Kant, Crítica da Razão Pura – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XVIII

A
CRÍTICA DE KANT CRÍTICA   DA   RAZÃO   PURA:     I  ESTÉTICA TRANSCENDETAL 135. A
MATEMÁTICA E SUAS CONDIÇÕES. — 136. O ESPAÇO E SUA EXPOSIÇÃO METAFÍSICA. — 137.
SUA EXPOSIÇÃO TRANSCENDENTAL APLICADA A GEOMETRIA. — 138. A ARITMÉTICA E O TEMPO. — 139. SUA EXPOSIÇÃO METAFÍSICA E TRANSCENDENTAL. — 140. RESUMO. — II.
ANALÍTICA TRANSCENDENTAL: 141. O PROBLEMA DA FÍSICA. — 142. ANALISE DA
REALIDADE. –  
143. O JUÍZO. — 144. SUA CLASSIFICAÇÃO. — 145. AS CATEGORIAS. — 146.   
DEDUÇÃO    TRANSCENDENTAL.    —   147.    A    INVERSÃO    COPERNICANA-   III.
DIALÉTICA TRANSCENDENTAL: 148. IMPOSSIBILIDADE DA METAFÍSICA PARA A RAZÃO
PURA. — 149. A ALMA, O UNIVERSO E DEUS. — 150. ERRO DA PSICOLOGIA RACIONAL. —
151. ANTINOMIAS DA RAZÃO PURA.   —   152.   A   EXISTÊNCIA   DE   DEUS   E  
SUAS   PROVAS.    CRÍTICA   DA RAZÃO PRATICA: 153.OUTRA VIA PARA A METAFÍSICA — 154. A CONSCIÊNCIA
MORAL OU RAZÃO PRÁTICA. — 155. IMPERATIVO HIPOTÉTICO E IMPERATIVO
CATEGÓRICO. — 156. AUTONOMIA E HETERONOMIA. — 157. A  LIBERDADE.  —  158.   A IMORTALIDADE.   —  159.   DEUS.   —  160.   PRIMAZIA DA RAZÃO PRATICA                                            
.

I.
ESTÉTICA TRANSCENDENTAL

135.  
A matemática  e  suas  condições.

Vamos
começar pela primeira parte, e antecipo, desde já, a solução. Como são possíveis
os juízos sintéticos a priori na matemática? A solução é a seguinte: os juízos
sintéticos a priori são possíveis na matemática porque esta se funda no espaço
e no tempo. Ora: o espaço e o tempo não são realidades metafísicas, nem físicas
que tenham uma existência em si e por si, mas formas de nossa capacidade ou
faculdade de perceber; são formas da intuição, de toda intuição, qualquer que
ela seja. Assim, visto que a matemática está fundada nas formas da intuição,
toda intuição que depois tenhamos terá que estar sujeita e obediente às formas
dessa intuição, de toda intuição em geral, que são o espaço o o tempo. Como
chega Kant a este resultado? É o que vamos ver agora.

Para
chegar a este resultado Kant tem que demonstrar três coisas, tem que
apresentar-nos a prova de três asserções. A primeira, que o espaço e o tempo
são puros, ou seja, a priori, ou seja, que não procedem da experiência.
A segunda, que o espaço e o tempo não são conceitos de coisas reais, mas
intuições. E a terceira, que esse espaço e tempo, intuições puras, intuições a
priori, são, com efeito, o fundamento da possibilidade dos juízos sintéticos na
matemática. E, com efeito, Kant desenvolve todo seu processo ideológico nessas
três questões fundamentais. As duas primeiras trata-as juntas, e ao tratamento
delas dá o nome de "exposição metafísica". A terceira trata à parte e
dá-lhe o nome de "exposição transcendental". Por conseguinte,-vamos
seguir sua própria marcha e vamos iniciá-la com a "exposição metafísica do
espaço". Logo depois passaremos à "exposição transcendental do
espaço". A seguir à "exposição metafísica do tempo", à
"exposição transcendental do tempo", e teremos chegado com isso à
conclusão de todo o primeiro problema acerca da matemática pura.

136.  
O Espaço e sua exposição  metafísica.

A)
Primeira tese:
O espaço a priori, isto é, absolutamente independente da
experiência. Que o seja, não cabe dúvida nenhuma por duas razões fundamentais:
a primeira é que o espaço, longe de estar derivado da experiência, é o suposto
da experiência, porque não podemos ter experiência de nada senão no espaço. Se
por ter experiência entendemos ter percepção, intuição sensível disso, isso de
que tenhamos intuição sensível supõe já o espaço. Pois como posso ter intuição
sensível ou percepção de uma coisa se essa coisa não é algo em frente a mim? E
sendo algo em frente a mim, está contraposta a mim como um pólo a outro pólo,
por conseguinte, está no espaço que me rodeia. O espaço é, pois, o suposto
mesmo de qualquer percepção, de qualquer intuição sensível.

Se
entendemos por experiência a sensação mesma, é ela menção espacial. A sensação
mesma ou é puramente interna, e então carece de objetividade, ou é externa,
quer dizer, refere-se a algo fora de mim. Por conseguinte, todo ato de intuição
sensível, a menor sensação, se é objetiva, supõe já o espaço. Assim, pois, o
espaço, por esta razão, é evidentemente a priori, independente por completo da
experiência, não se deriva da experiência, mas antes a experiência já o supõe.

Mas
há ainda outra razão, e é a seguinte: nós podemos perfeitamente bem pensar o
espaço sem coisas; porém não podemos de maneira nenhuma pensar as coisas sem
espaço. Por conseguinte, o pensamento das coisas supõe já o espaço; porém o
pensamento do espaço não supõe as coisas. É perfeitamente possível pensar a
extensão pura do espaço, o espaço infinito, estendendo-se em suas três dimensões,
infinitamente, sem nenhuma coisa nele. Porém é absolutamente impossível pensar
uma coisa real, sem que essa coisa real esteja no espaço, quer dizer, nesse
âmbito prévio no qual se localiza cada uma de nossas percepções. Assim pois, o
espaço é a priori; não se deriva da experiência. Kant usa indiferentemente como
sinônimo o termo a priori e o termo "puro". Razão pura é razão a
priori; intuição pura é intuição a priori. Puro e a priori ou independente da
experiência são para ele termos sinônimos.

Resta
ainda para demonstrar que o espaço, que é puro e a priori e que não se deriva
da experiência, mas que a experiência supõe, esse espaço é uma intuição. Que
quer dizer aqui Kant? Imediatamente o entenderemos. Quer dizer que o espaço não
é um conceito. Que diferença há entre um conceito e uma intuição? O conceito é
uma unidade mental dentro da qual estão compreendidos um número Indefinido de
seres e de coisas. O conceito de homem é a unidade mental sintética daqueles
caracteres que definem todos os homens. Por conseguinte, o conceito cobre um
número indefinido de coisas, de seres aos quais se refere. O conceito de mesa
cobre uma multidão de mesas. O conceito de astro cobre uma multidão de astros.
Pelo contrário, intuição é a operação, o ato do espírito que toma conhecimento
diretamente de uma individualidade. Eu não posso ter intuição do objeto de um
conceito, já que o objeto de um conceito é um número indefinido de seres. Posso
ter intuição de este homem, concreto, particular, um só; porém não posso ter
intuição do homem em geral.

Por
conseguinte, os conceitos não são conhecidos por intuição, mas são conhecidos
de outra maneira; porém, agora não tratamos dela. Ao invés, uma intuição nos dá
conhecimento de um objeto particular, único, e é isso que aconteceu com o
espaço. O espaço não é um conceito, porque o espaço não cobre uma espécie ou um
gênero dos quais multidão de pequenas espécies sejam os indivíduos; não há
muitos espaços; não há mais do que um só espaço; o espaço é único. Sem dúvida,
falamos de vários espaços, mas quando falamos de vários espaços, quando nos
referimos aos espaços siderais ou dizemos que em um edifício complicado há
muitos espaços (cada sala contém um espaço); quando dizemos isso, é uma maneira
literária de falar, porque na realidade sabemos muito bem que cada um desses
espaços particulares não é mais do que uma parte do espaço universal, do único
espaço. O espaço não é, por conseguinte, um conceito que cobre uma multidão
indefinida de objetos, mas antes, é um só espaço, um espaço único, e por isso
eu o conheço por intuição. Quando tenho a intuição de um sistema de coordenadas
de três dimensões, tenho a intuição do único espaço que há, de todo o espaço.
Por conseguinte, meu conhecimento do espaço é intuitivo, e o espaço não é um
conceito mas uma intuição.

Mas
há pouco demonstramos que o espaço é a priori, independente da experiência, ou,
como diz também Kant, puro. Então podemos já dizer agora, com plenitude de
sentido e demonstrativamente, que o espaço é intuição pura.

137.  
Sua exposição transcendental aplicada a. geometria.

Agora,
que fazemos com essa intuição pura? Pois agora vem a segunda exposição, que
Kant chama "exposição transcendental". Aqui também devo fazer um
parêntese, porque nos chocamos com uma palavra abstrusa, com uma palavra rara,
a palavra "transcendental". Qual é o sentido da palavra
"transcendental"? Vamos deixar de lado o sentido que tenha tido antes
de Kant, porque nos levaria muito longe; seria muito interessante, mas nos
levaria muito longe procurar o sentido desta palavra na História. Vamos
deter-nos no sentido que tem a partir de Kant, e esse sentido nos será
facilmente indicado se colocarmos em relação a palavra
"transcendental" com a palavra "transcendente", da
qual é derivada. "Transcendente" é a palavra primitiva da qual se
deriva "transcendental". E que significa transcendente?
Transcendente significa aquilo que existe em si e por si, independentemente de
mim. Pois Kant para designar esta qualidade ou propriedade do objetivo que não
é em si mesmo, mas que é o termo ao qual vai encaminhado o conhecimento, usa a
palavra "transcendental", ou seja, a palavra
"transcendente" modificada. Transcendental é, pois, aquilo que antes
no realismo aristotélico tínhamos chamado transcendente, porém despojado desse
caráter de intuído metafisicamente, existente em si e por si, e convertido no
objeto do conhecimento, dentro da correlação do conhecimento. É isto que Kant
chama transcendental.

Pois
bem; para que algo seja objeto do conhecimento é preciso que se cumpram certas
condições. Essas condições têm que se produzir no sujeito, isto é, o sujeito
tem que verificar certos atos especiais que confiram ao objeto a qualidade ou
propriedade de ser objeto de conhecimento. Os "subpostos", as
condições que, partindo do sujeito, hão de realizar-se para que o objeto seja,
com efeito, objeto do conhecimento na correlação, são as que Kant chama
condições transcendentais da objetividade.

Neste
sentido, em que vai consistir agora a exposição transcendental do espaço? Pois
vai consistir em que Kant vai esforçar-se para demonstrar que esse espaço que o
sujeito põe por própria necessidade das formas de apreensão, esse espaço a
priori,
independente da experiência — posto, "subposto", pelo
sujeito para que sirva de base h coisa — é a condição da cognoscibilidade das
coisas, é a condição para que essas coisas sejam objetos de conhecimento; se
não fosse por isso, estas coisas não seriam objetos de conhecimento, seriam
coisas em si das quais não poderíamos faJar, porque uma coisa em si é um absurdo
radical, como dizia Berkeley; é uma coisa que não é conhecida nem pode ser
conhecida, nem posso falar dela em absoluto. Assim é que agora Kant vai-se esforçar para demonstrar na exposição transcendental que a posição pelo sujeito, a
"subposição" (a palavra exata seria a palavra grega hypóthesis, mas
como tem outro sentido na ciência não a emprego, embora no seu sentido
legítimo seja tese debaixo: pôr algo debaixo para que não caia outra coisa) do
espaço é condição da cognoscibilidade das coisas. O conjunto de nossas
sensações e percepções careceria de objetividade, não seria para nós objeto
permanente e imóvel, proposto a nosso conhecimento, se não puséssemos, debaixo
de todas essas percepções e sensações algo que lhes desse objetividade, que as
tornasse objeto do conhecimento. Essas noções que nós pomos debaixo de nossas
sensações e percepções para que se tornem objeto do conhecimento são várias;
mas a primeira de todas é o espaço. Pois a exposição transcendental vai a isso.

Consideremos
a geometria. A geometria não somente supõe o espaço no sentido de
"subpor" (pôr debaixo dela), não somente o supõe como ponto de
partida, mas antes constantemente está pondo o espaço. A prova está em que os
conceitos da geometria, ou sejam, as figuras, encontramo-las constantemente
numa intuição pura a priori. Quando chegamos a definir uma figura, a pensar uma
figura, definimo-la pedindo ao leitor ou ao estudante de geometria que na sua
mente com uma intuição puramente ideal, não sensível, construa a figura. Por
conseguinte, o espaço puro não somente é o suposto primeiro da geometria mas o
suposto constante da geometria, o conteúdo constante da geometria. Por isso diz
Kant que o espaço puro está latente em toda a geometria, porque os conceitos
geométricos não se definem, senão que se constróem. Mas, se nós depois passamos
da geometria pura à geometria aplicada, deparamos com este fato particular: que
esta geometria pura que estudamos com a mente pura e sem introduzir para nada a
experiência, quando a aplicamos às coisas da experiência encaixa divinamente
nelas; vemos que todas as coisas da experiência se adaptam à geometria pura, ou
seja, que há uma espécie de harmonia perfeita entre aquilo que estudamos fechando
os olhos à realidade sensível e aquilo que encontramos na realidade sensível.                                                             
‘»

Retenhamos
muito bem esta frase, que é capital para este ponto e para os que temos que
tratar em várias outras lições; chegamos a esta conclusão: que as condições da
possibilidade do conhecimento matemático são ao mesmo tempo condição da
possibilidade dos objetos do conhecimento matemático. Toda dedução
transcendental consistirá nisso: em que as condições para que um conhecimento
seja possível imprimem ao mesmo tempo seu caráter aos objetos dêssç
conhecimento, isto é, que o ato de conhecer tem duas faces. Por uma face
consiste principal e fundamentalmente em pôr os objetos que logo vão-se
conhecer; e, claro, ao pôr os objetos se imprimem neles os caracteres que
depois, lenta e discursivamente, vai encontrando neles o conhecimento. Pomos,
pois, nos objetos reais os caracteres c.o espaço e do tempo (que não são
objetos, mas algc que nós projetamos nos objetos), e como os projetamos,
injetamos-lhes a’priori esse caráter de espaciais; depois encontramos
constantemente na expe-riêncin esse caráter, dado que  previamente lho
injetamos.

138.  
A Aritmética e o Tempo.

B)
Falta-nos agora passar g, segunda parte, que é a referente ao estudo desse
mesmo problema, mas aplicado à aritmética, ao segundo grande ramo das
matemáticas: como são possíveis juízos sintéticos a priori na aritmética? ou
dito de outro modo: como é possível a aritmética pura? ou melhor; como é
possível que nós, com os ouvidos tapados e os olhos fechados, ou seja, a
priori, fazendo caso omisso por completo da experiência, construamos toda uma
ciência que se chama aritmética, c que logo, não obstante, as coisas fora de
nós, os fatos reais na natureza, casem e concordem perfeitamente com essas leis
que nós tiramos da cabeça? Como é isto possível? Também aqui Kant procede da
mesma maneira como procedeu no estudo da geometria.   Faz primeiro uma
exposição  transcendental  do  tempo.

139.  
Sua exposição Metafísica e transcendental.

A
exposição metafísica de tempo encaminha-se a mostrar: primeiro, que o tempo é
a priori, ou seja, independente da experiência: segundo, que o tempo é uma
intuição, ou seja, não uma coisa entre outras coisas mas uma forma pura de
todas as coisas possíveis.

A
primeira parte, ou seja, que o tempo é a priori, demonstra-a Kant seguindo
passo a passo a mesma demonstração que empregou para o caso do espaço. Com
efeito, que o tempo é a priori, ou seja independente da experiência, adverte-se
com somente refletir que qualquer percepção sensível é uma vivência e que toda
vivência é um acontecer, algo que acontece a nós, algo que acontece ao eu. Pois
bem; algo que acontece ao eu implica já no tempo, porque todo acontecer é um
sobrevir, um advir, um chegar a ser o que não era ainda: isto é, que já de
antemão está suposto o álveo, o trilho geral em que acontece tudo aquilo que
acontece, ou seja, o tempo. Acontecer significa que no decurso do tempo algo
vem a ser. Por conseguinte se toda percepção sensível é uma vivência e toda
vivência é algo que sobrevém em nós, este algo que sobrevém em nós sobrevém
agora, ou seja, depois de algo que sobreveio antes e antes de algo que vai sobrevir
depois; isto é, já implica no tempo.

Comprova-se
isto com o ensaio mental que nos convida a realizar Kant, e é que podemos
pensar muito bem, conceber muito bem, o tempo sem acontecimentos, porém não
podemos de maneira alguma conceber um acontecimento sem o tempo (do mesmo modo
que ao falar do espaço dizíamos que podemos conceber o espaço sem coisas nele,
porém não podemos conceber coisa alguma que não esteja no espaço).

Depois
de mostrado que o tempo é a priori ou independente da experiência, resta por
mostrar que o tempo é também intuição. Que quer isto dizer? Quer dizer que não
é conceito. Já disse ao falar do espaço^ que conceito é uma unidade mental que
compreende uma multiplicidade de coisas. O conceito de copo compreende este e
outros muitíssimos iguais ou parecidos que existem no mundo. Conceito é, pois,
uma unidade do múltiplo. Mas o tempo não é conceito nesse sentido, nem de
longe, porque não há muitos tempos, mas um só tempo. Se nós falamos de
múltiplos tempos não é no sentido de que existam múltiplos tempos, mas no
sentido de pedaços, partes de um e mesmo e único tempo. O tempo, pois, é
único. A unidade e a unidade do tempo qualificam-no como algo do qual não
podemos ter conceito, mas somente intuição; nós podemos intuir o tempo,
apreender imediatamente o tempo, mas não pensá-lo mediante um conceito, como
se o tempo fosse uma coisa entre muitas coisas. O tempo não é, pois, coisa que
se possa pensar mediante conceitos, mas antes é uma pura intuição. Com isso
termina o que Kant chama "exposição metafísica do tempo".

Vem
depois a exposição transcendental intentando mostrar que o tempo, a
intuitividade e o apriorismo do tempo, são a condição da possibilidade dos
juízos sintéticos na aritmética. Os juízos na aritmética são sintéticos e a
priori, isto é, são juízos que nós fazemos mediante intuição. Eu necessito
intuir o tempo para somar, subtrair, multiplicar ou dividir, e isso o fazemos,
ademais, a priori. A condição indispensável para isto é que tenhamos suposto
como base de nossas operações isso que chamamos a sucessão dos momentos no
tempo.

Assim,
pois, somente "subpondo" a Intuição pura do tempo a priori é possível
construirmos a aritmética sem o auxílio de nenhum recurso experimental. E é
precisamente porque o tempo é uma forma de nossa sensibilidade, uma forma de
nossas vivências, porque o tempo é o álveo prévio de nossas vivências, que a
aritmética, construída sobre essa forma de toda vivência, tem depois uma
aplicação perfeita na realidade. Porque, claro está, a realidade terá que se
nos dar a conhecer mediante percepção sensível; porém a percepção sensível é
uma vivência. Esta vivência se ordenará na sucessão das vivências, na
enumeração, no 1, 2, 3 sucessivo dos números, e, portanto, o tempo que eu tiver
estudado a priori na aritmética haverá de ter sempre aplicação perfeita,
encaixará divinamente na realidade enquanto vivência.

140.  
Resumo.

C)
Desta maneira chega Kant à conclusão de que o espaço e o tempo são as formas da
sensibilidade. E por sensibilidade entende Kant a faculdade de ter percepções.

Pois
bem; o espaço é a forma da experiência ou percepções externas; o tempo é a
forma das vivências ou percepções internas. Mas toda percepção externa tem duas
faces: é externa por um dos seus lados, enquanto está constituída pelo que
chamamos em psicologia um elemento "presentativo"; mas é interna por
outro dos ‘seus lados, porque ao mesmo tempo que eu percebo a coisa sensível
vou dentro de mim sabendo que a percebo; tendo não somente a percepção dela mas
também a aperceção; dando-me conta de que a percebo. Assim, pois, é ao mesmo
tempo um sair de mim para a coisa real fora de mim, e um estar em mim em cujo
"mim" mesmo acontece esta vivência.

Por
conseguinte o tempo tem uma posição privilegiada, porque o tempo é forma da
sensibilidade externa e interna, enquanto que o espaço somente é forma da
sensibilidade externa. Esta posição privilegiada do tempo, que abrange no seu
seio a totalidade das vivências, tanto na sua referência a objetos exteriores
como na sua referência a acontecimentos interiores, é a base e fundamento da
compenetração que existe entre a geometria e a aritmética. A geometria e a aritmética
não são duas ciências paralelas, separadas por esse espaço que separa as
paralelas, mas antes duas ciências que se compenetram mutuamente. E foi
precisamente Descartes o primeiro matemático que abriu a passagem entre a
geometria e a aritmética, ou melhor dito, entre a geometria e a álgebra, porque
Descartes inventou a geometria analítica, que é a possibilidade de reduzir as
figuras à equações ou a possibilidade inversa de tornar figura uma equação.
Mais adiante Leibniz completa, por assim dizer, esta coerência ou compenetração
íntima da geometria’ com a aritmética e com a álgebra no cálculo
infinitesimal. Porque então encontra não somente, como Descartes, a
possibilidade ae passar, mediante leis unívocas, das equações às figuras e das
figuras às equações, mas também a possibilidade de encontrar a lei de
desenvolvimento de um ponto em quaisquer direções do espaço. Esta possibilidade
de encerrar numa fórmula diferencial ou integral as diferentes posições
sucessivas de um ponto qualquer segundo o percurso que ele fizer, é, pois, o
remate perfeito da coerência entre z geometria e a aritmética.

Desta
sorte, toda a matemática representa um sistema de leis a p rio ri, de leis
independentes da experiência e que se impõem a toda percepção sensível. Toda percepção
sensível que nós tivermos haverá de estar sujeita às leis da matemática, e
essas leis da matemática não foram deduzidas, inferidas de nenhuma percepção
sensível: tiramo-las da cabeça, direi usando uma forma vulgar de expressão. E,
todavia, todas as percepções sensíveis, todos os objetos reais físicos na
natureza e aqueles que acontecerem no futuro, eternamente, sempre haverão de
estar sujeitos a essas leis matemáticas que nós tiramos de nossa cabeça. Como é
isso possível? Já o acabamos de ouvir em todo o desenvolvimento do pensamento
kantiano. Isto é possível porque o espaço e o tempo, base das matemáticas, não
são coisas que nós conheçamos por experiência, mas antes formas de nossa faculdade
de perceber coisas, e, portanto, são estruturas que nós, a priori, fora de toda
a experiência, imprimimos sobre nossas sensações para torná-las objetos
cognoscíveis.

As
formas da sensibilidade, espaço e tempo, são pois, aquilo que o sujeito envia
ao objeto para que o objeto se aposse dele, assimile-o, converta-se nele e logo
possa ser conhecido. Então diremos que Kant emitiu sobre as coisas em si (que
continuavam perseguindo os idealistas desde Descartes) uma definitiva sentença
de exclusão. As coisas em si mesmas não existem, e se existem não podemos dizer
nada delas, não podemos nem falar delas. Nós não podemos falar mais
que de coisas não em si, mas extensas no espaço e sucessivas no tempo. Porém
como o espaço e o tempo não são propriedades que pertençam às coisas
"absolutamente", mas formas da sensibilidade, condições para a
perceptibilidade, que nós, os sujeitos, pomos nas coisas, resulta que nunca em
nenhum momento terá sentido o falar de conhecer as coisas "em si
mesmas". A única coisa que terá sentido será falar, não das coisas em si
mesmas, mas recobertas das formas de espaço e tempo. E essas coisas recobertas
das formas de espaço e tempo chama-as Kant "fenômenos". Por isso diz
Kant que não pode mos conhecer coisas em si mesmas, mas fenômenos. E que são
fenômenos? Pois os fenômenos são as coisas providas já dessas formas do espaço
e do tempo que não lhes pertencem em si mesmas; porém lhes pertencem enquanto
são objetos "para mim", vistas sempre na correlação  objeto-sujeito.

Toda
esta parte da Crítica da razão pura que acabo de expor leva em Kant um nome
esquisito: chama-se "estética transcendental". Digo que o nome é
esquisito não porque o seja em si mesmo (logo se verá que está justificado),
mas sim porque a palavra "estética" tem hoje um sentido muito
popular, muito espalhado, que é aquele que habitualmente se evoca ao ouvi-la. A
palavra "estética" significa hoje, para todo o mundo, "teoria do
belo", "teoria da beleza", ou, ao acaso, "teoria da arte e
da beleza". Advirta-se, porém, que a palavra "estética", no
sentido de teoria do belo, é moderna, muito moderna; é aproximadamente da
mesma época que Kant. Kant toma-a em outro sentido muito diferente: toma-a no
seu sentido etimológico. A palavra "estética" deriva-se de uma
palavra grega que é aisthesis, que se pronuncia "estesis" e que é
sensação; também significa percepção. Então, que significa estética? Estética
significa teoria da percepção, teoria da faculdade de ter percepções, teoria da
faculdade de ter percepções sensíveis e ainda teoria da sensibilidade como
faculdade de ter percepções sensíveis. A palavra "transcendental"
usa-a Kant no mesmo sentido já tantas vezes dito de condição para que algo seja
objeto de conhecimento.

II
ANALÍTICA TRANSCENDENTAL

141.  
O problema da física.

Depois
da Estética transcendental, consagrada a elucidar aquilo que o sujeito pôs
(espaço e tempo) para a cognoscibilidade das coisas, dos fenômenos, vem a
teoria que deve elucidar aquilo que o sujeito põe para a cognoscibilidade das
leis efetivas que regem esses fenômenos. Em suma: vem o problema de como são
possíveis os juízos sintéticos a priori, não já das formas possíveis dos
objetos, mas dos objetos reais chamados fenômenos, que não .são coisas em si
mesmos, antes coisas revestidas das formas espaço e tempo, e, portanto, objeto
para o sujeito, o qual é sujeito de conhecimento para eles.

A ciência humana_não se Contentou com ser matemática; é também
física; isto é, não somente determinou a priori, de antemão, as formas
que podem ter os objetos, como também determinou a existência, a realidade e
as leis que regem o aparecimento e desaparecimento dos próprios fenômenos.

É
esta segunda parte que leva o nome de Analítica transcendental. Também podemos
inaugurar seu estudo com a clássica interrogação, a clássica pergunta de Kant:
como são possíveis os juízos sintéticos a priori na física? Ou dito de
outro modo: como é possível que nós tenhamos conhecimento a priori de objetos
reais?

A
pergunta é verdadeiramente interessante. Porque é um fato que nós temos, com
efeito, conhecimento a priori de objetos reais. Nós, por exemplo, sabemos que
existem objetos, que existem coisas; que essas coisas estão aí, que existem.
Mas, além disso, sabemos que cada coisa tem seu ser, sua essência, sua
natureza. Que significa isto de natureza? Significa que as coisas que existem
estão elas mesmas regidas por leis, têm uma substância, estão compostas de propriedades,
aparecem e desaparecem não caprichosamente, mas segundo leis fixas. Mas, além
disso, sabemos também que estas coisas que existem são todas elas efeitos de
causas e causas de efeitos. Cada uma das coisas é o que é e está onde está e
tem as propriedades que tem porque algum outro fenômeno antecedente no tempo
veio causar esse ser, esse estar e essas propriedades. E sabemos também que
cada coisa das que existem no mundo é por sua vez causa de efeitos, ou seja que
ela mesma produz, gera outras coisas, muda outras coisas de lugar, causa
propriedades, movimentos, mudanças nas outras coisas; e sabemos que esses
efeitos e essas causas não são tampouco caprichosos, mas todos eles são redutíveis
a leis e a fórmulas gerais. Aiém disso, porém, sabemos que em todas as coisas
que existem há uma mútua ação e reação; umas produzem efeitos em outras, mas
por sua vez recebem efeitos dessas outras. Sabemos, por último, que todas elas,
o conjunto inteiro das coisas, aquilo que chamamos Natureza, consiste num
sistema de leis universais que podem ser expressas em fórmulas matemáticas e
que traduzem com a máxima exatidão essas ações e reações, essas causas e
efeitos, essas essências e propriedades de todas as coisas.

Tudo
isto sabemo-lo e sabemo-lo a priori. Porque, como poderíamos sabê-lo se
não o soubéssemos a priori? Teria que ser porque as coisas mesmas no-lo
tivessem ensinado. Mas as coisas não podem proporcionar-nos semelhante
conhecimento. As coisas enviam impressões, como diria Hume; nada mais do que
impressões. Pois bem; nada disto (que cada coisa tem sua essência, ou que é
efeito e causa, ou que é ação e reação, que tudo é redutível a leis universais)
nada disso são impressões; nenhuma coisa nos envia a causa como impressão;
nenhuma coisa nos envia a essência como impressão, pois essas essências, essas
causas não estão naquilo que nós percebemos sensivelmente da realidade.

Por
conseguinte, existe um conhecimento a priori das coisas da natureza. E há um
exemplo característico desse conhecimento a priori p é bem conhecido. É esse
conjunto de teoremas que em qualquer livro de física precede ao resto do estudo
e que leva o nome de "Mecânica racional". Na mecânica racional se
estabelece uma grande quantidade de teoremas, de proposições, que enunciam
acerca dos objetos reais, por exemplo, as leis do movimento, e, todavia, essas
leis do movimento não são derivadas da experiência, não as lemos nós mesmos
nas coisas como quem lê um livro, senão que as extraímos integralmente do
nosso próprio pensamento.

Assim,
pois, apresenta-se ‘xqui, do mesmo modo que na estética transcendental, o
problema essencial de toda a Crítica da razão pura: o problema de como sejam
possíveis conhecimentos a priori na física. Ou dito de outro modo: como é
possível o conhecimento da realidade das coisas?

142.  
Análise da realidade.

Iniciaremos
estudo com uma análise disso que chamamos realidade. Relembremos, para o caso,
que Descartes iniciou o filosofar com a dúvida metódica. A dúvida tem dia .,e
de si um campo relativamente vasto sobre o qual pode exercitar-se. Porém esse
campo vastíssimo sobre o qual a dúvida se exercita pode-se dividir cm dois
grandes setores. Em um setor encontram-se as coisas que vemos, ouvimos e
tocamos; as coisas reais, as realidades. No outro setor encontram-se nosso ver,
ouvir e tocar essas coisas, aquilo que Descartes chama pensamentos. E lembremos
também que Descartes chega à conclusão de que a dúvida faz impressão nas ,
realidades, nos objetos do pensamento, mas que não laz mossa, não pode fazei
entalho nos próprios pensamentos. Diz Descartes: se eu penso o centauro, pode
ser que o centauro não exista; porém meu pensamento dele sim existe. Diz
Descartes: se eu sonho que estou voando, pode ser que eu, com efeito, não
esteja voando, mas dormindo; porém não  pode  ser que  não esteja  sonhando 
que  estou   voando.

A
dúvida, pois, não faz marca nos puros pensamentos, porém faz marca na
realidade, nos objetos. Relembrando isto, podemos perguntar-nos: então, que é aquilo
que Descartes chama realidade? Descartes chama realidade ao seguinte: que a um
pensamento corresponda um objeto além do pensamento. Por isso Descartes diz
que pode perfeitamente não incorrer jamais em erro algum com só ter cuidado de
não afirmar ou negar nenhum pensamento. Porque afirmar ou negar um pensamento é
afirmar ou negar que a esse pensamento corresponda efetivamente um objeto.
Bastará, pois, não julgar dessa realidade para não incorrer jamais em erro,
visto que, limitando-nos a pensar não podemos errar, e só podemos errar quando
afirmamos que aquilo que pensamos existe.

143.   
O juízo.

Isto
oferece-nos um ponto de partida que nos orienta um pouco sobre o que é a
realidade. Já vemos aqui que para Descartes a realidade é o "algo" ao
qual se refere o pensamento. Mas essa realidade não será posta, afirmada, não
terá uma validez plena se eu não julgar, isto é, se eu não formular um juízo
que diga que esse pensamento é pensamento dessa realidade. Dizemos que algo é
real quando pomos esse algo como sujeito de um juízo. Formulamos juízos. Um
juízo é a afirmação ou a negação que fazemos de uma propriedade que atribuímos
ou não atribuímos a algo. Quando dizemos que algo é real? Dizemos que algo é
real quando o consideramos como o sujeito do juízo, quer dizer, quando
assentamos e pomos esse algo como sujeito de um juízo ou de uma série de juízos
possíveis. Se eu digo A é, então considero A como real. Por quê? Porque ao
lado de A eu pus a partícula, a cópula "é", que está aguardando que
algum predicado venha determinar aquilo que A é, e digo: A é B, C, D, E, o que
seja. Assim, pois, dizer que algo é real não é nem mais nem menos que
considerar este algo como sujeito possível de uma multidão de juízos, de
afirmações ou de negações. Porque eu não posso afirmar ou negar nada de algo,
se esse algo não é, se esse algo não tem realidade. Portanto, a realidade que
algo tem não é outra coisa que sua capacidade de receber determinações mediante
juízos.

A
função fundamental dos juízos é, pois, pôr a realidade. Depois que está posta a
realidade, determiná-la. Ou melhor dito ainda: no momento mesmo em que
determinamos uma realidade, pomo-la. De algo que não seja real não podemos nem
falar. Mas quando falamos de algo supõe-se já que esse algo de que falamos
consideramo-lo como real. Assim, pois, ser real uma coisa é ser sujeito de toda
uma série de juízos.

Se,
por conseguinte, o juízo é a posição da realidade, ou, invertendo a
proposição, se a realidade consiste em ser sujeito de juízo, então a formação
mental, a função intelectual de formular juízos será ao mesmo tempo a função
intelectual de estatuir realidades. Estatuímos que uma coisa é real tão logo
consideramos essa coisa como sujeito de muitos juízos possíveis.

A
função intelectual do juízo é, pois, a mesma que a função ontológica de
estabelecer uma realidade. Mais ainda: quando não sabemos se algo é ou não é
realidade, porém suspeitamos que seja realidade, qual é nossa atitude? Nossa
atitude consiste em dizer: que é isso? Se respondemos que isso é isto ou
aquilo, fica então estabelecida a realidade disso, realidade que é
problemática. Pelo contrário, se respondemos: isto não é nada, então o que nos
parecia ser uma realidade não é uma realidade. Portanto, o simples fato de
perguntar: que é algo? já constitui uma posição de  realidade.

Esta
identificação da função lógica do juízo com a função ontológica de pôr a
realidade é o ponto de partida de que se serve Kant para deduzir todas as
variedades de toda realidade possível.

Com
efeito, as variedades de todo juízo possível conterão no seu seio as variedades
de toda realidade possível, dado que, como vimos, o juízo lógico é o ato de pôr
a realidade. Por conseguinte, as diversas formas do ato de pôr a realidade, ou
seja, do juízo, conterão no seu seio as diversas formas da própria realidade
posta.

Pois
bem; quais são as formas diferentes do ato do juízo? Estão estudadas
perfeitamente desde Aristóteles. Precisamente a lógica formal é uma disciplina
que atinge desde Aristóteles sua forma mais perfeita sem necessidade de
introduzir nela modificação alguma.

144.   
Sua classificação.

Estudemos,
pois, quais são as formas do juízo na lógica formal. Na lógica formal os juízos
costumam ser divididos segundo quatro pontos de vista: segundo a quantidade,
segundo a qualidade, segundo a relação e segundo a modalidade. E de cada um
desses pontos de vista os juízos se dividem em três tipos de juízos.

Se
tomarmos o ponto de vista da quantidade, dividiremos os juízos segundo a
quantidade do sujeito, e então obteremos juízos individuais quando o sujeito for
conceito tomado individualmente; particulares quando o sujeito for um conceito
tomado em parte; universais, quando o sujeito for um conceito tomado em toda
sua extensão. Assim teremos que, segundo a quantidade, os sujeitos se dividem
em individuais, como, por exemplo: este A é B, ou João é espanhol;
particulares, como quando dizemos: alguns A são B, alguns homens são brancos;
e universais, como quando dizemos: todo A é B, todo homem é mortal.

Segundo
a qualidade, os juízos se dividem (como é bem sabido) em afirmativos, negativos
e infinitos. Afirmativos são aqueles que predicam o predicado do sujeito, como
quando dizemos: A é B, ou João é espanhol; negativos, aqueles que não predicam
o predicado do sujeito, como quando dizemos, por exemplo: o átomo não é simples:
infinitos são aqueles que predicam do sujeito a negação do predicado, como
quando dizemos, por exemplo: os pássaros não são mamíferos, no qual não dizemos
aquilo que são, mas que todo um setor do ser — os mamíferos — não pertence aos
pássaros, ficando porém aberto um número infinito de possibilidades de que os
pássaros sejam outras coisas.

Do
ponto de vista da relação, os juízos se dividem em categóricos, hipotéticos e
disjuntivos. Juízo categórico é aquele que afirma sem condição nenhuma o
predicado do sujeito, como, por exemplo: o ar é pesado. Juízo hipotético é
aquele que não afirma o predicado do sujeito senão sub conditione; por exemplo:
se A é B, então é C, ou se João é espanhol, então é europeu. Juízo disjuntivo é
aquele em que se afirma alternativa e exclusivamente um ou outro predicado ou
vários predicados; por exemplo, quando dizemos: A é B ou C, ou D, Antônio é
espanhol, ou português, ou italiano.

Do
ponto de vista da modalidade, os juízos se dividem em problemáticos,
assertórios e apolíticos. Problemáticos são aqueles juízos em que se afirma do
sujeito o predicado como possível; exemplo: A pode ser B. Os juízos assertórios
são aqueles em que o predicado se afirma do sujeito: A é B. Os juízos
apodíticos são aqueles em que o predicado se afirma do sujeito como tendo que
ser necessariamente predicado do sujeito: A é necessariamente B, ou A tem que
ser B; como quando dizemos: a soma dos ângulos de um triângulo tem que ser
dois retos ou não pode ser senão dois retos. Pelo contrário, quando dizemos
"o calor dilata os corpos", é este juízo assertório, porque é assim,
mas poderia ser de outro modo.

145.  
As categorias.

Se
esta é, pois, a classificação clássica dos juízos na lógica formal, e se o ato
de julgar é ao mesmo tempo ato de pôr, ato de assentar a realidade, estão as
diferentes variedades em que se pode apresentar a realidade estarão todas elas
contidas nas diferentes formas dos juízos que acabamos de enumerar. Bastará
tirar, extrair de cada uma dessas forma o do juízo a forma correspondente da
realidade; obteremos — segundo Kant — a tabela das categorias. E a obteremos
sistematicamente deduzida do ato mesmo de julgar, de formular juízos.

Desta
maneira, teremos que os juízos individuais que afirmam de uma coisa singular,
seja o que for, contém no seu seio a unidade; os juízos particulares que
afirmam de várias coisas algo, contém em seu seio a pluralidade; os juízos
universais contêm em seu seio a totalidade. De modo que as três formas de
juízos, segundo a quantidade, dão lugar a estas três categorias: unidade,
pluralidade, totalidade.

Do
ponto de vista da qualidade, os juízos são: afirmativos, negativos e
infinitos. Os juízos afirmativos nos dizem que uma coisa é "isto".
Teremos a categoria da essência, que Kant chama realidade, mas no sentido de
essência, consistência. Assim Kant extrai dos juízos afirmativos, negativos e
infinitos as três categorias de essência (que ele chama realidade, mas no
sentido de essência), de negação e de limitação. O juízo infinito contém
limitações, diz aquilo que algo não é, mas deixa aberto um campo infinito do
que quer que seja. Não faz mais do que limitar o sujeito.

Dos
juízos segundo a relação, dos juízos categóricos, hipotéticos e disjuntivos,
extrai Kant as três categorias seguintes: dos juízos categóricos, a categoria
de substância com o seu complemento natural de "propriedade". Porque
quando eu afirmo categoricamente que uma coisa "é isto", considero
esta coisa como uma substância, é isto que dela afirmo como uma propriedade
dessa substância. Dos juízos hipotéticos extrai Kant a categoria de
causalidade, de causa e efeito. Porque quando formulamos um juízo deste tipo:
se A é B, ó também C, já assentamos o esquema lógico da causalidade. Se faz
calor se dilatam os corpos. Dos juízos disjuntivos extrai Kant a categoria de
ação recíproca,

Da
quarta maneira de dividir os juízos extrai Kant as seguintes categorias: dos
juízos problemáticos (A pode ser B) extrai a categoria de possibilidade; dos
juízos assertórios (A é efetivamente B) extrai a categoria de existência; dos
juízos apodíticos (A tem que ser B) extrai a categoria de necessidade. Temos
então completa a tabela das categorias. São doze as categorias de Kant.

Que
significam estas categorias? Que sentido têm? Que função desempenham? Isto é o
que Kant se propõe agora elucidar na parte (2a analítica transcendental que
leva o nome de dedução transcendental das categorias. Esta passagem é
provavelmente a mais famosa de toda a obra de Kant. Das duas edições que fez
Kant da Crítica da razão pura, esta passagem, que abrange grande número de
páginas, foi na segunda edição completamente refeita, transformada por completo.
Adverte-se muito bem, pelos esforços que custou a Kant sua redação, aquilo que
hoje é bem sabido: que esta passagem constitui o núcleo essencial da Crítica da
razão pura e é realmente a raiz mais profunda do pensamento kantiano.

146.  
Dedução Transcendental.

Kant
se propõe a mostrar que as categorias são as condições da possibilidade dos
juízos sintéticos a priori na física; mas realmente seu propósito vai além.
Propõe-se aqui explicar o fundo mesmo do seu pensamento filosófico. Pois bem;
seu pensamento filosófico neste ponto essencial, acredito eu que se pode chegar
a formulá-lo concisa-mente nesta frase que logo vou explicar: "Que as
condições do conhecimento são ao mesmo tempo as condições da
objetividade" ou "Que as condições do conhecimento são as mesmas que
as condições da objetividade."

Que
quer dizer aqui Kant? Nós temos conhecimento1. O homem chegou a
formar um conjunto sistemático de teses, de afirmações matemáticas
(formuláveis em matemáticas), que expressam aquilo que as coisas reais são,
como se movem, como são realizadas umas por outras, como umas são causas de
outras, e as leis dessas causas. Desde Newton temos uma física matemática, que
é a fiel expressão da realidade das coisas. Temos, pois, um conhecimento. Disso
não se pode duvidar. Este é o ponto de partida de Kant. Temos um conhecimento
(ou seja, universal e necessário) da natureza. Pois bem; que condições fazem
possível esse conhecimento? Como pode haver esse conhecimento?

Pois
necessitam dar-se as seguintes condições: é necessário haver objetos, porque
sem objetos não há conhecimentos de objetos; é preciso que esses objetos que
há tenham um ser, no sentido de essência, porque se os objetos que hão não
tivessem um ser não haveria conhecimento, visto que o conhecimento é a
elucidação do ser dos objetos; necessita-se que estes objetos que há e que têm
um ser estejam relacionados entre si como causa e efeito, porque se não o estivessem,
se os objetos entrassem, passassem, desaparecessem sem lei  alguma  de  enlace 
entre  eles,  não  haveria  possibilidade  de  conhecimento. Em suma: tudo
aquilo que as categorias nos dizem (que os objetos são uns, múltiplos, que
podem agrupar-se em totalidades, que os objetos são substâncias com
propriedades, causas com efeitos, efeitos com causas, que têm entre si ações e
reações) todas essas são condições sem as quais não haveria conhecimento.

Pois
bem; essas condições, sem as quais não haveria conhecimento, como as temos
nós? Poder-se-ia dizer: é que essas categorias, que são as condições de todo
conhecimento, nos vêm das coisas, são as coisas que nos presentearam as
categorias, que nos dão as categorias. Porém isso é impossível; porque se
fossem as coisas, ou seja, as impressões sensíveis, que estivessem encarregadas
de dar-nos as categorias, ficaríamos sem categorias, porque as coisas não nos
enviam nem a unidade, nem a pluralidade, nem a totalidade, nem a causa. O
que nos enviam são impressões. Se tudo aquilo que há na ciência, se todas as
condições do conhecimento tivessem que nos ser proporcionadas pelas impressões
sensíveis que as coisas nos enviam, então teria razão Hume. As coisas não
enviam mais do que impressões; sensíveis; as impressões sensíveis
agrupar-se-iam em nossa mente como vivências puras de um modo casual,
acidental, em virtude de associações de semelhança, de contigüidade, de
contraste. Nós então não teríamos segurança alguma no conhecimento científico.
Esperaríamos que o sol saísse amanhã pelo simples costume de tê-lo visto sair
até agora, mas não por um fundamento real. Se, pois, fossem as intuições as
encarregadas de nos proporcionar essas categorias, que são condições do
conhecimento, não haveria conhecimento.

Visto
que essas condições do conhecimento não podem nos advir das coisas, das
impressões, porque as impressões não no-las podem dar, então somos nós que as
pomos nas coisas. Não existem mais que estas duas possibilidades: ou
essas formas categóricas a priori procedem das coisas ou procedem de
nós. Não procedem das coisas? Então têm que proceder de nós.

147.  
A inversão copernicana.

 

Aqui chegamos àquilo que Kant chama
inversão copernicana. Kant compara sua revolução filosófica com a realizada
por Copérnico. Copérnico acha que o conjunto das observações astronômicas não
tem reta interpretação possível se supomos que o sol dá voltas ao redor da
terra e que a terra é o centro do universo; e se não existe interpretação
reta possível com essa hipótese, Copérnico propõe-nos que invertamos os termos,
que suponhamos que é o sol o centro do universo. Kant diz do mesmo modo: se as
condições elementares da objetividade em geral, do ser objeto, não são, não
podem ser enviadas a nós pelas coisas, dado que as coisas não nos enviam mais
do que impressões, não há mais remédio senão agir do mesmo modo que Copérnico
e dizer que são as coisas que se ajustam a nossos conceitos e não nossos
conceitos que se ajustam às coisas. As categorias, por conseguinte, são
conceitos, mas conceitos puros a priori, que não obtemos extraindo-os das
coisas, mas que nós pomos, impomos às coisas. O que aqui intenta Kant é também
eliminar por completo o resíduo de realismo aristotélico, e fixar a correlação
fundamental do sujeito e o objeto no conhecimento. O qvie ele pretende também
aqui é dizer: o objeto do conhecimento não é objeto do conhecimento senão
enquanto esta provido das condições do conhecimento. Pois bem; essas condições
do conhecimento são o sujeito do conhecimento que as dá ao objeto, e torna a
coisa em si como o objeto do conhecimento. Assim é que tanto o sujeito como o
objeto do conhecimento são termos relativos que surgem no âmbito do pensamento
humano quando o homem, não contente em viver como animal, quer conhecer. Quando
o eu psicológico, o eu das vivências, o eu de Descartes, o eu dos ingleses,
resolvem um belo dia ser sujeito de conhecimento; ou dito de um modo mais
vulgar, quando o homem sente a curiosidade de saber que são as coisas, no mesmo
ato em que o homem diz: que são as coisas? já este eu não é o eu biológico e
natural, antes se torna sujeito de conhecimento, sujeito cognoscente.

Que
diferença existe entre o sujeito cognoscente e o eu? O eu é a unidade vital de
nosso ser, de nós mesmos; mas quando o eu se torna sujeito cognoscente, este
ato de tornar-se sujeito cognoscente consiste em propor-se um objeto a
conhecer. E esse "propor-se um objeto a conhecer" não consiste em
outra coisa senão em emprestar, em imprimir nas coisas por conhecer os caracteres
categóricos do ser, da substância, da causalidade etc.

O  
animal  caminha  pelo  mundo  numa  espécie   de   semi-sonho, de consciência
obtusa, em que as impressões que recebo do mundo fazem dele e de seus instintos
aquilo que uma lei biológica fez. Mas o homem ergue-se por cima de tudo isto.
Essas impressões múltiplas, essas vivências psicológicas, num determinado
momento o homem as tem, sim, mas se detém e diz: Que é? No mesmo momento de
dizer: que é? se torna sujeito cognoscente e logo depois suas impressões
tornam-se objeto para conhecer. Mas tornar as impressões objetos para conhecer
não é outra coisa que as considerar sob a espécie da essência, da substância
etc. Dito de outra  maneira:  o físico é um homem que vive, que dorme, como
todos os homens; que se levanta pela manhã e logo bebe uma xícara de chá.
Passeia, e de repente, às dez horas, diz: "Vou ao meu laboratório."
Nesse momento  o eu do físico se torna sujeito cognoscente. Até agora era um eu
vivente, nada mais, mas então  se   torna  sujeito   cognoscente.  Que 
significa isto? Significa que o físico, que leva no seu bolso a chave do seu
laboratório, está de antemão, a priori, convencido, primeiro, de que há
objetos: segundo, de que esses objetos têm uma essência, podem ser conhecidos;
terceiro, de que estão submetidos a causa e efeito; quarto, de que existem leis
na Natureza, precisamente aquelas que vai descobrir no seu laboratório. Se o
físico não estivesse previamente convencido disto, que sentido teriam os passos
que dá rumo ao seu laboratório? Que sentido teria que se pusesse a fazer
experimentos em seu laboratório? Logo essa convicção prévia de que há objetos,
de que os objetos têm essência, de que essa essência é cognoscível, de que esse
conhecimento é por causas e efeitos e de que há leis etc; essas
convicções prévias são de tal natureza que, se o físico não as tivesse
previamente, não se preocuparia em fazer física, e não haveria física.

Pois
o que quer dizer Kant é que aquilo que o
eu é, quando se torna sujeito cognoscente, o é em relação ao objeto a
conhecer; e aquilo que o objeto a conhecer é quando deixa de ser mera sensação,
simples amontoado de impressões, para tornar-se objeto a conhecer, aquilo que
o objeto a conhecer é, o é não "em si", mas em relação com o sujeito
cognoscente. Então, nem o sujeito cognoscente é "em si", nem o objeto
a conhecer é "em si", mas antes o sujeito cognoscente é tal para o
objeto na função de conhecer, e o objeto a conhecer é tal para o sujeito
cognoscente na função de conhecer, porém não "em si e por si".

A
pretensão de todos os anteriores filósofos idealistas foi considerar que, de
algum modo, poder-se-ia penetrar no "em si", no eu em si,
independentemente de ser sujeito cognoscente; ou na coisa em si,
independentemente de ser objeto a conhecer. Examinavam, pois, as coisas os
filósofos anteriores e descobriam nelas a objetividade, a essencialidade, a
causalidade, a unidade, a pluralidade, a ação recíproca, a totalidade, todas as
categorias. E acreditavam que as categorias eram propriedades das coisas em si
mesmas. Todavia, são propriedades das coisas enquanto se tornam objeto a
conhecer, mas não em si mesmas. Dirigiam-se depois ao sujeito e diziam: eu
existo. Para Kant, o eu se torna unidade, sujeito cognoscente, quando
recebe ele também essas categorias de unidade, de pluralidade, de causa e substância, e entra na relação do conhecimento. Nem o sujeito cognoscente, nem o
objeto conhecido ou para conhecer são em si senão fenômenos, no dizer de
Kant. Com isso estamos já plenamente no autêntico e verdadeiro
idealismo transcendental.

III.
DIALÉTICA TRANSCENDENTAL

148.  
Impossibilidade da metafísica para a Razão pura.

Agora
se apresenta outro problema. É que existe uma disciplina que conhecemos desde
Parmênides, Platão, Aristóteles, o próprio Descartes, Leibniz, os ingleses.
Existe uma disciplina que anseia por conhecer aquilo que as coisas são "em
si mesmas". E a metafísica, que pretende conhecer em si mesmas as coisas,
não na relacão de conhecimento, como sujeito cognoscente do objeto a conhecer,
mas fora de toda relação, absolutamente em si. A metafísica pretende conhecer dessa maneira a alma humana, o universo; pretende conhecer a Deus. Mas então,
visto que para Kant não há mais objetos do que os objetos a conhecer
para um sujeito, nem mais sujeito do que o sujeito cognoscente para um objeto,
cabe perguntar (e é o que Kant pergunta): é possível esta metafísica que
pretende conhecer não na correlação, mas isoladamente e em si? E a ultima parte
da Crítica da razão pura, intitulada "Dialética transcendental",
está destinada a averiguar se a metafísica é possível.

A
solução que vai dar Kant ao problema da possibilidade da metafísica podemos
vislumbrá-la de antemão antes de ler a dialética transcendental; podemos
vislumbrar que a solução vai ser negativa; que Kant vai nos dizer que a
metafísica é impossível; que o empenho da metafísica é um empenho ilegítimo,
porque se na estética e na analítica transcendental enumeramos as condições de
todo conhecimento possível, ao mesmo tempo toda a objetividade possível, e nos
encontramos agora, precisamente, com uma disciplina que quer iludir essas
condições indispensáveis de todo conhecimento possível então essa disciplina
esquiva, fugindo da submissão às condições im prescindíveis de todo
conhecimento, seria uma disciplina ilegítima, que creria chegar àquilo que
pretende, mas que seria uma simples ilusão. Afigura-se chegar a essas coisas em
si mesmas. Porém às coisas em si mesmas não pode haver conhecimento que chegue,
dado que o conhecimento se define como conhecimento, não de coisas em si
mesmas, mas de objetos a conhecer, ou sejam, fenômenos.

Por
conseguinte, podemos de antemão supor qual vai ser a resposta à pergunta. Nós
vimos já que todo conhecimento é e se verifica como confluência de dois grupos
de elementos: um grupo de elementos que chamaremos formais e outro grupo de
elementos que chamaremos materiais ou de conteúdo.

O
grupo de elementos formais vem determinado pelas condições a priori do espaço,
do tempo e as categorias; mas o espaço, o tempo e as categorias são meras
formas, meras condições ontológicas que se aplicam, se imprimem sobre o
material proporcionado pela percepção sensível.

O
outro grupo de elementos, que conflui com os elementos formais para formar o
conhecimento, é a percepção sensível que, ajustando-se e sujeitando-se às
formas de espaço, tempo e categorias, constitui o que chamamos a objetividade,
a realidade do objeto a conhecer, na base de dar-nos a matéria do conhecimento.
Pois bem: a metafísica pretende que existe na razão humana a possibilidade de
um ato de apreensão cognoscitiva que recaia não sobre fenômenos, não sobre
objetos a conhecer, submetidos ao espaço, ao tempo e às categorias, mas sobre
coisas em si mesmas. Esta é uma falta essencial contra a definição e descrição
mesma do conhecimento. Por conseguinte,
trata-se agora — para Kant — de descobrir minuciosa mente, ponto por ponto,
onde está a falta que comete a metafísica, onde está e em que consiste esta
ilusão que a metafísica se faz de chegar às coisas em si mesmas por meio de
idéias racionais.

149.  
A alma, o Universo e Deus.

Em
primeiro lugar, estes objetos, essas coisas em si, à conquista das quais se
encaminha a metafísica, não nos são dadas na experiência sensível; não há
nenhuma coisa no espaço e no tempo que seja isto que chamamos alma; porque
quando nós inspecionamos nossa própria vida psíquica para ver se descobrimos a
alma, não descobrimos mais do que uma série de vivências, e a cada uma dessas vivências
acompanha a representação de estar referida ao eu; mas o eu mesmo, alma, não o
descobrimos em parte nenhuma. Não há, pois, uma percepção sensível da alma, que
seria uma das condições fundamentais do conhecimento. Em segundo lugar, quando
a metafísica fala do mundo, do universo, esse conceito de "universo",
é também um conceito construído, mas que não está dado na experiência sensível.
Não há nenhuma percepção de uma coisa que se chame universo; há a percepção
desta lâmpada, daquela cadeira, daquela árvore, do céu, das estrelas, da terra;
mas essa totalidade chamada universo não é objeto de uma percepção sensível. Em
terceiro lugar, não é necessário esforçar-nos muito para ver que tampouco de Deus
temos percepção sensível. Então, como chega a razão a formar estes objetos:
alma, universo, Deus? A razão chega a estes objetos porque, como vimos nas
lições anteriores, a razão é um poder sintetizador; é o poder de sintetizar
impressões, de formar sínteses, unidades sintéticas entre algo e algo. Esse
poder sintético da razão se manifesta essencialmente, como vimos em lições
anteriores, no juízo. O ato de julgar é o ato pelo qual uma coisa A e outra B ou
um sujeito A e uma determinação B, se unem na fórmula do juízo que diz: A é B .
Nossa razão é essencialmente uma faculdade de síntese, de união, juízo é, pois,
uma função sintética  da razão

Pois
bem: essa faculdade de união, de síntese, é perfeitamente legítima quando recai
sobre o material dado pela experiência (aquele segundo grupo de elementos que
eu contrapunha sob o nome de material ao grupo dos elementos formais). Mas eis
que a razão faz funcionar sua capacidade de síntese incansavelmente. Fá-la-á funcionar
não somente sobre os dados sensíveis que a experiência lhe traz, mas
continuamente e cada vez mais; e a faz funcionar ultrapassando os limites da
experiência; e não se contenta com umas quantas sínteses que chamamos coisas,
substâncias, o calor, a eletricidade, o magnetismo, os corpos, mas também quer
fazer uma síntese de sínteses; e quando fez uma síntese de sínteses, ainda quer
fazer mais sínteses, até chegar a unidades que abranjam absolutamente a totalidade
do sintetizavel, do unível. Então essas uniões totais, essas sínteses totais,
são os objetos tradicionais da metafísica. Aquilo que chamamos alma é a síntese
que realiza a razão de todas nossas vivências na unidade da alma, da qual cada
uma dessas vivências aparece como sendo uma modificação. Do mesmo modo no
conceito do universo a razão fez a síntese total de tudo quanto pode
contrapor-se ao eu pensante, todo objeto a conhecer: fez a síntese de tudo quanto
existe. E em Deus fez já a suprema síntese, a síntese em cujo seio está contida
radical e germinalmente a última suprema razão não somente das coisas que
existem, do mundo, do universo, mas também de minhas vivências e de minha
própria alma.

Pois
bem; a essas unidades supremas, a essas unidades totalitárias que se chamam a
alma, o universo e Deus, Kant dá o nome de idéias. É um uso um pouco insólito
da palavra "idéia". Se se relembram de todas as lições que demos de
introdução à filosofia, não será difícil recordar diferentes usos, muito
díspares, da palavra "idéia". Encontramo-la pela primeira vez em
Platão e logo a encontramos nos filósofos ingleses e agora tornamos a
encontrá-la em Kant; e em cada caso com sentido diferente. Em Platão a idéia
significa a visão da essência das coisas nesse mundo das essências que está
totalmente separado do mundo das existências sensíveis; em Platão idéia
significa as unidades do mundo inteligível. Entre os ingleses idéia significou
— em Locke — qualquer fenômeno psíquico, Mas em quem mais exatamente tem, entre
os ingleses, um emprego terminológico é em Hume, no qual idéia se contrapõe a
impressão; impressão é a vivência de algo como atualmente dado; idéia, em
troca, é a vivência reproduzida, a vivência que reproduz uma impressão
anterior. E agora verificamos que Kant dá à palavra "idéia" um
terceiro sentido, que é o destas unidades absolutas, o destas unidades
totalitárias que a razão, pulando por cima das condições do conhecimento,
constrói além dos limites de toda experiência possível, ultrapassando esses
limites.

Seria
longo explicar por que está de certo modo justificado o emprego aqui da palavra
"idéia". Aqui Kant quis referir-se ao uso que faz Platão dessas
idéias. E há uma similitude — embora longínqua _ entre o emprego que Kant faz
da palavra "idéia" e aquele que ela faz Platão. Mas o importante
aqui, para nós, é que estas sínteses totalitárias (a alma, o mundo ou o
universo, Deus) que Kant atribui à razão na sua função incansável de unir, de
unificar, estas sínteses totalitárias se fundamentam em algo, não são
caprichosas; não é que a razão funcione doidamente no seu afã de sintetizar, e
sim que entre as condições do conhecimento possível, e, portanto, da possível
objetividade, está a condição de que tudo quanto se nos aparece como objeto a
conhecer, todo fenômeno, em suma, é, de uma parte, condicionado por outro
anterior, e, de outra parte, condicionante daquele que o segue. A categoria de
causa e efeito, aplicada aos fenômenos, faz de cada fenômeno uma condição
condicionante e ao mesmo tempo condicionada. Por conseguinte, o afã de
conhecer, o ato de conhecer, vai sucessivamente passando de um efeito à sua
causa; e esta por sua vez aparece como condicionada por outra causa; e esta por
sua vez por outra causa, e, por conseguinte, a tarefa racional de ir de
condição a condicionante e de condicionante a outro condicionante não se esgota
jamais.

Pois
bem: esse afã da razão de passar de uma condição a outra e a outra e a outra,
revela que a razão aspira no fundo de si mesma a chegar ao incondicionado. O
incondicionado não se dá nunca em nossa experiência; mas a razão quer o
incondicionado. Então, em lugar de ir de condição em condição, num processo
infinito, numa série infinita, salta sobre a série, toma a totalidade da série,
sintetiza-a numa idéia e estatui a alma, o universo e Deus, precisamente como
as unidades incondicionadas dessas séries infinitas condicionadas, como o
absoluto na série relativa de cada uma das vivências e de cada um dos fenômenos
físicos.

É
justamente este salto do condicionado à totalidade incondicionada que a
metafísica realiza em cada um dos seus trâmites para chegar aos términos a que
ela quer chegar. E vamos ver agora pormenorizadamente, após estas observações
gerais, a crítica que desta pretensão da metafísica nos oferece Kant.

150.  
Erro da psicologia racional.

Em
primeiro lugar, Kant ataca aquilo que ele chama psicologia racional, ou seja, a
parte da metafísica encaminhada a mostrar que a  alma  é  simples o,   por conseguinte,  
imortal.

Kant
faz ver que nós não podemos predicar da alma absolutamente nada; porque a alma
não pode ser objeto a conhecer, não pode ser fenômeno dado na experiência. Na
experiência, no tempo, que é onde se dão os fenômenos anímicos, a única coisa
que obtemos quando olhamos para nós mesmos é uma série constante de vivências
que vão substituindo-se umas às outras (agora uma vivência, logo outra
vivência, depoiil esta outra) e que ademais cada uma das vivências tem em si,
dentro de si, um sinal duplo: é, de um lado, vivência de um eu, e de outro
lado, vivência de uma coisa; mas não encontramos nenhuma vivência que possa ser
considerada como isto que chamamos alma. Portanto, não podemos, sem
transgredir as leis essenciais do conhecimento, consiaerar a alma como uma
coisa a conhecer. Teríamos que extrair, tirar o tempo, que é o caminho ou o
trilho geral por onde discorrem nossas vivências, para encontrar fora do tempo
isto que chamamos alma, substância simples, imortal. Mas nós não podemos sair
do tempo, visto que o tempo é, juntamente com o espaço, a primeira das
condições de todo conhecimento possível. Assim a psicologia metafísica comete
uma transgressão, comete uma totalização indevida, apresentando-nos a
substância "alma" como algo fora do tempo.

151.   
Antinomias da razão pura.

Muito
mais interessante é a discussão que Kant consagra ao segundo grande problema da
metafísica: o problema do universo. O método de discussão nessa segunda parte consiste
naquilo que Kant chama antinomias da razão pura. Quer dizer o seguinte: se nós
adotamos o ponto de vista dos metafísicos e consideramos o universo como uma
coisa em si e tentamos predicar do universo propriedades metafísicas,
deparamos com este surpreendente resultado: que do universo podemos predicar
afirmações contraditórias, e, não obstante serem contraditórias, as duas
afirmações são igualmente demonstráveis, com igual força probatória. Cada uma
dessas contraposições de tese e antítese igualmente probatórias acerca do
Universo chama-as Kant antinomias; e descobre na metafísica quatro antinomias.

A
primeira antinomia é aquela em que se contrapõe a tese e antítese seguinte:
Tese: o universo tem um princípio no tempo e limites no espaço. Antítese: o
universo é infinito no tempo e no espaço. A segunda antinomia refere-se também
esta vez à estrutura do universo no espaço. A tese diz: tudo quanto existe no
universo está composto de elementos simples, indivisíveis. A antítese diz:
aquilo que existe no universo não está composto de elementos simples, mas de
elementos infinitamente divisíveis. Terceira antinomia. Nela diz Kant: o
universo deve ter tido uma causa que não seja por sua vez causada. A antítese
diz: o universo não pode ter uma causa que por sua vez não seja causada. A
quarta e última antinomia é uma variedade da terceira. Na quarta Kant diz na
tese: nem no universo nem fora dele pode haver um ser necessário; e na antítese
diz: no universo ou fora dele há de haver um ser que seja necessário. Como se
vê, é uma simples variante da anterior.

Verificamos,
pois, que, aceitando o ponto de vista metafísico acerca do universo, derivam-se
estas antinomias. Colocamo-nos numa situação tal, que podemos, acerca do
universo, emitir teses contraditórias e igualmente plausíveis aos olhos da pura
razão. Isto não pode ser. Tem que haver aqui uma falha, tem que haver aqui um
erro; e o erro consiste, segundo Kant, no seguinte. Nas duas primeiras antinomias,
que Kant chama matemáticas, a falha, o erro consiste em que o tempo e o espaço
foram tomados como coisas em si mesmas, em lugar de tomá-los como formas que
nossa faculdade de conhecer aplica ou imprime nos fenômenos. Claro está que,
tomando o espaço e o tempo como coisas em si mesmas, encontraremos que o espaço
tem que ter um princípio, um limite, e não tem que o ter; e que o tempo tem que
ter um começo e o não ter ao mesmo tempo. Mas isso provém de que tomamos o
espaço e o tempo como coisas em si mesmas, como realidades em si mesmas,
independentes do ato de conhecer. Coisa essa que não são. Por conseguinte, a
solução das duas primeiras antinomias consiste em dizer que são falsas as teses
e antíteses, porque se parte de um suposto contrário às leis e condições do
conhecimento.

Nas
duas últimas antinomias a solução para Kant é a  contrária. As teses e as antíteses
podem ser ambas verdadeiras. Por quê? Porque nas duas últimas antinomias as
teses se tomam no sentido ajustado às leis do conhecimento, como quando se pede
— com razão — que de todo ser, de toda realidade, exista uma causa que a
determine, e que esta por sua vez tenha uma causa, e esta por sua vez tenha uma
causa. Mas, ao contrário, as duas antíteses ultrapassam as condições de todo
conhecimento possível e se referem às coisas "em si mesmas." Pois
bem: suponhamos por um momento que exista uma via para chegar às coisas
metafísicas que não seja aquela do conhecimento científico. Suponhamos que
exista no campo da consciência humana – uma atividade que não seja a atividade
de conhecer, porém que possa conduzir-nos à apreensão ou captação das coisas
metafísicas. Então as teses e as antíteses serão perfeitamente compatíveis,
porque — dito na linguagem abstrusa de Kant, que já vou explicar — as teses são
válidas no mundo dos fenômenos, enquanto que as antíteses são válidas no mundo
dos noumenos. Que quer dizer Kant com isto? Quer dizer que se, com efeito, se
encontra uma via distinta da do conhecimento que nos conduza as coisas
metafísicas, então as teses são válidas para a ciência físico-matemática e as
antíteses são válidas para esta atividade não cognoscitiva que nos tenha
podido conduzir às realidades metafísicas.

152.  
A existência de Deus e suas provas.

Passa
Kant à terceira parte de seu estudo, que se refere à existência de Deus. Kant
encontra também, nas provas que tradicional mente se vêm dando da existência de
Deus, um erro de raciocínio, o qual consiste — como os anteriores — em eludir a
razão, as condições de todo conhecimento possível, de toda objetividade
possível.

Kant
agrupa as provas tradicionais da existência de Deus em três argumentos principais:
o argumento ontológico, o argumento cosmológico e o argumento
físico-teleológico.

O
argumento ontológico é aquele que Descartes nos expõe numa de suas Meditações
metafísicas. Descartes não foi o primeiro em expô-lo, mas provavelmente o
estudou já em Santo Anselmo. É o argumento que^todos recordamos: eu tenho a
idéia de um ser, de um ente perfeito; este ente perfeito tem que existir,
porque se não existisse faltar-lhe-ia a perfeição da existência e não seria
perfeito.

Kant
discute este argumento e mostra que a existência, aquilo que chamamos
existência, tem um sentido muito claro e muito completo na série das condições
do conhecimento possível. Existir, a existência, é uma categoria; e uma
categoria formal, como o espaço, o tempo, a causalidade, a substância, que nós
aplicamos, mas que não podemos legitimamente aplicar mais que a percepções
sensíveis. Se nós não aplicássemos a categoria de existência à percepção sensível,
teríamos de dizer, como Hume, que nossas percepções sensíveis são nada mais que
nossas, e que não lhes correspondem nada fora de nós. Mas justamente o
aplicarmos às percepções sensíveis a categoria de existência, de substância, de
causa, é o ato pelo qual estabelecemos os objetos a conhecer, os fenômenos.
Este é o sentido da existência. De modo que para afirmar que algo existe não é
suficiente ter a idéia deste algo, mas ademais há de se ter a percepção
sensível correspondente; tê-la ou poder tê-la. É assim que de Deus não temos,
não podemos ter a percepção sensível correspondente; logo não podemos em
virtude de sua idéia, afirmar sua existência. Ou, dito de outro modo, podemos
dizer: eu tenho a idéia de um ente perfeito e tenho a idéia de que este ente
perfeito existe, porque na idéia de um ente perfeito está contida a idéia da existência.
Porém, não saímos da idéia. A existência autêntica, ou, como diz Kant,
"aquilo que diferencia cem táleres realmente existentes de cem táleres
ideais" não é mais que isto: que os cem táleres reais são sensíveis,
perceptíveis. E isso é justamente que falta à idéia de Deus.

Depois
examina Kant o argumento cosmológico. Consiste em ir enumerando séries de
causas até ter que chegar a deter-se numa causa incausada, que é Deus. Para
Kant o erro do raciocínio consiste em que so deixa de aplicar de repente a categoria
de causalidade sem motivo algum.

Kant
examina, por último, o argumento físico-teleológico, que é o argumento popular
por excelência, é o da finalidade. Ê o de descrever e descobrir na Natureza
uma porção de formas reais de coisas (como, por exemplo, a maravilha da
estrutura do olho humano ou o maravilha dos organismos animais), formas cujas
engrenagens e conjunturas várias não podem realmente explicar-se senão supondo
uma inteligência criadora que lhes tenha impresso estas formas tão perfeitamente
engrenadas para a realização dos fins. Porém Kant alega também aqui que o
conceito de fim é um desses conceitos metódicos que nós fazemos para a
descrição da realidade, mas do qual não podemos tirar nenhuma outra
conseqüência, senão que tal ou qual forma é adequada a um fim. Não podemos, sem
ultrapassarmos os limites da experiência, tirar dessa adequação a um fim
conclusões referentes ao criador dessas formas.

Em
definitivo, Kant pretende demonstrar em cada uma das argumentações da
metafísica o pecado que todas elas cometem, e que consiste em que ultrapassam
os limites da experiência; em que aplicam as categorias ou não as aplicam,
segundo a sua vontade; em que tomam por objeto a conhecer, aquilo que não é
objeto a conhecer, mas coisa em si mesma. A metafísica, segundo ele, comete a
falha essencial de querer conhecer o incognoscível. É, pois, uma disciplina impossível.
À pergunta: é possível a metafísica?, Kant responde dizendo radicalmente: não é
possível.

B)  
CRÍTICA DA RAZÃO PRATICA

153.  
Outra via para a metafísica.

A
conclusão a que chega a Crítica da razão pura é a impossibilidade da
metafísica como ciência, como conhecimento científico, que pretende a contradição
de conhecer, e conhecer coisas em si mesmas. Visto que conhecer é uma atividade
regida por um certo número de condições que tornam as coisas objetos ou
fenômenos, existe uma contradição essencial na pretensão metafísica de conhecer
coisas em si mesmas. Porém, se a metafísica é impossível como conhecimento
científico, ou, como diz Kant, teorético, especulativo, não quer dizer que seja
impossível em absoluto. Poderia haver talvez outras vias, outros caminhos que
não fossem os caminhos do conhecimento, mas que conduzissem aos objetos da
metafísica. Se existissem esses outros caminhos que, com efeito, conduzissem
aos objetos da metafísica, então a Crítica da razão pura teria feito um grande
bem à própria metafísica; porque, se bem teria demonstrado a impossibilidade
para a razão teorética de chegar por meio do conhecimento a esses objetos, demonstraria
também a impossibilidade dessa mesma razão teorética destruir as conclusões
metafísicas que se consigam por outras vias distintas do conhecimento.

Resta-nos
agora examinar o problema de se existem, com efeito, essas outras vias e quais
são. Kant pensa, com efeito, que atrás do exame crítico da razão pura existem
uns caminhos que conduzem aos objetos da metafísica, mas que não são os
caminhos do conhecimento teorético-científico. Quais são esses caminhos?

Nossa
personalidade humana não consta somente da atividade de conhecer. Mais ainda: a
atividade de conhecer, o esforço para situar-nos diante das coisas para
conhecê-las, é somente uma de tantas atividades que o homem exerce. O homem
vive, trabalha, produz: o homem faz comércio com outros homens, edifica casas,
estabelece instituições morais, políticas e religiosas; por conseguinte, o
vasto campo da atividade humana ultrapassa de longe a simples atividade do
conhecimento.

 

154. A consciência moral ou razão prática.

     
 

Entre
outras, existe uma forma de atividade espiritual que podemos condensar no nome
de "consciência moral". A consciência moral contém dentro de si um
certo número de princípios em virtude dos quais os homens regem sua vida.
Ajustam sua conduta a esses princípios, e, de outra parte, têm neles uma base
para formular juízos morais acerca de si mesmos e de quanto os rodeia. Essa
consciência moral é um fato, um fato da vida humana, tão real, tão efetivo, tão
inabalável como o fato do conhecimento.

Vimos
que Kant, na sua crítica do conhecimento, parte do fato do conhecimento, parte
da realidade histórica do conhecimento, Pois igualmente existe no âmbito da
vida humana o fato da consciência moral. Existe essa consciência moral, que
contém princípios tão evidentes, tão claros como possam ser os princípios do
conhecimento, os princípios lógicos da razão. Existem juízos morais que são também
juízos, como podem sê-lo os juízos lógicos da razão raciocinante.

pois
bem: nesse conjunto de princípios que constituem a consciência moral encontra
Kant a base que pode conduzir o homem à apreensão dos objetos metafísicos. A
esse conjunto de princípios de consciência moral dá Kant um nome. Ressuscita,
para denominá-lo, os termos de que se valeu para isso mesmo Aristóteles.
Aristóteles chama a consciência moral e seus princípios "razão
prática" (nous practikós). Kant ressuscita essa denominação, e ao
ressuscitá-la e aplicar à consciência moral o nome de razão prática, fá-lo
precisamente para mostrar, para fazer patente e manifesto que na consciência mo
ral atua algo que, sem ser a razão especulativa, se assemelha à razão, são
também princípios racionais, princípios evidentes, dos quais podemos julgar
por meio da apreensão interna de sua evidência. Portanto, pode chamá-los
legitimamente razão. Porém não é a razão enquanto se aplica ao conhecimento;
não é a razão encaminhada a determinar a essência das coisas, aquilo que as
coisas são, mas é a razão aplicada à ação, à prática, aplicada à moral.

Pois
bem. Uma análise desses princípios da consciência moral conduz Kant aos
qualificativos morais; por exemplo, bom, mau, moral, imoral, meritório,
pecaminoso etc. Estes qualificativos morais, estes predicados morais que nós
muitas vezes costumamos estender às  coisas, não  convém todavia  às  coisas.
Dizemos   que  esta  coisa ou aquela coisa é boa ou má; mas, em rigor, as
coisas não são boas nem más, porque nas coisas não há mérito nem demérito. Por
conseguinte, os qualificativos morais não podem predicar-se das coisas, que
são indiferentes ao bem e ao mal; só podem predicar-se do homem, da pessoa
humana. Somente o homem, a pessoa humana é verdadeiramente digno de ser
chamado bom ou mau. As demais coisas que não são o homem, como os animais, os
objetos, são aquilo que são, porém não são bons nem maus.

Por
que é o homem o único ser do qual pode, em rigor, predicar-se a bondade e a
maldade moral? Pois é porque o homem realiza atos e na realização desses atos o
homem faz algo, estatui uma ação, e nessa ação podemos distinguir dois
elementos: aquilo que o homem faz efetivamente e aquilo que quer fazer. Feita
esta distinção entre aquilo que faz e aquilo que quer fazer, notamos imediatamente
que os predicados bom, mau, os predicados morais, não correspondem tampouco
àquilo que o homem faz efetivamente, mas corresponde estritamente àquilo que
quer fazer. Se uma pessoa comete um homicídio involuntário, este ato
evidentemente é uma grande desgraça, porém não pode qualificar-se de bom nem de
mau aquele que o cometeu. Não, pois, ao conteúdo dos atos, ao conteúdo efetivo;
não, pois, à matéria do ato que convém os qualificativos morais de bom ou mau,
mas à vontade mesma do homem .

Esta
análise conduz à conclusão de que a única coisa que verdadeiramente pode ser
boa ou má é a vontade humana. Uma vontade boa ou uma vontade má.

155.   
Imperativo hipotético e imperativo categórico.

Então
o problema que se apresenta é o seguinte: que é, em que consiste a vontade boa?
Que chamamos uma vontade boa? Aprofundando-se nesta direção, Kant adverte que
todo ato Voluntário se apresenta à razão, à reflexão, na forma de um
imperativo. Com efeito; todo ato, no momento de iniciar-se, de começar a
realizar-se, aparece à consciência sob a forma de mandamento: há que se fazer
isto, isto tem que ser feito, isto deve ser feito, faz isto. Essa forma de imperativo,
que é a rubrica geral em que se contém todo ato imediatamente possível,
especifica-se segundo Kant em duas classes de imperativos; os que ele chama
imperativos hipotéticos e os imperativos categóricos.

A
forma lógica, a forma racional, a estrutura interna do imperativo hipotético,
é aquela que consiste em sujeitar o mandamento, ou imperativo mesmo, a uma
condição. Por exemplo: "Se queres sarar de tua doença, toma o
remédio." O imperativo é "toma o remédio"; porém esse imperativo
está limitado, não é absoluto, não é incondicional, antes está colocado sob a
condição "de que queiras sarar". Se me respondes: "Não quero
sarar", então não é válido o imperativo. O imperativo: "Toma o
remédio" é, pois, válido somente sob a condição de que "queiras
sarar".

Pelo
contrário, outros imperativos são categóricos: justamente aqueles em que a
imperatividade, o mandamento, o mandado, não está colocado sob condição
nenhuma. O imperativo então impera, como diz Kant, incondicionalmente,
absolutamente; não relativa e condicionalmente, mas de um modo total, absoluto
e sem limitações. Por exemplo: os imperativos da moral costumam formular-se
desta maneira, sem condições: "Honra teus pais", "não mates
outro homem", enfim, todos os mandamentos morais bem conhecidos.

A
qual desses dois tipos de imperativos corresponde o que chamamos a moralidade?
Evidentemente, a moralidade não é o mesmo que a legalidade. A legalidade de um
ato voluntário consiste em que a ação seja conforme e esteja ajustada à lei.

Porém não basta que uma ação seja conforme e esteja ajustada à lei para que
seja moral; não basta que uma ação seja legal para que seja moral. Para que uma
ação seja moral é mister que aconteça algo não na ação mesma e na sua
concordância com a lei, mas no instante que antecede à ação, no ânimo ou
vontade daquele que a executa. Se uma pessoa ajusta perfeitamente seus atos à
lei, porém os ajusta à lei porque teme o castigo conseqüente ou apetece a
recompensa conseguinte, então dizemos que a conduta íntima, a vontade íntima
dessa pessoa não é moral. Bara nós, para a consciência moral uma vontade que se
resolve a fazer o que faz por esperança de recompensa ou por temor de castigo,
perde todo o valor moral. A esperança de recompensa e o temor do castigo
menoscabam a pureza do mérito moral. Pelo contrário, dizemos que um ato moral
tem pleno mérito moral quando a pessoa que o realiza determinou-se a realizá-lo
unicamente porque esse é o ato moral devido.

Pois
bem: se agora traduzimos isto à formulação, que antes explicávamos, do
imperativo hipotético e do imperativo categórico, advertimos desde já que os
atos em que não há a pureza moral exigida, os atos em que a lei foi cumprida
por temor do castigo ou por esperança de recompensa, são atos nos quais, na
interioridade do sujeito, o imperativo categórico tornou-se habilmente
imperativo hipotético. Em lugar de escutar a voz da consciência moral, que diz
"obedece a teus pais", "não mates teu próximo", este
imperativo categórico converte-se neste outro hipotético: "se queres que
não te aconteça nenhuma coisa desagradável, se queres não ir ao cárcere, não
mates teu próximo." Então o determinante aqui foi o temor; e esta determinação
de temor tornou o imperativo (que na consciência moral é categórico) um
imperativo hipotético; e o tornou hipotético ao colocá-lo sob essa condição e
transformar a ação num meio para evitar tal ou qual castigo ou para obter tal
ou qual recompensa.

Então
diremos que para Kant uma vontade é plena e realmente pura, moral, valiosa,
quando suas ações estão regidas por imperativos autenticamente categóricos.

Se
agora quisermos formular isto em termos tirados da lógica, diremos que em toda
ação há uma matéria, que é aquilo que se faz ou aquilo que se omite, e há uma
forma, que é o por que se faz ou o por que se omite. E então a
formulação será: uma ação denota uma vontade pura e moral quando é feita
não por consideração ao conteúdo empírico dela, mas simplesmente por respeito
ao dever; quer dizer, como imperativo categórico e não como imperativo
hipotético. Mas este   respeito   ao   dever   é   simplesmente   a  
consideração   à   forma   do "dever", seja qual for o conteúdo
ordenado nesse dever. E essa consideração à forma pura proporciona a Kant a
fórmula conhecidíssima do imperativo categórico, ou seja, a lei moral
universal, que é a seguinte: "Age de maneira que possas querer que o
motivo que te levou a agir seja uma lei universal." Esta exigência de que
a motivação seja lei universal vincula inteiramente a moralidade à pura forma
da vontade, não a seu conteúdo.

156.  
Autonomia e heteronomia.

Outra
segunda conseqüência que tem isto para Kant é a necessidade de expressar a lei
moral (e o seu correlato no sujeito, que é a vontade moral pura) numa concepção
em que fique perfeitamente esclarecido o fundamento desta lei moral de um lado
e esta vontade pura do outro. E esta concepção encontra-a Kant distinguindo
entre autonomia e heteronomia da vontade. A vontade é autônoma quando ela dá a
si mesma sua própria lei; é heterônoma quando recebe passivamente a lei de algo
ou de alguém que não é ela mesma. Pois bem; todas as éticas que a história
conhece, e nas quais os princípios da moralidade são encontrados em conteúdos
empíricos da ação, resultam necessariamente heterônomas; consistem
necessariamente em apresentar um tipo de ação para que o homem ajuste sua
conduta à ela. Mas esse homem, então, por que ajustará a sua conduta a esse tipo
de ação? Porque terá em consideração as conseqüências que esse tipo de ação vai
acarretar-lhe. Toda ética, como o hedonismo, o eudemonismo, ou como as éticas
de mandamentos, de castigos, de penas e recompensas, são sempre heteronômas,
porque nesse caso o fundamento determinante da vontade é sempre a consideração
que o sujeito há de fazer daquilo que vai acontecer-lhe se cumpre ou não
cumpre.                                                                     

Somente
é autônoma aquela formulação da lei moral que coloca na vontade mesma a origem
da própria lei. Pois bem; isto obriga a que a própria lei que se origina na
vontade mesma não seja uma lei de conteúdo empírico, mas uma lei puramente
formal. Por isso a lei moral não pode consistir em dizer: fase isto", ou
"fase aquilo", mas em dizer: "o que quer que faças, faze-o por
respeito à lei moral. Por isso a moral não pode consistir numa série de
mandamentos, com um conteúdo empírico ou metafísico determinado, mas tem que
consistir na acentuação do lugar psicológico, o lugar da consciência, em que
reside o meritório, em que o meritório não é ajustar a conduta a tal ou qual
preceito, mas o por que se ajusta a conduta a tal ou qual preceito; quer dizer,
na universalidade e necessidade não do conteúdo da lei, mas da lei mesma. Isto
é que formula Kant dizendo: "Age de tal maneira que o motivo, o princípio
que te leve a agir, possas tu querer que seja uma lei universal".

157.  
A liberdade.

Mas
esta autonomia da vontade nos abre já uma pequena porta em direção  àquilo que
desde o princípio desta lição estamos procurando; abre-nos já uma pequena porta
fora do mundo dos fenômenos, fora do mundo dos objetos a conhecer, fora da
espessa rede de condições que o ato de conhecimento pôs sobre todos os
materiais com que se faz o conhecimento. Porque se a vontade moral pura é
vontade autônoma, então isso implica necessária e evidentemente no postulado da
liberdade da vontade. Pois como poderia ser autônoma uma vontade que não fosse
livre? Como poderia ser a vontade moralmente meritória, digna de ser
qualificada de boa ou de má, se a vontade estivesse sujeita à lei dos
fenômenos, que a causalidade, a lei de causas e efeitos, a determinação natural
dos fenômenos?

Na
Crítica da razão pura vimos que nossas impressões, quando recebem as formas do
espaço, do tempo e das categorias, se tornam objetos reais, objetos a conhecer
pela ciência. Este conhecimento da ciência consiste em ligar indissolüvelmente
todos os fenômenos uns aos outros, por meio da causalidade, da substância, da
ação recíproca e pelas formas e figuras da causalidade, da substância, da ação
recíproca e pelas formas e figuras no espaço e dos números no tempo.

Pois
bem: se nossa vontade, nas suas decisões internas estivesse irremediavelmente
sujeita, como qualquer outro fenômeno da física, à lei da causalidade sujeita a
um determinismo natural, então, que sentido teria que nós vituperássemos o
criminoso ou venerássemos o santo? Porém é um fato que nós censuramos ao mau,
vituperamo-lo; e é um fato também que nós respeitamos ao santo, louvamo-lo e o
aplaudimos. Esta valorização que fazemos de uns homens no sentido positivo e de
outros no sentido negativo (pejorativo) é um fato. Que sentido teria este fato
se a vontade não fosse livre? É, pois, absolutamente evidente, tão evidente
como os princípios elementares das matemáticas, que a vontade tem que ser
livre, sob pena de que se tire a conclusão de que não há moralidade, de que o
homem não merece nem aplausos nem censuras.

Pois
bem; se a consciência moral é um fato, tão fato como o fato da ciência, e se do
fato da ciência extraímos as condições da possibilidade do conhecimento
científico, igualmente do fato da consciência moral temos que extrair também
as condições da possibilidade da consciência moral. E uma primeira condição da
possibilidade da consciência moral é que postulemos a liberdade da vontade. Mas
se a vontade é livre, é que então entramos em contradição com a Natureza? Se a
vontade é livre, então parece como se na rede de malhas das coisas naturais
tivéssemos cortado um fio, rompido um fio. Entramos, pois, por acaso, em
contradição com a Natureza? Não; não entramos em contradição com a Natureza.
Aqui, neste ponto, é que se concentram todas as precauções com que Kant teve de
desenvolver a Crítica da razão pura. Nela Kant foi advertindo constantemente
que o conhecimento físico, científico, é conhecimento de fenômenos, de objetos
a conhecer, mas não de coisas em si mesmas. Todavia a consciência moral não é
conhecimento. Não nos apresenta a realidade essencial de algo, mas antes é um
ato de valorização, não de conhecimento, que nos coloca em contacto direto com
outro mundo, que não é o mundo dos fenômenos, que não é o mundo dos objetos a
conhecer, mas o mundo puramente inteligível, no qual não se trata já do espaço,
do tempo, das categorias; no qual espaço, tempo e categorias não têm nada a
fazer; é o mundo de umas realidades supra—sensíveis, inteligíveis, às quais
não chegamos como conhecimento, mas como diretas intuições de caráter moral que
nos põem em contacto com essa outra dimensão da consciência humana que é a
dimensão não cognoscitiva, mas valorizadora e moral. De modo que nossa
personalidade total é a confluência de dois focos, por assim dizer: um, nosso
eu como sujeito cognoscente, que se expande amplamente sobre a Natureza na sua
classificação em objetos, na reunião e concatenação de causas e efeitos e seu
desenvolvimento na ciência, no conhecimento científico, matemático, químico,
biológico, histórico etc. Mas, ao mesmo tempo esse mesmo eu, que quando conhece
se põe a si mesmo como sujeito cognoscente, esse mesmo eu é também consciência
moral, e sobrepõe a todo esse espetáculo da Natureza, sujeita às leis naturais
de causalidade, uma atitude estimativa, valorizadora, que se refere a si mesmo,
não como sujeito cognoscente, mas como ativo, como agente; e que se refere aos
outros homens na mesma relação.

Assim,
pois, a consciência moral nos entreabre um pouco o véu que encobre este outro
mundo inteligível das almas e consciências morais, das vontades morais, que
nada tem a ver com o sujeito cognoscente.

158. A imortalidade.

O
primeiro postulado com que Kant inaugura a metafísica, extraindo-a da ética, é esse
postulado da liberdade. E uma vez que, por meio desse postulado da Liberdade,
pusemos pé nesse mundo inteligível de coisas "em si" que está além
do mundo sensível, num plano ulterior ao mundo sensível dos fenômenos, podemos
prosseguir! nossa tarefa de postulação, e encontramos imediatamente o segundo
postulado da razão prática, que é o postulado da imortalidade.

Se a
vontade humana é livre, se a vontade humana nos permite penetrar nesse mundo
inteligível, isto nos ensina que esse mundo inteligível não está sujeito às
formas de espaço, de tempo e categorias. Isto já é suficiente. Se nosso eu,
como pessoa moral, não está sujeito ao espaço, tempo e categorias, não tem
sentido para ele falar de uma vida mais ou menos longa ou mais ou menos curta.
O tempo não existe aqui; o tempo é uma forma aplicável a fenômenos. aplicável a
objetos a conhecer, a esses objetos que estão esperando aí, com seu ser, que eu
atinja esse ser pelos meios metódicos da ciência. Porém a alma humana, a
consciência humana moral, a vontade livre, é alheia ao espaço e ao tempo. De
outra parte, essa liberdade da vontade, concebe-a Kant de duas maneiras: da
maneira metafísica que acabo de explicar, e de outra maneira que é, por assim
dizer, histórica. No decurso de nossa própria vida, nesse mundo sensível dos
fenômenos, cada uma de nossas ações pode, com efeito, e deve ser considerada de
dois pontos de vista distintos. Considerada como um fenômeno que se efetua no
mundo, tem suas causas e está integralmente  determinada.  Mas   considerada
como  a   manifestação  de uma vontade, não cai sob o aspecto da causa e da
determinação, mas sob o aspecto do dever. Então, sob o aspecto do moral ou
imoral, dentro de nossa vida concreta, no mundo dos fenômenos, para que cumpra
integralmente a lei moral é preciso que cada vez mais, de um modo progressivo,
como quem se aproxima de um ideal da razão pura, o domínio da vontade livre
sobre a vontade psicológica e determinada seja cada vez mais íntegro e
completo. Se o homem pudesse, por quaisquer meios, da educação, da pedagogia,
ou como for, purificar cada vez mais sua vontade no sentido de que essa
vontade pura e livre dependesse só da lei moral; se o homem tomasse consciência
dessa tarefa cada vez mais, sujeitando e dominando a vontade psicológica
empiricamente determinada, teríamos realizado um ideal, teríamos um ideal
cumprido. Ter-se-ia cumprido o ideal daquilo que Kant chama a
"santidade". Kant chama santo a um homem que dominou por completo,
aqui, na experiência, toda determinação moral oriunda dos fenômenos concretos,
físicos, fisiológicos, psicológicos para sujeitá-los à lei moral. Mas a isto
que Kant chama santidade não se lhe pode conceder outro tipo de realidade que a
realidade ideal. Mas se esta realidade ideal é o único tipo de realidade que
pode se lhe conceder neste mundo fenomênico, em troca, nesse outro mundo
metafísico das coisas "em si mesmas" — para as quais nos oferece uma
leve e ligeira abertura o postulado da liberdade — nesse outro mundo, esse
ideal se realiza. Isto é tudo quanto contém nossa crença inabalável na
imortalidade da alma.

159.  
Deus.

Finalmente,
o terceiro postulado da razão prática é a existência de Deus. A existência de
Deus é igualmente trazida pelas necessidades evidentes da estrutura
inteligível moral do homem. Porque nessa estrutura inteligível moral do homem,
que nos permitiu chegar a esse mundo de coisas em si, que não é o mundo dos
fenômenos, aí nos encontramos cora um certo número de condições metafísicas que
hão de se cumprir, visto que são condições da consciência moral humana. Já
vimos uma delas: a liberdade da vontade. Outra delas é a imortalidade da alma.
A terceira é a garantia de que neste mundo não há abismo entre o ideal e a
realidade; a certeza de que neste mundo não há separação ou diferenciação entre
aquilo que eu queria ser e aquilo que sou. Entre aquilo que minha consciência
moral quer que eu seja e aquilo que a fraqueza humana no campo do fenomênico
faz que seja.

A
característica de nossa vida moral, concreta, neste mundo fenomenológico é a
tragédia, a dor, a dilaceracão profunda que produz em nós essa distância, esse
abismo entre o ideal e a realidade. A realidade fenoménica está regida pela
natureza, pela engrenagem natural de causas e efeitos, que são cegos para os
valores morais. Porém nós não somos cegos para os valores morais, antes, ao
contrário, os percebemos, e constatamos que na nossa vida pessoal, na vida pessoal
dos demais, na vida histórica, esses valores morais, a justiça, a beleza, a
bondade, não estão realizados. Na nossa vida, verificamos que quereríamos ser
santos, mas não o somos, antes somos pecadores. Na nossa vida coletiva
comprovamos que quereríamos que a justiça fosse total, plena e completa, mas
constatamos que muitas vezes prevalece a injustiça e o crime. E na vida
histórica acontece a mesma coisa.

Há,
pois, essa tragédia do abismo que dentro de nossa vida fenomênica, neste
mundo, existe entre a consciência moral, que tem exigências ideais, e a
realidade fenomênica, que, cega para essas exigências ideais, segue seu curso
natural de causas e efeitos, sem se preocupar em nada da realização desses
valores morais. Portanto, ú absolutamente necessário, que após este mundo num
lugar metafísico além deste mundo, esteja realizada esta plena conformidade entre
aquilo que "é" no sentido de realidade e aquilo que "deve
ser" no sentido da consciência moral.

Esse
acordo entre aquilo que "é" e aquilo que "deve ser", que
não se dá na nossa vida fenomênica, porque nela predomina a causalidade física
e natural, é um postulado que requer uma unidade sintética superior entre esse
"ser" e o outro "deve ser". A essa união ou unidade
sintética do mais real que pode haver com o mais ideal que pode haver, chama
Kant Deus. Deus é, pois, aquele ente metafísico no qual a mais plena realidade
está unida à mais plena ideali-dade; em que não há a menor divergência entre
aquilo que se considera bom mas não existente e aquilo que se considera
existente. Pensamos um ideal de beleza, de bondade, e aquilo que encontramos
ao nosso redor e dentro de nós mesmos está bem distante desse ideal de beleza e
de bondade. Mas então necessariamente tem que haver, além do mundo fenomênico
em que nós nos movemos, um ente no qual, com efeito, esta aspiração nossa, de
que o real e o ideal estejam perfeitamente unidos, em síntese, se realize. Esse
ente é, justamente, Deus.

Assim,
pois, por estes caminhos, que não são os caminhos do conhecimento científico,
mas que são vias que têm sua origem na consciência moral, na atividade da
consciência moral, não na consciência cognoscente, por esses caminhos chega
Kant aos objetos metafísicos que na Crítica da razão pura declarara
inacessíveis para o conhecimento teórico.

160.  
Primazia da Razão prática.

Por
isso termina, em geral, toda a filosofia de Kant com uma grande idéia, que é
ao mesmo tempo o cume mais alto onde chega o idealismo científico do século
XVIII, e do alto do qual se descortinam os novos panoramas da filosofia do
século XIX.

Kant
escreveu nos fins do século XVIII, e termina seu sistema filosófico com a
proclamação da primazia da razão prática sobre a razão pura.

A
razão prática, a consciência moral e seus princípios, tem a primazia sobre a
razão pura. Que quer dizer isto? Quer dizer: primeiro, que, com efeito, a razão
prática tem uma primazia sobre a razão pura teórica, no sentido de que a razão
prática, a consciência moral, pode lograr aquilo que a razão teórica não logra,
conduzindo-nos às verdades da metafísica, conduzindo-nos àquilo que existe
realmente, conduzindo-nos a esse mundo de puras almas racionais, livres, e que
ao mesmo tempo são santas. De modo que essa liberdade não é uma liberdade de
indiferença, mas vontade de santidade, vontade livre, regida pelo Supremo
Criador, que é Deus, no qual o ideal e o real entram em identificação.

A
consciência moral, pois, a razão prática, ao conseguir nos conduzir até essas
verdades metafísicas das coisas que existem verdadeiramente, tem primazia
sobre a razão teórica. Mas, ademais, a razão teórica está, de certo modo, ao
serviço da razão prática, porque a razão teórica não tem por função mais que o
conhecimento deste mundo real, subordinado, dos fenômenos, que é como um
trânsito ou passagem ao mundo essencial dessas "coisas em si mesmas"
que são Deus, o reino das almas livres e as vontades puras.

A
realidade histórica então, pode qualificar-se como mais ou menos próxima dessas
realidades ideais. A realidade histórica, então, adquire sentido. Podemos dizer
que tal época é melhor que tal outra, porque, como já temos com as idéias e os
postulados da razão prática um ponto de perfeição ao qual referir a relativa
imperfeição da história, então cada um dos períodos históricos se ordena nessa
ordem de progresso ou regresso. A história aparece no horizonte da filosofia como
um problema ao qual a filosofia imediatamente vai deitar a mão.

Assim,
do alto dessa primazia da razão prática, descortinamos já os novos problemas
que a filosofia vai apresentar depois de Kant. Estes problemas são,
principalmente, dois: primeiro, a explicação da história, a teoria da história,
o esforço para dar conta dessa ciência chamada história, e depois o propósito
de pôr a vontade, a ação, a prática, a moral por cima da teoria e do puro
conhecimento.

Alguns
dos sucessores de Kant cumprem esse programa com notório relevo: deles nos
ocuparemos na próxima lição.

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