espírito c o maior pelo caráter.

Herculano foi em Portugal o renovador dos processos históricos, quero dizer, do método de escrever a história, c foi ao mesmo tempo um modelo admirável de compostura e de austeridade. Ambas as faces da sua personalidade refletiam assim um só predicado, que era o amor da verdade — a verdade do que se passou, do que comporta a tradição que tanta vez a embelezou ou a deturpou, e a verdade nas relações sociais, no trato humano, e sobretudo na política.

Basta isto para vermos que ê!e era um poeta. As crianças costumam dizer, quando se combinam no mesmo momento atmosférico o sol e a chuva, que está casando a raposa com o rouxinol. O casamento da verdade e da política seria tão extraordinário quanto esse e, caso fosse possível^icaria infecundo. Tanto melhor, porque a prole oriunda de tal conubio não conseguiria medrar.

Herculano foi portanto neste ponto um sonhador, mas a ação dos sonhadores, por se passar em regiões que não são rasteiras, não deixa de ser vigorosa se dpla irradia uma tal auréola de simplicidade, de honestidade e de dignidade. Um simples — como é difícil sê-lo! O estilo de Garrett, que nos parece a singeleza mesma que se diria fluir do bico da pena como uma ata de eleição em certas democracias, quanto labor encerra! Uma prova das Viagens

na Minha Terra contem tantas emendas, tantas correções, que o texto primitivo desaparece à força de alterado, de limado, de burilado, sem que se perceba a ação aturada do instrumento, o que é a condição da arte.

Herculano chegou à perfeição moral pela prática das virtudes domésticas e das virtudes sociais. E esta simplicidade adquirida e consciente, que é mui diversa da simplicidade espontânea e natural — a simplicidade dos incultos, dos inexperientes, dos indefesos —, trouxe-lhe fortaleza. Não foi contudo um forte pela fereza, muito menos pela bravata, se é que um fanfarrão pode jamais ser forte fora do palco, onde Cyrano de Bcrgcrac combinava em versos sonoros a basófia e o valor.

A Herculano não repugnavam as lulas quando empreendidas para conquistar franquias. A sua geração teve a nobre preocupação da liberdade, não da que encobre ganância e se exprime pela intolerância, mas da verdadeira liberdade — a liberdade máxima do indivíduo dentro dos limites da lei e com o respeito da liberdade alheia. Era esta aliás a espécie de liberdade com que mentalmente associávamos a civilização c que na Europa de um dia para outro se apagou, como o efeito talvez mais sinistro, desta guerra maldita, que tantas tristezas, tantas lutas e tantas vergonhas está acarretando.

Perdoai-me se lhe não descubro o lado glorioso, se a minha miopia humanitária me não permite enxergar os motivos morais que se apontam. Eu sou e continuarei a ser um pacifista: não tenho pejo de confessá-lo neste tempo, em que ser pacifista é mais criminoso do que ser gatuno. Mas eu compreendo também a guerra: compreendendo a legítima defesa contra um ataque para o qual não tenha havido provocação; compreendo a reivindicação das liberdades essenciais ao jogo da personalidade humana; compreendo e estimo Herculano pugnando c sofrendo pelo ideal do seu tempo, ainda que nesse ideal entrasse necessariamente uma parte de devaneio, injusto para o que existia, utópico em relação ao que devia existir.

Herculano era apenas um inimigo da guerra como profissão e mais ainda como desporto. Nem a sua filosofia, nem a sua moral se poderia coadunar com esse ponto-de-vista. A sua concepção básica era a do civismo, de que êle foi o tipo e a personificação no Portugal constitucional.

É comum no Portugal republicano de hoje — nem todos os espíritos podem ser tolerantes, virtude reservada ao menor número

— maldizer do Portugal constitucional, como neste era comum maldizer do Portugal absolutista. Cada regímen tem que explicar sua significação e dar a conhecer suas vantagens, rebaixando os que lhe fazem concorrência. É, porém, difícil conter isto, que se chama modernamente propaganda, dentro dos limites da gravidade. No Portugal constitucional o regímen absolutista encontrou um vingador terrível na pessoa de Oliveira Martins, cujo Portugal Contemporâneo foi tão corrosivo quanto na velha Roma uma sátira de

Juvenal. Bastaria aliás a nobilíssima figura dc Herculano para fazer sentir e compreender quanto valeu o Portugal liberal.

Um regímen que engendra semelhante varão é um regímen que nada pode recear do juízo da História: acontece outro tanto com o Brasil imperial, encarnado no grande patriota que foi D. Pedro II. Se a última fase política portuguesa da época consti-nacionalista não correspondeu à primeira, nem em elevação nem em pureza, é porque o regímen já se desnaturara c o conflito pas-sara a ser muito mais dc interesses que de princípios. Um homem como Herculano identificava-se com os princípios, mas era incompatível com os interesses.

As responsabilidades de Herculano no regímen constitucional são de tal ordem, que êle foi o mentor de’ um rei que o mais rubro dos demagogos não pode deixar de respeitar c de estimar. Êle foi de fato o mestre e o confidente de El-Rei D. Pedro V, cuja figura Vive peregrina na saudade portuguesa: c sabeis quão funda e quão empolgante é a saudade portuguesa.

A mocidade e o infortúnio desse rei não aformosearam as linhas do seu perfil ao ponto dc tornar o desenho infiel. El-Rei D. Duarte, o autor do Leal Conselheiro, com que alguns comparam D. Pedro V, deixou na tradição a fama da sua inteligência, mas era um fraco na vontade que a desdita paralisara. O neto de D. Pedro IV c I desta terra tinha a melancolia daqueles que os deuses marcaram para chamar ao seu grêmio, uma melancolia aliás muito do seu tempo, característica do romantismo, o qual tanto foi político quanto literário: o seu valor era contudo indiscutível, superior a sua individualidade. Mesmo entre os reis se podem encontrar entes superiores. Não há muitas semanas li um artigo do Sr. Júlio Dantas, o mais tradicionalista dos escritores portugueses da atualidade, mau grado o modernismo das suas idéias políticas, a propósito dc trabalhos inéditos de D. Pedro V, encontrados na Biblioteca do Paço. O ilustre historiador, e nenhum o é com mais senso do pitoresco, não esconde o seu entusiasmo pela madureza precoce, pela rara penetração e pelo sentimento social do monarca que se poderia dizer lendário, se a lenda não comportasse uma parte dc imaginação e de inexatidão. Entretanto, o Sr. Júlio Dantas é neste caso absolutamente insuspeito, porque são seus estudos cruéis sobre as terras dos Braganças, processo histórico que nunca falha.

Imagine-se o que poderia ter sido Portugal se o houvesse governado D. Pedro V, inspirado por Herculano, se o espírito do tempo e a feição da nova sociedade política permitissem a este ser o Pombal daquele D. José de um outro e mais valioso estofo. Deveríamos pelo menos crer que não ficariam de pé abuso nem imoralidade. O regímen organizado !P golpes dc legislação por Mousinho da Silveira ficaria expurgado, mas seria impossível mantê-lo. A honestidade administrativa é um formoso ideal, mas quando os ideais chegam a realizar-se, nunca o são na sua plenitude, menos ainda na plenitude da sua limpidez. Herculano era inteiriço demais, D. Pedro V era virtuoso demais para que lhes fosse dado guiar um país, amoldar uma nação sem contra eles se erguer a coalisão dos apetites e das cobiças, que são prementes na sua ação.

Personalidades como as dêsse Mentor c desse Telêmaco são modelares: os modelos porém nem por todos são imitados. Poucos são mesmo os que possuem dotes para tanto. A influência moral nem por isso deixa de ser uma realidade. Devemos supor que a sociedade seria muito pior se se não desse tal influência. Ninguém de resto a possuiu maior do que Herculano entre os seus contemporâneos de raça e de língua, não só de nascimento, pois que ela se estendeu ao Brasil.

Nem Garrett, nem, modernamente, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro atingiram grau igual de prestígio nesta terra, porquanto o seu prestígio era duplo, da inteligência e da vontade. Garrett tinha elegância — elegância no traje e no estilo — e sedução como ninguém. A ação dos três outros foi sobretudo demolidora, pela pungente ironia que dos seus escritos se destilava. Quando lhes chegou o feitio de carinho pelas crianças, pelas tradições ou pelos sofrimentos humanos, já estava radicado na opinião o traço crítico com que eles se assinalaram.

Em Herculano porém predominou sempre a energia construtora, revelando-sc cm primeiro lugar e de modo inequívoco pelo profundo sentimento religioso. Há quem pense que o autor da História de Portugal o não possuía, semelhante sentimento, e" chegam ou chegaram alguns a apodá-lo de livre-pensador e de ateu por causa da polêmica famosa com sacerdotes menos esclarecidos ou mais apegados às lendas históricas, que deu origem a publicações muito conhecidas sob o título — Eu e o Clero — nas quais Herculano deu prova do seu raro poder de dialética.

Herculano era um crente; como tal mesmo se apregoava ao dedilhar a harpa poética; mas não era absolutamente um fanático, nem podia sê-lo com a sua probidade de homem e de escritor, respeitando tradições absurdas, repugnantes ao bom senso e de cuja falsidade oferecia testemunho o estudo das fontes.

Ninguém há que ignore neste auditório o valor de Herculano como historiador, o historiador por excelência da formação da nacionalidade portuguesa. Não era a fácil descrição de sucessos bélicos e de ocorrências de corte que o tentava, descrição feita por um e repetida por muitos, como o chá de Tolentino sete vezes refervido; era a pesquisa fatigante mas fecunda da organização social do país subtraído ao islamismo pelo esforço dos cavaleiros cristãos, mas tendo recebido funda a marca do domínio romano, da conquista visigótica e da ocupação berbere, com tudo quando estas vicissitudes do destino implicam de modalidades no terreno do direito, da religião e de mais categorias espirituais.

A obra histórica de Alexandre Herculano abrange um ingente trabalho preparatório, uma pujante documentação que, com relação aos primeiros séculos, constitui o objeto dos Portugaliae Monumenta Histórica, em que colaboraram os meus mestres de paleografia, os irmãos Basto, João e José, ao primeiro dos quais Herculano legou seus livros e que no antigo Mosteiro de S. Bento de Lisboa, onde se albergou a Torre do Tombo e também se asilou a oratória parlamentar, faziam o efeito de beneditinos leigos. Apenas não eram nédios estes frades cartistas: um e outro, como Herculano também, eram de uma ascética magreza…

Herculano não foi todavia insensível à beleza das lendas, sobretudo quando as perfumava o idealismo cristão. Conheceis todos as Lendas e Narrativas. Somente êle as separava da verdade histórica. Neste escritor se combinavam o senso crítico de Thierry, como historiador, e o senso do pitoresco de Walter Scott, como novelista. Não éía que imitasse, quer um, quer outro: um dos grandes méritos de Herculano é haver sido eminentemente nacional, dentro do influxo do romantismo, que foi uma corrente deveras cosmopolita.

Remontar esta corrente até suas nascentes medievais foi uma faina muito romântica, donde decorria farto manancial de nacionalismo, mas, alimentando todos estes mananciais, existia como que um amplo lençol d’água subterrâneo que lhes dava virtudes comuns. Este lençol d’água pode dizer-se que foi a renascença do Cristianismo, cujo gênio Chateaubriand enalteceu em páginas imorredou-ras, que constituem a bíblia literária da escola que tão poderosa influência exerceu sobre o pensamento humano.

Esta reação da fé, que parece inseparável da humanidade tomada no seu conjunto, contra o espírito de negação da filosofia do século XVIII, teve a Herculano como soldado e partidário tão decidido quanto o advento das idéias liberais em política. Ao órgão do romantismo português, que foi o Panorama, o seu nome se acha indissoluvelmente ligado. Vulgarizando a compreensão do passado pátrio, os seus iniciadores estimulavam ao mesmo tempo o amor desse passado, e o Brasil deve à ação desse semanário célebre muito da paixão histórica do principal dos seus historiadores, cujo centenário se comemorou este ano e cujo último trabalho vai dentro em pouco aparecer, graças ao zelo incomparável do nosso Instituto Histórico, porquanto se relaciona com sua missão.

Refiro-me a Francisco Adolfo de Varnhagen, que foi um filho espiritual da geração do Panorama. Porventura parecerá descabida a expressão — paixão, usada a propósito de quem encarava e dava conta da sua tarefa com sistemática frieza; mas na realidade Varnhagen tinha, tanto quanto Herculano, a paixão da documentação como base da exatidão histórica. Varnhagen o que não tinha era a vasta intelectualidade de Herculano, mas foi um discípulo que honrou o mestre e que com êste aprendeu também alguma coisa que os alfarrábios só por si não ensinam, e que é a dignidade. A gente do Panorama foi notável pela elevação intelectual tanto quanto pelo destaque moral.

O Brasil tampouco pode esquecer o modo por que Herculano recebeu as primícias literárias do maior dos seus poetas, que foi Gonçalves Dias. As relações entre a mãe pátria e a sua antiga colônia são hoje cordialíssimas e de uma cordialidade sincera. Portugal quer ao Brasil com carinho paternal: o Brasil tem para com ele deferência filial. Um século quase decorrido cicatrizou a ferida da separação. Comparada com a luta selvagem de quinze anos da~ colónias espanholas pela sua emancipação, luta entrecortada de lances épicos, a nossa independência foi um desquite amigável.

Mas todo o desquite tem o seu ranço!……………………

… .Ninguém se separa por se querer bem. Quando não haja razões de honra, há incompatibilidades de gênios, melindres, desconfianças, interesses. Pelo tempo adiante, quando não venha o arrependimento, chega-se porém a fazer justiça, c deste sentimento de justiça nasce a Saudade. Nós estamos uns c outros nesta fase. Fazemos vida à parte, cada qual com suas responsabilidades e suas preocupações, mas olhamos para a quadra de antanho com indulgência pelos agravos e com ternura pelos heroísmos, a que Portugal deve não pouco da sua glória c o Brasil a sua formidável integridade.

Quando Herculano armou cavaleiro das letras lusitanas o nosso Gonçalves Dias, os ciúmes entre os dois povos andavam ainda muito acesos. E não olvidemos que era Gonçalves Dias o corifeu do nosso nacionalismo literário, o cultor máximo do indianismo, que foi um movimento literário, sob um dos seus aspectos, deliberadamente antiportuguês. Sob outro aspecto, é sabido que o indianismo foi uma das modalidades do romantismo, no seu regresso à natureza, embora uma natureza em muitos casos convencional e arrebicada, que tinha muito de literária e pouco de real. A inge-unidade de Átala, onde Lindoya era antes postiça que espontânea, e a diferença entre elas e uma Graziela estava em que esta andava vestida e as outras despidas.

A redução ou melhor a equiparação seria hoje mais fácil, por que em todas as latitudes o sexo feminino tem ido renunciando aos atavios que disfarçavam seus encantos naturais.

O indianismo fêz escola, e até mui brilhante escola. À medida que desapareciam os índios, cresciam os seus admiradores, que não tratavam todavia de os amparar, o que prova que a admiração tinha bastante de artificial. O indianismo foi de começo, quando mais deliberado, uma manifestação intelectual; quando ficou mais espontâneo, foi porque passara a demonstração de ignorância. Gonçalves Dias, assim como José de Alencar, era um perfeito conhecedor da língua portuguesa, da clássica, e o seu indianismo não eliminava o seu purismo. Herculano compreendeu isto ainda que lhe quisessem alguns dar foros de emperrado, de estreito e de intolerante, só porque a natureza o fizera de uma só peça e não andara a compô-lo aos bocados, nem mesmo aos bocadinhos, como um mosaico.

Um idioma não pode por certo imobilizar-se: transplantado para uma nova terra, recebe do meio, das gentes que ali afluem e de outros fatores, novas achegas que o enriquecem e caracterizam. Não existe uma língua brasileira a não ser a língua geral dos tupis, que os indianistas começavam por ignorar; mas existem no português aqui falado numerosos brasileirismos, que não podem alterar a essência da língua, antes a ela se adaptam, resoeitando o seu gênio literário. Os dois povos são hoje diversos: segue cada qual sua evolução, podem até ter num dado momento interesses ou opiniões divergentes, que não afetam o patrimônio comum das suas tradições. Subsiste sempre o laço moral que se denuncia por uma inquebrantável afeição.

Herculano teve os seus detratores, vários dentre eles ilustres. E quem os não terá tido? O Padre Antônio Vieira, a quem não faltava argúcia, nem mundo, já dizia que se não atiravam pedras contra figueiras estéreis. Triste pois de quem não tiver inimigos. A prova é violenta, porém consoladora. O ponto é ter por inimigos os maus e por amigos os bons. Aliás as acusações formuladas contra Her culano são tão fúteis, que basta relembrá-las para estabelecer a sua inanidade.

Acusaram-no de medíocre e de pedante, de não ter sido grande em coisa alguma e de entretanto formar de si próprio um conceito exagerado, que ao mesmo tempo se traduzia por desdém pelo resto da humanidade. Pretendendo condenar os males políticos, êle de lato, no dizer dos que de boa vontade o apoucariam, desanimava os que lhe tributavam veneração, no cumprimento dos seus deveres políticos. Herculano tanto teria tido consciência do seu precoce esgotamento, sintoma da sua fraqueza intelectual, dissimulada pela austeridade, que se refirou do cenário político e até do acadêmico, para recolher-se numa pequena propriedade rural e fabricar azeite. Se Herculano vivesse hoje, apregoariam os tais seus detratores que êle fizera uma fita.

Perdoai-me a expressão que decerto arrepiaria as carnes do mestre e talvez faça estremecer os seus ossos. Os cinemas são tantos, que a locução referida tem foros adquiridos de admissão à circulação literária.

O que resultou das invectivas contra Herculano? Em que macularam seu prestígio? Não permanece este na sua plena integridade, cada vez maior se pode dizer, porque a auréola do homem de bem refulge mais larga e luminosa ainda do que a do sábio? O povo esqueceu as diatribes com que foi mimoseada a atividade do escritor c professor de civismo, e com que foi perturbado o seu retiro, se é que perturbavam a serenidade do filósofo críticas em suma superficiais, porque nunca se discutiu sua honradez nem se pôs em dúvida o seu desinteresse.

O túmulo de Herculano, sob as altas abóbadas sustentadas por arrendados capitéis manuelinos coroando as delicadas, esguias colunas dos Jerónimos, constitui um ponto de romaria para quantos, de raça lusitana, portugueses ou brasileiros, tributam ao historiador, ao romancista, ao poeta, ao publicista e mais que tudo ao patriota cujo sentimento se desdobrava num amplo sentimento humano, a sua admiração fervorosa. Já em vida do escritor era Vale de Lobos objeto de peregrinação. Ali iam muitos buscar ensinamento c trazer de lá reconforto moral, apesar do santo ser um pessimista. Todos se recordam que o falecimento de Herculano foi precedido de poucos dias pela visita do Imperador D. Pedro II, o qual insistiu porque se procedeu ao rompimento exigido pelo "caso concreto" que se seguiu ao protesto brasileiro contra os ataques indiscriminados dos submarinos alemães, nas chamadas zonas interditas.

Apelando para os serviços do eminente Campos Sales, que era um nome justamente acatado na República Argentina pelos seus provados sentimentos de concórdia platina, o Sr. Lauro Muller deu um brusco movimento ao leme, rumo à paz do continente. A política do A B C, no sentido em que êle pretendeu fixar essa sua orientação, não ofereceu quanto êle desejava porque os interesses dos países que compõem a cartilha americana, não são afinal tão idênticos entre as duas primeiras letras quanto os proclamou o falecido Saenz Pena. Há caminhos que se cruzam e objetivos que se chocam. Tampouco há felizmente problemas vitais, questões de vida e morte, das que levam fatalmente à guerra. A entente pode subsistir mesmo sem o tratado, senão com a amplitude que este lhe trazia, pelo menos com o espírito que o sugeriu. Embora dirigindo seus olhos para o Sul, o ex-ministro não perdeu de vista a América do Norte, e duas vezes lá foi cimentar relações: da segunda vez aproveitou para desobstruir o fígado dos muitos banquetes com que o tinham empanturrado da primeira.

Nos acontecimentos recentes deu o Sr. Lauro Müller provas de sangue frio e de previsão dignas de um homem de Estado. Se sua vida pública acabasse hoje, e quem cai como êle caiu não se inutiliza, muito pelo contrário, seu nome não mais morria. O talentoso Sr. Dioclécio Duarte, no excelente discurso com que abriu a sessão de posse da diretoria do Centro Acadêmico na Faculdade de Direito, pôs muito bem em relevo o acerto da ação do ex-ministro das Relações Exteriores neste delicadíssimo instante político e não trepidou em compará-lo a Thicrs, que sofreu no Corpo Legislativo o embate desensofrido dos que queriam a guerra com a Prússia e o acoimavam de antipatriota — a injúria habitual dessas ocasiões — para um ano depois ser chamado como*o salvador da França e enfim como o libertador do território nacional.

O Sr. Lauro Müller manifestou inequivocamente que, no seu entender, a guerra por enquanto se não justificava, e que a diplomacia, não a das tramas secretas, mas a das francas responsabilidades, não tinha ainda cumprido sua missão, muito menos esgotado os seus recursos. Ora, antes disso é um crime derramar-se sangue. Sua popularidade vai dentro em algum tempo ser invejável porque, como com Thiers, com êle estava a boa razão.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

Veja um resumo sobre Alexandre Herculano.

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