- RESPONDENDO ÀS PRIMEIRAS PROPOSTAS DE FREDERICO
- HUMILDE DECLARAÇÃO DE ORTODOXIA
- DEPOIS DA APRESENTAÇÃO DOS PRIMEIROS CAPÍTULOS DO "SÉCULO DE LUÍS XIV" — PONTOS DE VISTA SOBRE HISTÓRIA
- JUSTIFICAÇÃO DO TÍTULO "SÉCULO DE LUÍS XIV" DADO AO SÉCULO XVII
- SOBRE O CÓMICO DE MOLIÈRE
- ELOGIO DE MONTAIGNE
- CARTA DE CONSOLO POR UMA CRÍTICA MALÉVOLA
- A LARANJA E O BAGAÇO
- A LEITURA DAS BOAS OBRAS
- ESCOLHA DE LEITURA PARA UMA LIVRE-PENSADORA
- A CANDIDATURA DE DIDEROT À ACADEMIA
- APOLOGIA DOS FILÓSOFOS
JUSTIFICAÇÃO DO TÍTULO "SÉCULO DE LUÍS XIV" DADO AO SÉCULO XVII
A milord Hervey, ministro da Justiça da Inglaterra
1740.
Não julgueis, peço-vos, o meu Essai sur le Siècle de Louis XIV pelos dois capítulos impressos na Holanda, com tantos lapsos que tornam a obra ininteligível. Sobretudo, não vos zangueis tanto comigo por haver eu chamado o
último século, o século de Luís XIV. Bem sei que Luís XIV não teve a honra de ser nem o soberano nem o benfeitor de um Bayle, de um Newton, de um Halley, de um Addison, de um Dryden; mas no século que se denomina de Leão X, foi esse papa Leão X o autor de tudo? Não houve outros príncipes que contribuíram para ilustrar e esclarecer o género humano? Entretanto, o nome de Leão X prevaleceu por ter ele encorajado as artes mais do que qualquer outro. E que rei, pois, nesse sentido, prestou maior serviço à humanidade do que Luís XIV? Que rei espalhou mais benefícios, manifestou melhor gosto e destacou-se pela construção dos mais belos edifícios? Não fez ele tudo que podia fazer, sem dúvida porque era homem; fez, porém, mais do que (malquer outro, porque era um grande homem. Mais forte motivo para estimá-lo é que, com os seus erros conhecidos, ele conquistou maior reputação do que todos os seus contemporâneos; é que, apesar do milhão de homens de que privou a França °, todos interessados em torná-lo malquisto entre os outros povos, a Europa inteira o estima e o coloca na classe dos maiores e dos melhores monarcas.
Citai, pois, milord, um soberano que haja atraído mais estrangeiros competentes à sua corte e que mais tenha estimulado o mérito de seus súbditos. Sessenta sábios da Europa receberam, a um só tempo, recompensas dele, surpreendidos de serem por ele conhecidos. "Embora o rei não seja vosso soberano, — escreveu-lhes Colbert — quer ser vosso benfeitor; encarregou-me de vos enviar a letra de câmbio anexa à presente, como um penhor de sua estima". Um boémio, um dinamarquês7, recebiam essas cartas datadas de Versalhes. Guglielmini 8 construiu uma casa em Florença, graças aos favores de Luís XIV, e pôs o nome do soberano na
fachada da mesma; e vós não quereis que ele esteja no pórtico do século de que falo!
6 Alusão aos protestantes que emigraram em consequência da revogação do Édito de Nantes.
7 Roemer, astrónomo dinamarquês, levado para a França por Picard e encarregado de ensinar ao Delfim as ciências matemáticas ; autor de importantes descobertas.
8 Matemático e sábio italiano.
O que ele fez no seu reinado deve servir para sempre de exemplo. Encarregou da educação do filho e do neto os mais eloquentes e os maiores sábios da Europa, e dignou-se colocar três filhos de Pierre Corneille, dois nas tropas e o outro na Igreja; estimulou o talento nascente de Racine com um presente considerável para um jovem desconhecido e sem fortuna; e quando esse génio se aperfeiçoou, seus méritos, desses que frequentemente excluem a fortuna, fizeram a dele. Racine teve mais do que a ajuda financeira, teve o favor e por vezes a familiaridade do soberano, cujo simples olhar já constituía um benefício; figurou, em 1688 e 1689, nessas viagens a Marly, tão disputadas pelos cortesãos; deitava-se nos aposentos do rei quando enfermo e lia-lhe as obras-primas de eloquência e poesia que adornam esse belo reinado.
Tais favores, concedidos com discernimento, eis o que produz a emulação e inflama os grandes génios. É muita coisa erguer edificações; alguma coisa mantê-las; mas ater-se apenas a elas é, frequentemente, preparar os mesmos asilos para o homem inútil e para o homem que se destaca entre os seus semelhantes; é receber na mesma colmeia a abelha e o zangão.
Luís XIV tinha a atenção voltada para tudo; protegia as academias e premiava os que nelas se distinguiam. Não prodigalizava favores a um género de mérito com exclusão dos outros, como tantos príncipes que favorecem, não o que é bom, mas o que lhes agrada. A física e o estudo da antiguidade despertaram-lhe a atenção, uma atenção que não se enfraquecia nem mesmo durante as guerras que teve de sustentar contra a Europa, pois, enquanto construía trezentas cidadelas e punha em marcha quatrocentos mil soldados, erguia o Observatório e promovia o traçado de um meridiano de um extremo a outro do reino, obra única no mundo; fazia imprimir no seu palácio as traduções dos autores gregos e latinos; enviava geómetras e físicos aos confins
da África e da América, em busca de novos conhecimentos Atentai bem, milord: sem a viagem e as experiências dos que ele enviou a Caiena, em 1672, e sem os trabalhos de Picard, Newton não teria feito as descobertas sobre a atracção universal. Atentai, peço-vos, para um Cassini 9 e um Huygens 10, renunciando ambos à pátria que honraram, para se instalarem na França e gozarem da estima e dos favorei de Luís XIV. E imaginais que os próprios Ingleses não lhe devem obrigações? Dizei-me, peço-vos, em que corte Carlos II adquiriu tanta polidez e tanto gosto? Os bons autores de Luís XIV não foram vossos modelos? Não foi neles que o vosso sábio Addison, o homem de gosto mais apurado em vossa nação, inspirou-se para suas excelentes críticas? O bispo Burnet confessa que o bom gosto adquirido na França pelos cortesãos de Carlos II reformou, entre vós, até o púlpito, apesar da diferença de nossas religiões, de tal maneira a sã razão em toda parte impera. Dizei-me se os bons livros dessa época não serviram à educação de todos os príncipes do Império. Em que cortes da Alemanha não se via o teatro francês? Que príncipe não procurava imitar Luís XIV? Que nação não seguia, então, as modas da França?
Vós me apresentais, milord, o exemplo do czar Pedro, o Grande, que fez nascer as artes no seu país e é o criador de uma nação nova, e dizeis que, entretanto, seu século não será chamado na Europa o século do czar Pedro, concluindo daí que não devo chamar o século passado de século de Luís XIV. Parece-me bem palpável a diferença. O czar Pedro instruiu-se entre os outros povos e levou a arte deles para a Rússia; mas Luís XIV instruiu as nações; tudo, até mesmo suas próprias faltas, lhes foi útil. Os protestantes, ao deixarem seus Estados, levaram, para vossa terra mesmo, uma indústria que fazia a riqueza da França. Contais como nada tantas manufacturas de seda e de cristais? Estes últimos, sobretudo, foram aperfeiçoados, entre vós, pelos nossos refugiados, e perdemos assim o que adquiristes.
9 Célebre astrónomo que Colbert atraiu à França, onde tornou-se membro da Academia de Ciências, notabilizando-se por importantes descobertas.
10 Sábio holandês (1629-1695), que veio para a França em 1665, onde permaneceu pelo espaço de vinte anos, até a revogação do Édito de Nantes. Distinguiu-se por notáveis descobertas no campo da astronomia.
Enfim, a língua francesa, milord, tornou-se quase a língua universal. A quem devemos isto? Estava ela tão divulgada no tempo de Henrique IV? Não, sem dúvida; não se conhecia mais que o italiano e o espanhol. Foram os nossos excelentes escritores que realizaram essa transformação. E quem protegeu, empregou, encorajou os bons escritores? Foi Colbert, direis. Confesso e reconheço que o ministro deve compartilhar da glória do soberano. Mas que teria feito Colbert sob um outro príncipe, sob o vosso rei Guilherme, que nada apreciava, sob o rei da Espanha, Carlos II, sob tantos outros soberanos?
Não acreditais, milord, que Luís XIV reformou o gosto de sua corte em mais de um terreno? Escolheu Lulli11 para seu músico, retirando o privilégio a Cambert, porque Cam-bert era um homem medíocre e Lulli um homem superior. Sabia distinguir o génio; fornecia a Quinault o tema para suas óperas; dirigia os trabalhos de pintura de Le Brun; apoiava Boileau, Racine e Molière contra os inimigos; incentivava tanto as artes práticas, como as belas-artes, e sempre com conhecimento de causa; emprestava dinheiro a Van Robais para estabelecer manufacturas; adiantava milhões à Companhia das índias, por ele próprio organizada; concedia pensões aos sábios e a bravos oficiais. Não somente se faziam grandes coisas no seu reino; ele próprio as fazia. Permiti, pois, milord, que eu trate de erigir à sua glória um monumento que consagro antes à utilidade do género humano.
Não considero tanto Luís XIV apenas por ter cumulado de benefícios os Franceses, mas por ter feito bem aos homens em geral; é como homem, e não como súbdito, que escrevo; quero retratar o século passado e não simplesmente umpríncipe. Estou farto das histórias em que só se trata das aventuras de um rei, como se ele existisse sozinho ou nada mais existisse senão o que com ele se relaciona; numi palavra, é mais a história de um grande século, do que a deum grande rei, a que escrevo.
11 Célebre músico, tendo composto inúmeras óperas e colaborado com Molière na criação da música de várias comédias. Distinguiu-se também na música sacra.
Pellisson tê-la-ia escrito com muito maior eloquência; mal era cortesão e pago; não sou nem uma coisa nem outra; é a mim que compete dizer a verdade.
Espero que encontreis nessa obra, milord, alguns dos vossos sentimentos; quanto mais eu pensar como vós, mais terei o direito de esperar a aprovação pública.