VOLTAIRE – O século de Luís XIV – Menoridade de Luís XIV

VOLTAIRE – O século de Luís XIV

CAPÍTULO III

Menoridade de Luís XIV — Vitória dos Franceses sob o grande Conde, então duque d’Enghien

Ocardeal Richelieu e Luís XIII acabavam de falecer 1, um admirado e odiado, o outro já esquecido. Tinham legado aos Franceses, então muito inquietos, uma aversão pelo simples nome de ministério e pouco respeito pelo trono. Luís XIII, no seu testamento, estabeleceu um Conselho de Regência. Esse monarca, mal obedecido durante a vida, pensou que o seria melhor depois de morto; mas o primeiro gesto de sua viúva, Ana d’Áustria, foi o de fazer anular as últimas vontades do esposo, por uma sentença do Parlamento de Paris. Essa corporação, durante muito tempo em oposição à corte e que mal conservara no reinado de Luís XIII a liberdade de fazer representações ao soberano, anulou o testamento com a mesma facilidade com que teria julgado a causa de um cidadão comum. Ana d’Áustria dirigiu-se ao Parlamento para obter a regência ilimitada, porque Maria de Médicis se havia servido do mesmo tribunal, depois da morte de Henrique IV, e Maria de Médicis dera tal exemplo porque outro qualquer caminho teria sido longo e incerto; o Parlamento, cercado de guardas reais, não poderia resistir à sua vontade, e uma sentença proferida no Parlamento pelos pares significava assegurar um direito incontestável.

A usança que confere a regência às mães dos reis pareceu, então, aos Franceses, uma lei quase tão fundamental quanto a que priva as mulheres da coroa 2. O Parlamento de Paris, tendo decidido duas vezes sobre a questão, isto é, tendo somente declarado por sentenças esse direito das mães, pareceu, realmente, ter conferido a regência: considerou-se, não sem alguma verossemelhança, o tutor dos reis, e cada conselheiro julgou partilhar da soberania. Pela mesma sentença, Gastão, duque de Orléans, jovem tio do rei, recebeu o título inócuo de tenente-general do reino, sob a regente absoluta.

Ana d’Áustria viu-se obrigada, primeiro que tudo, a continuar a guerra contra o rei da Espanha, Filipe IV, seu irmão, a quem muito estimava. É difícil dizer-se com segurança a razão de tal guerra; nada se exigia da Espanha, nem mesmo a Navarra, que devia ser património dos reis da França; guerreava-se desde 1635 porque o cardeal Richelieu o tinha querido, e acreditava-se que ele o quisera por julgá-lo necessário 3. Ligara-se contra o Imperador com a Suécia e o duque Bernard de Saxe-Weimar 4, um daqueles generais que os Italianos denominavam condottieri, isto é, que vendiam suas tropas; atacara também o ramo austro-espanhol nas dez províncias conhecidas geralmente pelo nome de Flandres, e repartira com os Holandeses, então nossos aliados, essa Flandres que não se conquista jamais.

O ponto mais sensível da guerra era do lado da Flandres: as tropas espanholas saíram da fronteira do Hainaut, em número de vinte e seis mil homens, sob a chefia de um velho general experimentado, de nome Don Francisco de Melo, e vieram devastar as fronteiras da Champagne; atacaram Rocroy e julgaram-se prestes a atingir Paris, como haviam feito oito anos antes. A morte de Luís XIII, a fraqueza de uma menoridade animaram-lhes as esperanças; e quando viram que lhes opunham apenas um pequeno exército, numericamente inferior ao seu, e comandado por um jovem de vinte e um anos, a esperança de uma vitória completa se transformou em certeza.

O jovem sem experiência, por eles menosprezado, era Luís de Bourbon 5, então duque d’Enghien, conhecido depois pelo nome de grande Conde. A maioria dos grandes capitães atinge essa categoria por gradações sucessivas. Conde nascera general; a arte da guerra parecia ser nele um instinto natural. Não havia na Europa senão ele e o sueco Torstenson, possuindo aos vinte anos um génio que dispensava a experiência.

O duque d’Enghien recebera, com a notícia da morte de Luís XIII, ordem para não aventurar-se a uma batalha. O marechal de L’Hospital, que lhe havia sido dado por conselheiro e guia, secundava com sua circunspecção essas ordens tímidas. O príncipe não deu ouvidos nem ao marechal nem à corte, e confiou seu propósito somente a Gassion, marechal de campo, digno de ser consultado por ele; e ambos forçaram L’Hospital a reconhecer a batalha como necessária.

(19 de Maio de 1643). O príncipe, tendo feito todos os preparativos e dado todas as ordens necessárias na tarde do dia anterior ao da batalha, dormiu tão profundamente que foi preciso acordá-lo para o combate. Conta-se o mesmo de Alexandre. Nada mais natural que um jovem, esgotado pelos esforços que demandam os preparativos de véspera de batalha, caia em seguida em sono pleno e reparador, como também é natural que um génio talhado para a guerra, agindo sem inquietude, deixe ao corpo calma suficiente para dormir.

O príncipe ganhou sozinho a batalha, por uma visão segura, que percebia, a um só tempo, o perigo e os meios de conjurá-lo; pela sua actividade isenta de embaraço, surgindo em toda parte no momento preciso. Foi ele quem, com a cavalaria, atacou a infantaria espanhola, até ali invencível, tão forte, tão cerrada quanto a falange antiga, com uma agilidade que a falange não possuía, para deixar partir a descarga de dezoito canhões colocados no centro da sua formação. Conde cercou-a e atacou-a por três vezes consecutivas. Vitorioso, fez imediatamente cessar a carnificina. Os oficiais espanhóis lançaram-se aos seus pés, para encontrar junto dele abrigo contra o furor do soldado vencedor. O duque d’Enghien fez tanto empenho em poupá-los, quanto o fizera em vencê-los.

O velho conde de Fuentes, comandante da infantaria espanhola, morreu varado de golpes. Conde, ao ter conhecimento disso, declarou que desejaria ter morrido como ele, se não houvesse vencido.

O respeito que havia na Europa pelas armas espanholas voltou-se para os Franceses, que há cem anos não ganhavam uma batalha tão importante, de vez que a sangrenta jornada de Marignan, mais disputada do que ganha por Francisco I contra os Suíços, tinha sido obra tanto dos bandos negros de alemães quanto dos Franceses. As jornadas de Pavia e Saint-Quentin 0 pertenciam ainda a épocas consideradas fatais à reputação da França: Henrique IV havia tido a infelicidade de não conseguir vantagens memoráveis senão sobre a sua própria pátria; no reinado de Luís XIII, o marechal de Guébriant7 conseguira pequenos sucessos, mas sempre contrabalançados por perdas; só Gustavo Adolfo tinha travado algumas daquelas grandes batalhas que abalam os Estados e ficam para sempre na memória dos homens.

A jornada de Rocroy marcou uma etapa da glória francesa e da de Conde. O príncipe soube vencer e aproveitar-se da vitória. Suas cartas à corte fizeram com que se decidisse realizar o cerco de Thionville, o que o cardeal Richelieu não ousara tentar; e na volta do correio tudo estava preparado para essa expedição.

O príncipe de Conde atravessou o país inimigo, burlou a vigilância do marechal Beck e capturou afinal Thionville (8 de Agosto de 1643). Dali lançou-se ao cerco de Cirq8, apossando-se também dessa praça. Fez os alemães atravessarem o Reno; atravessou-o igualmente, em sua perseguição, e vingou sobre eles as perdas e as derrotas que os franceses tinham experimentado nessas fronteiras depois da morte do marechal Guébriant. Encontrou Friburgo tomada e o general Mercy diante das muralhas com um exército superior ao seu. Conde tinha sob suas ordens dois marechais de França: Gramont e Turenne, este último promovido a marechal poucos meses depois de haver servido com êxito no Piemonte, contra os Espanhóis, ocasião em que firmou a grande reputação de que passou a gozar depois. Com esses dois marechais, Conde atacou o acampamento de Mercy, entrincheirado entre colinas (31 de Agosto de 1644)°. O combate foi reiniciado três vezes, em três dias diferentes. Conta-se ter o duque d’Enghien atirado seu bastão de comando nas trincheiras inimigas, para ir em seguida apanhá-lo com a espada na mão, à frente do regimento de Conti. Seriam precisas, talvez, acções tão ousadas, para levar as tropas a ataques tão difíceis. Esta batalha de Friburgo, mais sangrenta do que decisiva, foi a segunda vitória do príncipe. Mercy levantou acampamento quatro dias depois. Filipeburgo e Mogúncia capturadas foram a prova e o fruto da vitória.

O duque d’Enghien regressa a Paris, recebe as aclamações do povo e pede recompensas à corte. Em seguida, entrega o comando do exército ao príncipe-marechal de Turenne; mas este, embora muito hábil e experimentado, é batido em Mariendal (Abril de 1645). Conde volta ao exército, retoma o comando, juntando à glória de comandar Turenne a de reparar-lhe o fracasso. Ataca Mercy, nas planícies de Nordlin-gen, obtendo uma vitória completa (3 de Agosto de 1645). O marechal Gramont chegou a ser capturado pelo inimigo, mas, por seu lado, o general Glen, que comandava sob as ordens de Mercy, caiu prisioneiro, figurando Mercy entre os mortos na peleja. Este general, considerado um dos maiores cabos de guerra, foi enterrado perto do campo de batalha, gravando-se no seu túmulo estas palavras: sta viator; heroem calcas (Pára, caminhante. Pisas um herói). Esta última batalha elevou Conde aos píncaros da glória e alicerçou a de Turenne, que teve a honra de ajudar poderosamente o príncipe a conquistar um triunfo no qual ele, Turenne, poderia ser humilhado. Talvez nunca fosse este último tão grande, como servindo desse modo àquele de quem se tornou depois emulo e vencedor.

O nome do duque d’Enghien eclipsava, então, todos os outros (7 de Outubro de 1646). Cercou ele, em seguida, Dunquerque, à vista do exército espanhol, e foi o primeiro a dar essa praça à França.

Tão grandes sucessos e serviços, menos recompensados do que suspeitos à corte, faziam-no temido pelo ministério, tanto quanto pelos inimigos. Retiraram-no do teatro de suas conquistas e de sua glória, e enviaram-no à Catalunha, com tropas medíocres e mal pagas. Cercou Lérida e viu-se obrigado a levantar o cerco (1647). Acusam-no, em alguns livros, de fanfarronadas, por ter aberto trincheiras com rabecas. Não se sabia que isso era, então, muito comum na Espanha.

Em breve, os negócios periclitantes forçaram a corte a chamar Conde a Flandres: o arquiduque Leopoldo, irmão do imperador Fernando III, cercava Lens, no Artois. Conde, restituído às suas tropas, sempre vencedoras sob suas ordens, levou-as ao encontro do arquiduque. Pela terceira vez, dava ele batalha com inferioridade numérica. Ao iniciar-se o combate, dirigiu aos soldados estas únicas palavras: "Amigos, lembrai-vos de Rocroy, Friburgo e Nordlingen".

(10 de Agosto de 1648). Desembaraçando, ele próprio, o marechal de Gramont, que se retraía com a ala esquerda, Conde envolveu o general Beck, capturando-o. O arquiduque salvou-se a muito custo, com o conde de Fuensal-dagne. Os imperiais e os espanhóis, componentes desse exéreito, dispersaram-se, depois de haverem perdido mais de cem bandeiras e trinta e oito peças de artilharia, perdas tidas, então, como realmente consideráveis. Tiveram cinco mil prisioneiros e três mil mortos. O resto desertou, ficando o arquiduque sem exército.

Os que desejam verdadeiramente instruir-se sobre esses factos, poderão observar que, depois da fundação da monarquia, jamais a França ganhara, consecutivamente, tantas e tão gloriosas batalhas pela conduta e pela coragem.

Enquanto o príncipe de Conde contava assim, pelas vitórias, os anos da sua mocidade, e o duque d’Orléans, irmão de Luís XIII, tinha também mantido a reputação de filho de Henrique IV e a da França, com a tomada de Gra-velines (Julho de 1644), de Courtrai e de Mardick (Novembro de 1644), o visconde de Turenne apoderava-se de Landau, expulsava os espanhóis de Trêves e ali restabelecia o eleitor.

(Novembro de 1647). Turenne ganhou também, juntamente com os suecos, a batalha de Lavingen e a de Sommer-shausen, e obrigou o duque de Baviera a abandonar seus Estados, à idade de quase oitenta anos (1645). O conde de Harcourt tomou Balaguer e derrotou os espanhóis, privando-os de Porto-Longone, na Itália (1646). Vinte navios e vinte galeras da França, que compunham quase toda a marinha restabelecida pelo cardeal Richelieu, bateram a frota espanhola na costa da Itália.

Não era tudo: as forças francesas tinham ainda invadido a Lorena, à frente de cujos destinos se achava o duque Carlos IV, príncipe guerreiro, mas inconstante, imprudente e infeliz, que se viu, a um só tempo, despojado dos seus

Estados pela França e retido prisioneiro dos Espanhóis (Maio de 1644). Os aliados da França acossaram os austríacos no meio-dia e ao norte: o duque de Albuquerque, general português, ganhou, contra a Espanha, a batalha de Badajós (Março de 1645); Torstenson desafiou os imperiais perto de Tabor e alcançou uma vitória completa; o príncipe dé Orange, à frente dos Holandeses, penetrou até o Brabante.

O rei da Espanha, batido de todos os lados, via o Rossilhão e a Catalunha nas mãos dos Franceses; Nápoles, revoltada contra ele, acabava de entregar-se ao duque de Guise, último príncipe desse ramo e pertencente a uma casa tão fecunda em homens ilustres e perigosos. O duque, tido já como simples aventureiro audacioso, porque nunca obtinha triunfos concretos, conseguiu pelo menos a glória de desembarcar sozinho, de um navio, no meio da frota espanhola, e defender Nápoles sem outros recursos que não sua coragem.

Ante tantas desgraças a caírem sobre a Casa d’Áustria, tantas vitórias acumuladas pelos Franceses e secundadas pelos sucessos dos seus aliados, acreditava-se que Viena e Madrid aguardavam apenas o momento de abrir suas portas aos conquistadores, e que o Imperador e o rei da Espanha já estavam privados de quase todos os seus Estados. Entretanto, cinco anos de glória, nublados apenas por alguns reveses, produziram poucas vantagens reais 10, muito sangue derramado e nenhuma revolução. Se tivéssemos a temer alguma, isso o seria pela França; chegara o país à beira da ruína, em meio a essas vantagens aparentes.

 

 

  • 1 Richelieu morreu no dia 4 de Dezembro de 1642, e Luís XIII em 14 de Maio de 1643.
  • 2 Trata-se de um dos dispositivos da Lei Sálica, segundo a qual só os descendentes masculinos têm o direito de sucessão à terra sálica.
  • 3 No capítulo CLXXVI do seu Ensaio sobre os costumes, Voltaire retifica esse julgamento, dizendo de Richelieu: "Resolveu ele… firmar o poderio e a glória da França no exterior e realizar o grande projecto de Henrique IV, fazendo guerra aberta à Casa d’Áustria, na Alemanha, na Itália, na Espanha…
  • 4 Um dos mais célebres generais da Guerra dos Trinta Anos. Combateu sob Gustavo Adolfo e tomou parte saliente na batalha de Lutzen, onde o monarca encontrou a morte.
  • 5 O grande Conde era neto de Henrique de Bourbon, príncipe de Conde, íalecido em 1558. Henrique de Bourbon era primo-irmão de Henrique IV.
  • 6 A batalha de Pavia foi perdida por Francisco I, em 24 de Fevereiro de 1525, e a de Saint-Quentin pelo condestável de Montmorcncy, em 1557.
  • 7 Guébriant (1602-1643), comandante-em-chefe do exército do Reno, forçou a passagem desse rio, a dez léguas de Coblença, e ganhou as batalhas de Wolfenbuttel (1641) e Kempen (1642), que lhe valeram o bastão de marechal. Morreu no ano seguinte a essa última vitória, em consequência dos ferimentos recebidos.
  • 8 Sierck, sobre o Mosela.
  • 9 Essa batalha foi travada três vezes: em 3, 5 e 9 de Agosto, e não no dia 31, como indica Voltaire.
  • 10 O horror visceral que lhe despertava a guerra, levava Voltaire a expressar-se dessa maneira; mas tais lutas concorreram para a assinatura dos tratados de Vestefália, em que foi assegurada a liberdade de consciência e dada à França situação de extraordinário relevo na Europa, sem falar na aquisição da Alsácia.

Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.

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