Cap. 11 – Fenomenologia do Conhecimento – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XI

FENOMENOLOGIA DO CONHECIMENTO

75.
PRIORIDADE DA TEORIA DO CONHECIMENTO NO IDEALISMO. — 76. NECESSIDADE DE UMA
DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA DO CONHECIMENTO. — 77. SUJEITO COGNOSCENTE E OBJETO
CONHECIDO: SUA CORRELAÇÃO. — 78. O PENSAMENTO. — 79. A VERDADE. 80 — RELAÇÕES DA TEORIA DO    CONHECIMENTO    COM   A   PSICOLOGIA,    A   LÓGICA  
E    A   ONTOLOGIA.

75.  
Prioridade da teoria  do conhecimento no idealismo.

A
atitude idealista no problema metafísico é realmente tão difícil, tão insólita,
tão fora dos caminhos habituais de nossa apresentação ante o mundo, que convém
novamente insistir sobre a necessidade de acomodar nossa maneira de pensar a
essa insólita, difícil e antinatural atitude.


vimos que precisamente por ser antinatural, por ir contra as inclinações
espontâneas do homem, é uma atitude que não pôde ser tomada nos começos da
história do pensamento humano, mas teve que sobreviver como reação perante a
atitude natural. E assim essa reação substituiu a forma ingênua de lançar-se
sobre o ser das coisas, sendo aquela reação uma forma reflexiva, uma cautela,
uma prudência que faz com que antes de colocar propriamente o problema
metafísico de: quem é o ser? nos vejamos obrigados a certos trâmites prévios,
a certos esclarecimentos prévios com referência à própria atitude que estamos
tomando.

Essa
atitude reflexiva, que é o idealismo, consiste, pois, em deter a marcha
espontânea do pensamento, que anseia por lançar-se sobre as coisas para
captá-las, defini-las e voltar o pensamento sobre si mesmo. E por que sobre si
mesmo? Eis porque o "si mesmo" do pensamento é o mais imediato que o
pensamento tem. O mais imediatamente "mesmo" é o pensamento mesmo.
Por isso a atitude idealista consiste em afastar a vista das coisas e em
pousá-la sobre o pensamento das coisas. Visto que às coisas não chegamos senão
através do pensamento, o pensamento delas é para nós mais próximo; não somente
mais próximo, mas é nós mesmos pensando. Isto é o que expressávamos nas lições
anteriores, fazendo ver que a dúvida cartesiana pode impunemente fazer mossa
com toda tranqüilidade sobre os objetos do pensamento; porém, que uma vez
detida na metade do caminho, antes de chegar aos objetos; uma vez concentrada
no ato mesmo de pensar, a dúvida já não pode fazer entalhe nesta nova realidade
e tem que se render, e então o imediato do pensamento aparece como o existente
em si. Mas, como entre o pensamento e o eu não existe, ao que parece, nenhum
interstício diferencial, a atitude idealista há de começar necessariamente
pela afirmação da existência do eu pensante.

Qual
é a conseqüência dessa insólita atitude, deste giro do pensar sobre si mesmo,
deste estilo que não sem razão foi comparado com o barroco nas artes? A
conseqüência é que os objetos do pensamento se tornam agora problemáticos;
tornam-se problemas. O que antes, no realismo, era dado — as coisas — agora já
não são dadas, já não são postas; agora se tornam problemas, propostas,
questões e esforços que o pensamento faz para sair de si mesmo.

Todas
essas reflexões, todo esse conjunto de trâmites prévios, consideremo-los
agora, por assim dizer em bloco e de fora. E que impressão nos produzem? Pois
nos produzem a impressão inevitável de que aí, .em todos esses trâmites
prévios, se escondem questões de psicologia. Em todos esses trâmites, em todas
essas reflexões, trata-se umas vezes do pensamento como vivência do eu; do eu
como aquele que vive os pensamentos. Isto é psicologia pura. Outras vezes se
trata do objeto pensado pelo pensamento e da existência ou não do objeto
pensado pelo pensamento; se o pensamento que pensa é verdadeiro ou não é
verdadeiro; se esse pensamento, considerado esta vez não como vivência do eu,
mas como enunciação de algo, é um pensamento que se refere a um objeto real ou
não se refere a objeto real nenhum. Neste segundo caso são questões de lógica e
ontologia as que estão propriamente fundidas em todas estas reflexões.

Por
conseguinte, se sairmos desse complexo em que nos encontramos e olharmos um
pouco de fora, que haveremos de dizer? Haveremos de dizer que a posição, que a
atitude idealista implica necessariamente em que a filosofia se inicia por uma
reflexão lógica e psicológica acerca dos pensamentos e dos seus objetos. Mas
tudo isto podemos expressá-lo muito mais brevemente: todo pensamento que pensa
um objeto pretende expressar aquilo que o objeto é, ou seja, pretende conhecer
o objeto. Nossos pensamentos dos objetos são conhecimentos deles. Por
conseguinte, diremos que na raiz mesma, na definição mesma da atitude, da
posição idealista, está implícito necessariamente que ela tenha de começar por
uma teoria do conhecimento. Esta teoria do conhecimento poderá ser mais
predominantemente psicológica ou mais preponderantemente lógica; atenderá
talvez preferencialmente aos pensamentos como vivências do eu, ou aos pensamentos
como enunciados do objeto. Mas, em todo caso, sempre o idealismo anteporá a
qualquer outra questão ulterior uma teoria do conhecimento.

E,
com efeito, assim é historicamente. As primeiras meditações de Descartes, as
que antecedem à demonstração da existência de Deus, são já uma teoria do
conhecimento. E se refletimos que essas primeiras meditações de Descartes não
são senão a exposição, em termos preferentemente populares e acessíveis a todo
o mundo, de outras reflexões expostas muito mais amplamente nas Regras para a
direção do espírito — obra de sua mocidade que não foi publicada até depois de
sua morte —, então resulta mais evidente ainda que no próprio Descartes, o
problema metafísico não é abordado senão depois de uma preparação mais ou
menos minuciosa do problema da teoria do conhecimento, ou, como se costuma
dizer, epistemológico. E depois de Descartes, os filósofos que o seguem sentem
com uma clareza total e completa essa necessidade inerente ao idealismo de
explicar-se antes acerca do conhecimento, das suas origens, dos seus limites,
de suas possibilidades. John Locke, o primeiro filósofo de quem se diz que
constrói uma teoria do conhecimento, no seu Tratado sobre o entendimento
humano, propõe-se explicitamente a fazer uma teoria do conhecimento humano; a
estudar as origens das idéias, dos pensamentos; a ver se às idéias correspondem
ou não correspondem impressões e realidades efetivas; a analisar as diversas
idéias complexas e ver como se derivam das simples. Todos esses problemas de
teoria do conhecimento, de origem, limites e possibilidade do conhecimento
humano, constituem o âmago do livro de Locke.

Mas,
depois deste, outros filósofos ingleses seguem exatamente o mesmo rumo, e
também antes de mais nada, antes de passar a qualquer afirmação ou negação do
problema metafísico, levantam o problema do conhecimento; num sentido mais ou
menos psicológico — esta é outra questão — mas o levantam. Assim, Berkeley,
antes de expor sua metafísica espiritualista, levanta e resolve o problema do
conhecimento; e Hume, antes de propor sua não-metafísica, sua oposição a
qualquer metafísica, ou, por assim dizer, seu positivismo, também levanta e
resolve os problemas fundamentais do conhecimento. Na filosofia continental
ocorre exatamente o mesmo, com uma única exceção que é o filósofo Espinosa;
porém, dessa única exceção poderia dar-se também causa. Os demais, Leibniz,
Kant, propõem primeira e primordialmente a questão do conhecimento. Leibniz
escreve seu primeiro e grande livro como polêmica e resposta ao livro de Locke
sobre o entendimento humano, e os três grandes livros de Kant — Crítica da
Razão pura, Crítica da Razão prática, Crítica do Juízo — não são senão a forma
mais completa e perfeita que na filosofia moderna tomou a teoria do
conhecimento.

Assim
é que nos encontramos agora, em nossa excursão pelo campo da metafísica, ante a
necessidade de nos determos, de pararmos. Chegamos, em nossa excursão pelo
campo da metafísica, ao ponto de encontro com o idealismo. O realismo produziu
tudo o que podia produzir com a metafísica de Aristóteles. Depois teve que
surgir, necessariamente, por uma necessidade histórica que já expus, essa mudança
de ponto de vista, essa nova atitude difícil e insólita que chamamos
idealismo. Mas acontece que esta atitude necessita, para poder desenvolver-se
nos problemas metafísicos, elaborar previamente uma teoria do conhecimento.
Para seguirmos, pois, essas teorias1 do conhecimento, que são os
pórticos de tantas outras metafísicas modernas, necessitamos de valer-nos de
instrumentos que ainda não temos; necessitamos fazer uma pausa, um alto em
nossa excursão pela metafísica, e antes de continuarmos nossa marcha adquirir
instrumentos mentais que nos permitam entender os novos trâmites que o pensamento
idealista antepõe a qualquer metafísica.

76.  
Necessidade de uma descrição fenomenológica do conhecimento.

Estes
prolegômenos a toda metafísica são, pois, necessários. Vamos nos deter e
perguntar a nós mesmos, independentemente de qualquer história da filosofia e
independentemente de qualquer problema metafísico: o que é o conhecimento?
Esta pergunta não deve ser mal entendida. Seria entendê-la mal se se
acreditasse que se responde a ela com uma teoria do conhecimento. Não. Quando
eu digo: o que é o conhecimento? não quero dizer que pergunte pelas estruturas
totais do conhecimento, em todas suas ramificações, e pelas respostas aos
problemas que essas estruturas apresentam. Não. Quero simplesmente dar a entender
com essa pergunta que vamos descrever por assim dizer, de fora, o objeto
"conhecimento", o fenômeno "conhecimento". Vamos ver que é
este objeto e que é este fenômeno enquanto se distingue de outros objetos e de
outros fenômenos; não para estudá-lo no seu cerne e para extrair dele os
problemas que apresenta e as soluções que possamos lhes dar, mas para
designá-lo univocamente, para que saibamos de que vamos falar; para que
possamos traçar o perfil desse fenômeno ao qual vamos ter que referir-nos constantemente.
Por conseguinte, a resposta que peço à pergunta: o que é o conhecimento? não é
resposta teórica, mas uma mera e simples descrição fenomenológica. Vamos
empreender agora a descrição fenomenológica do conhecimento.

Não
quisera eu que esta palavra "fenomenológico" produzisse receio ou
temor algum. A única coisa que esta palavra quer significar é que nós
destacamos o "conhecimento" de todas as suas contingencialidades
históricas, de todas as suas relações existenciais ou não existenciais; que nós
o colocamos entre aspas. Cortamos toda relação entre o conhecimento e quaisquer
peculiaridades ou particularidades das existências, ou seja, dos conhecimentos
particulares e especiais. Não vamos nos referir nem ao conhecimento que é a
física de Aristóteles, nem ao conhecimento que é a física de Newton, nem ao conhecimento
que é a física de Einstein, nem à biologia, nem às matemáticas, nem aos
problemas históricos que apresenta o conhecimento; nem sequer vamos nos
referir à possibilidade de que exista isso que se chama conhecimento, ou que
não exista; nem tampouco vamos nos referir sequer à existência de conhecimento.
Simplesmente vamos tentar descrever o que queremos dizer quando pronunciamos
a palavra "conhecimento".

Haja
ou não conhecimentos no mundo, tenha ou não havido conhecimentos, possa ou não
havê-los inclusive, sejam eles ou não possíveis, nós queremos dizer algo quando
dizemos "conhecimento". Kste algo, colocado entre aspas,
independentemente de que exista ou não exista e até de que seja possível ou não
possível, sem entrar nessa questão, vamos ver que quer dizer, o que é que nós
nomeamos, mencionamos,  a  que  aludimos,  quando  dizemos  a  palavra 
"conhecimento". Pois bem; a este isolamento de um fato, de uma
significação, a este isolamento de algo cujas amarras com o resto da realidade
cortamos, cujos problemas existenciais deixam de nos interessar; a esse algo
entre aspas, é ao que eu chamo "fenômeno". E então a descrição desse
algo, cortadas assim as amarras com a realidade, a historicidade, a
existencialidade e até possibilidade, a descrição desse algo tornado assim puro
fenômeno, chamo-a descrição fenomenológica. É uma denominação bem clara e bem
exata naquilo que ela quer significar. Vamos, pois, tentar uma descrição
fenomenológica do conhecimento.

77.  
Sujeito cognoscente e objeto conhecido: sua correlação.

Encontramos
como primeiros elementos no conhecimento do sujeito pensante, o sujeito
cognoscente e o objeto conhecido. Todo conhecimento, qualquer conhecimento, há
de ser de um sujeito sobre um objeto. De modo que o par: sujeito cognoscente —
objeto conhecido, é essencial em qualquer conhecimento. Esta dualidade do
objeto e do sujeito é uma separação completa; de maneira que o sujeito é sempre
o sujeito e o objeto sempre o objeto. Nunca pode fundir-se o sujeito no objeto
nem o objeto no sujeito. Se se fundissem, se deixassem de ser dois, não haveria
conhecimento. O conhecimento é sempre, pois, essa dualidade de sujeito e
objeto.

Mas
essa dualidade é ao mesmo tempo uma relação. Não se deve entender, não podemos
entender essa dualidade como a dualidade de duas coisas que não têm entre si a
menor relação. Vamos tentar ver agora em que consiste esta relação entre o
sujeito cognoscente e o objeto conhecido.

Esta
relação aparece-nos em primeiro termo como uma correlação, como uma relação
dupla, de ida e de volta, que consiste em que o sujeito é sujeito para o objeto
e em que o objeto é objeto para o sujeito. Do mesmo modo que nos termos, que os
lógicos chamam correlativos, a relação consiste em que não se pode pensar um
sem o outro, nem este sem aquele; assim os termos sujeito e objeto do
conhecimento são correlativos. Assim como a esquerda não tem sentido nem
significa nada, se não é por contraposição à direita, e a direita não significa
nada, se não é por contraposição à esquerda; assim como o acima não significa
nada se não é por contraposição ao abaixo; e pólo Norte não significa nada se
não por contraposição ao pólo Sul; do mesmo modo, sujeito, no conhecimento não
tem sentido senão por contraposição ao objeto, e objeto não tem sentido senão
por contraposição ao sujeito. A relação é, pois, uma correlação.

Mas,
ademais, esta correlação é irreversível. As correlações que antes citei como
exemplo são reversíveis. A esquerda se torna direita quando a direita se torna
esquerda;  o acima se torna abaixo quando

o
abaixo se torna acima. Porém, o sujeito e o objeto são irreversíveis.

Não
existe possibilidade de que o objeto se torne sujeito ou que o sujeito se torne
objeto. Não há reversibilidade.

Mas
podemos chegar mais ao fundo dessa relação entre o sujeito e o objeto. Esta
relação consiste em que o sujeito faz algo. E o que é que faz o sujeito? Faz
algo que consiste em sair de si para o objeto, para captá-lo. Esse apossar-se
do objeto não consiste, porém, em tomar o objeto, segurá-lo e metê-lo dentro do
sujeito. Não. Isso acabaria com a correlação. O que faz o sujeito ao sair de
si mesmo para tornar-se dono do objeto é captar o objeto mediante um pensamento.
O sujeito produz um pensamento do objeto. Vista a relação do outro lado,
diremos que o objeto vai para o sujeito, se entrega ao sujeito, não na
totalidade do sujeito, mas em forma tal que produz uma modificação no sujeito,
uma modificação na totalidade do sujeito, modificação que é o pensamento. De
modo que agora temos um terceiro elemento na correlação do conhecimento. Já não
temos somente o sujeito e o objeto, mas agora temos também o pensamento; o
pensamento, que, visto do sujeito é a modificação que o sujeito produziu em si
mesmo ao sair do objeto para apossar-se dele, e visto do objeto é a modificação
que o objeto, ao entrar, por assim dizer, no sujeito, produziu nos pensamentos
deste.

78.  
O pensamento.

Assim,
pois, diremos que o objeto determina o sujeito e que esta determinação do
sujeito pelo objeto é o pensamento. Mas, guarde-mo-nos muito bem de julgar esta
atitude receptiva do sujeito como uma total e completa passividade. Não é que o
sujeito se deixe passivamente imprimir o pensamento pelo objeto, antes o
sujeito atua também; sai de si para o objeto, vai ao encontro do objeto; é
também ativo. Mas sua atuação, a atividade do sujeito, não recai sobre o
objeto. O objeto permanece intacto dessa atividade do sujeito. O que acontece
é que o sujeito, ao ir para o objeto, produz o pensamento. O pensamento é,
pois, produzido por uma ação simultânea do objeto sobre o sujeito e do sujeito
ao querer ir para o objeto.

A
atividade do sujeito não é incompatível com a receptividade do mesmo sujeito,
visto que esta atividade recai sobre o pensamento. Temos, pois, que o objeto
pode dizer-se e chamar-se transcendente com respeito ao sujeito. O objeto é
transcendente com respeito ao sujeito, e o é tanto se se tratar de um objeto
dos chamados reais — como este copo ou esta lâmpada — como se se tratar do
objeto chamado ideal, como o triângulo ou a raiz quadrada de 3, porque, tanto
num caso como no outro, o objeto aparece para o sujeito como algo que tem em si
mesmo suas próprias propriedades e que essas propriedades não são no menor
grau aumentadas ou diminuídas, ou mudadas, ou desgastadas pela atividade do
sujeito que quer conhecê-las. É, pois, na realidade, uma atividade que consiste
em ir para o objeto, expor-se diante dele, para que este por sua vez envie suas
propriedades ao sujeito e do encontro resulte o pensamento. Por conseguinte,
neste sentido, o objeto é sempre, em todo caso, transcendente ao sujeito.

E
agora talvez se me pergunte: como pode tornar-se compatível esta transcendência
do objeto com a necessária correlação entre sujeito e objeto? Não dizíamos
antes que o objeto e o sujeito são cor relativos e que o sujeito é sujeito para
o objeto e que o objeto é objeto para o sujeito, como a esquerda e a direita se
condicionam mutuamente entre si? Agora, ao contrário, dizemos que o objeto é transcendente
e que é aquilo que é independentemente de ser ou não ser conhecido pelo
sujeito. Parece que aqui há uma contradição. Mas não há tal contradição, porque
o objeto é transcendente para a totalidade da relação de conhecimento; é
transcendente enquanto que a relação de conhecimento o considera como
transcendente. Porém, em si e por si, — metafisicamente falando — o objeto não
é objeto para o sujeito senão enquanto começa pelo menos a ser conhecido. O
objeto que não seja objeto para um sujeito, não é objeto. Será o que for, mas
não será problema para o conhecimento, não constituirá elemento algum do
conhecimento. Uma vez que entrou na correlação de ser o objeto para mim,
sujeito, e de ser eu sujeito enquanto que penso este objeto; uma vez estabelecida
já a correlação, o objeto, dentro já da correlação, é transcendente, porque é
irreversível esta correlação, e porque o objeto não pode penetrar nunca dentro
do sujeito, antes permanece sempre à distância, mediatizado pelo pensamento.

79.  
A verdade.

O
último elemento do conhecimento que se propõe à nossa descrição fenomenológica
é então o d? verdade do conhecimento. Neste caso a verdade do conhecimento
consiste em que o conhecimento concorde com o objeto; ou, melhor dito, consiste
em que na relação do conhecimento, o pensamento formado pelo sujeito em vista
do objeto concorde com o objeto. Esta concordância do pensamento com 0 objeto
foi e é muitas vezes considerada na filosofia, por muitos pensadores como
critério da verdade. Mas se prestarmos atenção, se atendermos bem à descrição
que acabamos de fazer do fenômeno conhecimento, notaremos que esta concordância
do pensamento com o Objeto não é critério da verdade, mas é a definição da
verdade. Não d a pedra de toque por meio da qual se descobre se um conhecimento
é verdadeiro ou não, antes é aquilo em que consiste que um conhecimento seja
verdadeiro. É a essência mesma da verdade, a definição mesma da verdade.
Verdadeiro conhecimento é o conhecimento verdadeiro. Não há verdadeiro
conhecimento senão o conhecimento verdadeiro. Isto quer dizer que o
conhecimento falso não é conhecimento. Quando o conhecimento não concorda com a
coisa, não é que tenhamos um conhecimento falso: é que não temos conhecimento.
O conhecimento que diremos verdadeiro conhecimento, o autêntico conhecimento é
o conhecimento verdadeiro, e o conhecimento verdadeiro é aquele no qual o
pensamento concorda com o Objeto.

Ora,
que critério pode aplicar-se para ter a certeza de que o pensamento concorda,
com efeito, com o objeto? Esse é um problema que não está compreendido dentro
da descrição fenomenológica 00 conhecimento. Um dos problemas que a teoria do
conhecimento terá que propor e solucionar é aquele de saber quais são os
critérios, as maneiras, os métodos de que se pode valer o homem para ver se um
conhecimento é ou não verdadeiro. Mas se é verdadeiro, então o ser verdadeiro
consiste em que o pensamento coincide com o objeto, e se não é verdadeiro, ou
seja, se não é conhecimento, é que o pensamento não coincide nem concorde com
o objeto.

Por
conseguinte, é preciso ir-se acostumando a não considerar que a coincidência do
pensamento com o objeto seja critério da verdade, antes que é a verdade mesma,
é aquilo em que consiste a verdade. Critério, em troca, ou seja, modo, método
para descobrir se um conhecimento é verdadeiro, isso poderá havê-lo de
diferentes classes e espécies ou talvez não haver nenhum. Se existem, e quais
sejam, descobri-lo-á oportunamente a teoria do conhecimento.

80.  
Relações da teoria do conhecimento com a psicologia, lógica e ontologia.

Esta
descrição fenomenológica do conhecimento revela-nos clarissimamente que o
conhecimento confina com três territórios limítrofes. Há três territórios
limítrofes com o conhecimento, que são: a psicologia, a lógica e a ontologia.
Com efeito, se o conhecimento é correlação de sujeito-objeto, mediando o
pensamento, o conhecimento toca na psicologia, porque a psicologia trata do
sujeito e do pensamento como vivência do sujeito. Se o conhecimento é esta
correlação sujeito-objeto, mediando o pensamento, limita também com a lógica,
porque a lógica trata dos pensamentos como enunciados, como enunciações, não
enquanto vivências, não enquanto são vivências de um eu, mas enquanto são
vivências que enunciam, que dizem algo de um objeto. As leis, as normas
internas dessas enunciações, desses enunciados, disso que se diz de algo, são
as leis da lógica. A lógica limita, pois, também com o conhecimento. Mas a
ontologia também limita com o conhecimento, porque o conhecimento, como vimos,
é uma correlação do sujeito e objeto; não há conhecimento sem um sujeito que o
seja para um objeto e um objeto que o seja para um sujeito. Por conseguinte, o
objeto, aquilo que é, aquilo que está aí para ser conhecido e sendo conhecido,
é o que estuda a ontologia. Também pois, a ontologia limita com o conhecimento.

Estas
províncias limítrofes da psicologia, a lógica e a ontologia, que limitam com o
conhecimento, são às vezes enormemente perturbadoras, porque a teoria do
conhecimento terá que se construir e construir-se-á com contribuições e com
referências à psicologia, à lógica, à ontologia. Mas estas contribuições e
referências a estes territórios limítrofes terão que ser feitas na teoria do
conhecimento dentro do círculo de problemas que a teoria do conhecimento
apresenta; terão que ser feitas para resolver os problemas que a teoria do
conhecimento levanta, não às avessas, não para resolver com a teoria do
conhecimento problemas pertencentes à psicologia, à lógica ou à ontologia. E
um dos erros e das confusões que, veremos, se cometeram repetidamente na
filosofia moderna, consiste em utilizar a teoria do conhecimento para dar
solução a problemas de psicologia, de lógica e de ontologia.

Mas
outra confusão, mais grave ainda que a anterior, que se comete na filosofia
moderna consiste em misturar entre si seus elementos limítrofes, em confundir
o pensamento como vivência do sujeito com o pensamento como enunciação do
sujeito; em confundir a psicologia com a lógica. Assim, por exemplo, se
perguntarmos qual é a origem da noção de esfera, poderemos responder de duas
maneiras: poderemos dizer que a noção de esfera origina-se das inúmeras vezes
em que, em nossa vida, percebemos pedras redondas, seixos rolados no leito dos
rios; das numerosas vezes que temos visto bolas, origina-se a noção de esfera.
Mas poderemos responder também de outra maneira e dizer: a noção de esfera
origina-se da meia circunferência que gira ao redor do diâmetro. Esta segunda
maneira de responder é lógica; a primeira é psicológica. Pois bem; os filósofos
posteriores a Descartes dedicaram-se com muita freqüência a confundir as duas
espécies de respostas. Os ingleses acreditaram responder a problemas lógicos e
ontológicos com soluções psicológicas do estilo dessa que diz que a origem da
esfera é a visão de seixos rolados na experiência sensível; e os logicistas e
ontologistas acreditaram responder a questões psicológicas com respostas
lógicas. Ou seja, produziu-se uma confusão muitas vêze3 indecifrável.

Porém,
se nós, graças a estas análises fenomenológicas do que é o conhecimento e dos

territórios que com ele limitam, tivermos muito cuidado de ir perseguindo nosso
problema metafísico, sabendo exatamente dos perigos em que está o espírito de
confundir estes elementos que limitam com o pensamento, então teremos um fio
de Ariadne que nos conduzirá muito bem através desse labirinto, e poderemos,
nas lições sucessivas, ocupar-nos mais demoradamente da filosofia moderna a
partir de Descartes, desligando e afastando as confusões fundamentais que se cometeram
entre lógica, psicologia e ontologia. Num caso típico, na filosofia de Kant,
veremos como os intérpretes dessa filosofia kantiana cometeram eles mesmos
estas confusões, e uns de um lado — psicologistas — e outros de outro —
logicistas — nos deram ambos uma visão falsa do fundo do pensamento kantiano.
Mas isto não o poderíamos ter conseguido sem essa previa e minuciosa descrição
fenomenológica do fenômeno do conhecimento.

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