CORRESPONDÊNCIA DE VOLTAIRE – Cartas de Voltaire para vários destinatários.

DA

CORRESPONDÊNCIA DE VOLTAIRE

Cartas de Voltaire para vários destinatários.

RESPONDENDO ÀS PRIMEIRAS PROPOSTAS DE FREDERICO

Ao príncipe real da Prússia

Paris, 26 de Agosto de 1736.

SENHOR, seria preciso ser insensível para não ficar infinitamente comovido com a carta que Vossa Alteza Real dignou-se honrar-me. Meu amor-próprio foi muito lisonjeado; mas o amor ao género humano, que sempre tive no coração e que, ouso dizer, constitui meu carácter, deu-me um prazer mil vezes mais puro, ao ver que há no mundo um príncipe que pensa como homem, um príncipe filósofo em condições de tornar os homens felizes.

Permiti-me que vos diga não haver homem sobre a terra que não deva render graças pelo cuidado com que cultivais, pela sã filosofia, uma alma nascida para comandar. Acreditai não haver verdadeiramente bons reis senão aqueles que começaram, como vós, por instruir-se, conhecer os homens, por amar o verdadeiro, por detestar a perseguição e a superstição. Não há príncipe que, pensando dessa maneira, não seja capaz de fazer a idade de ouro nos seus Estados. Por que são poucos os soberanos a buscarem essa vantagem? Vós o sentis, senhor; é porque quase todos pensam mais na realeza do que na humanidade; vós fazeis precisamente o contrário. Ficai certo de que, se um dia o tumulto dos negócios e a maldade dos homens não alterarem tão divino carácter, sereis adorado pelo vosso povo e querido no mundo inteiro. Os filósofos dignos desse nome voarão para os vossos Estados, e, do mesmo modo que os artistas

famosos vêm em multidão para o país onde suas artes são mais favorecidas, os homens de pensamento virão colocar se em redor do vosso trono.

A ilustre rainha Cristina deixou seu reino para ir em busca das artes; reinai, senhor, e as artes virão à vossa procura.

Possais, vós nunca vos desgostar das ciências pelas querelas dos sábios! Estais vendo, senhor, pelas coisas que vos dignais comunicar-me, que eles são, na sua maioria, homens como os próprios cortesãos. São, por vezes, tão cobiçosos, tão intrigantes, tão falsos, tão cruéis; e toda a diferença existente entre as pestes da corte e as pestes da escola está em serem as últimas mais ridículas.

Não saberei agradecer suficientemente a Vossa Alteza Real pela bondade que teve de enviar-me o opúsculo concernente a Wolff1. Considero suas ideias metafísicas como coisas capazes de honrar o espírito humano; são clarões dentro da noite profunda. É tudo quanto se pode esperar, creio eu, da metafísica. Não há indício de os primeiros princípios das coisas serem jamais conhecidos. Os camondongos que habitam pequenos buracos num imenso edifício não sabem, nem se o edifício é eterno, nem quem foi o arquitecto, nem por que o arquitecto o construiu. Tratam de conservar a vida, de povoar os buracos e de escapar aos animais destruidores que os perseguem. Somos os camondongos, e o divino arquitecto que construiu este universo não revelou ainda, que eu saiba, seu segredo a nenhum de nós. Se alguém pode pretender adivinhar alguma coisa, esse alguém é Wolff. Pode-se combatê-lo, mas é forçoso estimá-lo: sua filosofia está longe de ser perniciosa. Haverá algo de mais belo e mais sensato do que dizer, como ele faz, que os homens devem ser justos, mesmo quando têm a infelicidade de professar o ateísmo?

A protecção que pareceis dar a esse sábio, senhor, é uma prova da sabedoria do vosso espírito c da humanidade dos vossos sentimentos.prova da sabedoria do vosso espírito c da humanidade dos vossos sentimentos.

1 Filósofo alemão, autor do Tratado sobre Deus, a alma e o mundo. Nasceu em 1679 e faleceu em 1754.

Tivestes a bondade de prometer enviar-me o Tratado sobre Deus, a alma e o mundo. Que belo presente, senhor, e que maneira admirável de entreter relações! O herdeiro de uma monarquia digna-se, do recesso de seu palácio, enviar instruções a um solitário! Dignai-vos a fazer-me esse pre-sente, senhor; meu amor extremo pela verdade é a única coisa que dele me torna merecedor. A maioria dos príncipes receia ouvir a verdade, e sereis vós quem haverá de ensiná-la.

Com relação aos versos de que me falais, vejo que pensais sobre esta arte tão sensatamente quanto sobre tudo o mais. os versos que não ensinam aos homens verdades novas e tocantes não merecem ser lidos. Acreditais que não haveria nada de mais desprezível do que passar a vida a encerrar entre rimas lugares-comuns já muito batidos, que não merecem ser chamados pensamentos. Se há coisa vil, é não ser-se mais que poeta satírico e escrever-se somente para desacreditar os outros. Tais poetas representam no Parnaso o mesmo que representam nas escolas os doutores que sabem apenas manejar palavras e cabalam contra os que escrevem coisas.

Se a Henriade logrou não desagradar Vossa Alteza Real, disso devo render graças ao amor à verdade, ao horror que meu poema inspira aos facciosos, aos perseguidores, aos supersticiosos, aos tiranos e aos rebeldes. É a obra de um homem honesto; tinha de ser bem acolhida por um príncipe filósofo.

Ordenais que eu vos envie minhas outras obras; obedecer-vos-ei, meu senhor; sereis meu juiz e me fareis as vezes de público. Submeterei à vossa apreciação o que tentei em filosofia; vossas luzes serão a minha recompensa; é um prémio que poucos soberanos podem dar. Confio na vossa discrição; vossa virtude deve igualar os vossos conhecimentos.

Considerarei uma felicidade muito preciosa poder ir render minhas homenagens a Vossa Alteza Real. Vai-se a

Roma para ver as igrejas, os quadros, as ruínas, os baixos–relevos. Um príncipe como vós merece muito mais que uma viagem: é uma raridade mais maravilhosa. Todavia, a amizade que me retém no retiro em que me encontro não me permite dele sair. Pensais, sem dúvida, como Juliano2, esse grande homem tão caluniado, que dizia que os amigos devem ser preferidos aos reis.

Podeis estar certo, senhor, de que, em qualquer recanto do mundo que eu termine os meus dias, voltarei continuamente os olhos para vós, isto é, para a felicidade de todo um povo. Meu coração estará sempre entre os vossos súbditos; vossa glória me será sempre cara. Desejo que vos assemelheis sempre a vós mesmo e que os outros soberanos se pareçam convosco.

Sou, com profundo respeito, de Vossa Alteza Real, muito humilde, etc.

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