Comunicava sistematicamente a Díon as palavras que os soldados haviam
de fato proferido ou que ele mesmo forjava/ Adquirira, graças à
confiança que inspirava, tamanha liberdade de ação que
podia avistar-se em segredo com quem quisesse e falar-lhes com a maior
franqueza contra Díon – pois era o que este ordenara que fizesse, para
saber quem lhe era disfarçadamente hostil. O resultado foi que Calipo
não tardou a descobrir e agrupar os homens de alma perversa e
desarvorada. Quando alguém repelia suas propostas e o ia denunciar a
Díon, este não ficava nem inquieto nem aborrecido, pois que Calipo
estava se conformando às suas instruções.
55. Enquanto a sedição era tramada, um
fantasma gigantesco e monstruoso apareceu a Díon. Estava ele sentado,
tarde da noite, num vasto aposento da sua casa, sozinho e mergulhado em
pensamentos, quando de repente ouviu o barulho na outra extremidade da sala;
voltou-se e, como era dia ainda (*), deu com uma mulher de talhe imponente,
semelhante no rosto e no traje a uma Erínia trágica, ocupada em
limpar a casa com uma vassoura. Muito impressionado, chamou os amigos,
descreveu-lhes a visão e pediu-lhes que passassem a noite com eles, pois
estava perturbado e temia que a visão reaparecesse quando voltasse a
ficar só. Não reapareceu. Mas dias depois seu filho, ainda
não completamente saído da infância, após uma crise
de amuo e cólera por motivo insignificante e pueril, precipitou-se de
cabeça do alto do teto e matou-se.
56. Sabendo que Díon ficara extremamente afetado,
Calipo empenhou-se ainda mais na execução de seu plano e espalhou
por Siracusa o boato de que Díon, sem mais filhos, resolvera chamar
Apolócrates, filho de Dionísio, para instituí-lo sucessor,
uma vez que era sobrinho de sua mulher e neto de sua irmã. Entrementes,
Díon e as mulheres da casa começaram a suspeitar do que se
tramava. As denúncias não paravam de chegar. Mas Díon – ao
que parece, lamentava sua conduta para com Heráclides e vivia entristecido
por causa daquele crime, verdadeira mácula colada à sua
existência e seus atos – declarou que preferia padecer mil mortes e
oferecer o pescoço a quem quisesse matá-lo do que viver
perpetuamente na defensiva não apenas contra inimigos, mas também
contra os amigos. Calipo, vendo as mulheres conduzir uma
investigação minuciosa sobre o caso, ficou com medo e foi
conversar com elas, protestando, chorando, e oferecendo as garantias que lhe
exigissem. As mulheres pediram que prestasse o grande juramento, cuja forma
é a seguinte: a pessoa que empenhava sua fé desce ao
santuário das Tesmóforas e após realizar certos
sacrifícios, envolve-se no manto de púrpura da deusa e,
empunhando uma tocha, faz o juramento. Depois de cumprir todas as
cerimônias e pronunciar a fórmula, Calipo zombou a tal ponto das
deusas que aguardou o dia das festas de Coré (pela qual jurara) para
executar o crime. Talvez, entretanto, nem tenha atentado para a data, já
que de qualquer maneira constitui sacrilégio para com a deusa um
mistagogo, não importa a ocasião, degole aquele que ele iniciou
nos mistérios.
57. Calipo arregimentou numerosos cúmplices. Num dia
em que Díon
estava estirado com os amigos numa sala de muitos leitos, alguns conjurados
cercaram a casa enquanto outros se postaram às portas e janelas do
aposento. Os que deveriam executar a agressão, uns zacintianos, entraram
desarmados e de túnica e os que ficaram de fora puxaram as portas
mantiveram-nas cerradas. Os assassinos atiraram-se sobre Díon, tentando
sufocá-lo e estrangulá-lo. Como não conseguissem, pediram
uma arma, mas ninguém ousava abrir as portas porque no interior havia
muita gente com Díon; essa gente, porém, esperava salvar-se
abandonando-o, de sorte que ninguém teve coragem de socorrê-lo. O
tempo passava. Então Lícon de Siracusa, pela janela, passou um
punhal a um dos zacintianos: com ele Díon foi degolado qual
vítima sacrifical de há muito dominada e assustada.
Pouco depois, eram levadas para a prisão a irmã e a mulher de
Díon, que estava grávida. Deu à luz miseravelmente na
enxovia e pôs no mundo um menino que ambas insistiram em alimentar, tanto
mais que haviam obtido a conivência dos guardas – os quais já
notavam que a situação de Calipo se arrumava.
58. Calipo, depois de assassinar Díon, gozou nos
primeiros tempos de uma brilhante fortuna e manteve Siracusa em seu poder.
Chegou a mandar uma carta para Atenas, de todas as cidades a que mais deveria
respeitar e temer seguida aos deuses, por causa da mácula de que se
cobrira. Mas parece que diz a verdade quem afirma que essa cidade dá
nascimento aos melhores homens de bem e aos piores celerados, assim como seu
solo produz o mel mais delicioso e a cicuta mais mortalmente eficaz. De resto,
não foi por muito tempo que a exigência de Calipo justificou a
censura que se poderia fazer à fortuna e aos deuses de permitir a um
homem gozar a soberania e a influência adquirida ao preço de
tamanha impiedade: ele não tardou a ser punido como merecia. Querendo
assenhorar-se de Catânia, perdeu ao mesmo tempo Siracusa. Conta-se que na
ocasião afirmou ter abandonado uma cidade em troca de um ralador de
queijo (katáne). Em seguida, ao atacar Messina, perdeu a maior
parte de seus soldados, entre os quais o assassino de Díon. Como nenhuma
cidade siciliana quisesse recebê-lo e todos o repelissem com ódio,
apossou-se de Régio. Ficou ali em situação
deplorável e, por alimentar mal os mercenários, acabou
assassinado por Leptines e Poleperconte – que casualmente se serviram, diz-se,
do mesmo punhal que ferira Díon. O objeto foi reconhecido pelo tamanho
(era curto como os da Lacônia) e pela beleza de valor, muito delicado e
artístico. Eis como foi punido Calipo.
Quanto a Aristômaca e Arte, depois que saíram da prisão,
Hicetas de Siracusa – que fora amigo de Díon – acolheu-as e parece
tê-las tratado de maneira leal e honrosa. Mas depois, aliciado pelos
inimigos de Díon, mandou aparelhar um barco a pretexto de enviá-las
para o Peloponeso e ordenou que fossem degoladas durante a travessia e atiradas
ao mar. Outros pretendem que padeceram morte por afogamento, e a criança
com elas.
Castigo digno desse ato também atingiu Hicetas: capturado por
Timoleão, foi condenado à morte. E os siracusanos, para vingar
Díon, eliminaram ainda suas duas filhas, conforme se lê em
pormenor da Vida de Timoleão.
Notas
(*) Na tradução
inglesa de John Dryden: "While this conspiracy
was afoot, a strange and dreadful apparition was seen by Dion.
As he sat one evening in a gallery in his house alone and thoughtful, hearing a
sudden noise he turned about, and saw at the end of the colonnade, by clear
daylight, a tall woman, in her countenance and garb like one of the tragical Furies, with a broom in her hand, sweeping the
floor. ". O sentido é de que,
embora fosse de noite, Díon viu a aparição como que
iluminada pela luz do dia. (nota do Redator)