cap. 22 – Ontologia dos Valores – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XXII

ONTOLOGIA DOS VALORES
190.  
O   NÃO-SER DOS  VALORES.   — 191.  OBJETIVIDADE  
DOS   VALORES.  — 192. A QUALIDADE. — 19S. — A
POLARIDADE. — 194. A HIERARQUIA. — 195.CLASSIFICAÇÃO  
DOS   VALORES.

Na
lição anterior tivemos ensejo de assinalar e descrever com certo discernimento
as categorias regionais ônticas da esfera das coisas reais e da esfera dos
objetos ideais. Verificamos que essas categorias ônticas dessas duas esferas
da objetividade têm alguns elementos comuns: têm de comum, pelo menos, a
categoria do ser. Tanto as coisas reais quanto os objetos ideais, são. Depois
encontramos diferenças estruturais em cada uma dessas duas regiões. O ser das
coisas é um ser real, quer dizer, temporal e causai; enquanto ao ser dos
objetos ideais chamávamo-lo ideal porque não é temporal nem causal.   

                                                                   

190.   
O não-ser dos valores.

 

Terminávamos
a lição anterior anunciando que na atual íamos nos ocupar de outra esfera
ontológica, que já assinalávamos na primeira destas lições sobre ontologia, e
que é a esfera dos valores. Constatáramos que na nossa vida há coisas reais, há
objetos ideais e há também valores. Pois bem; em que sentido há tudo isto? Em
que sentido há coisas reais, objetos ideais e valores? Há em minha vida, em
nossa vida, as coisas reais e objetos ideais no sentido de ser. Agora, porém,
devemos perguntar-nos em que sentido há valores em nossa vida.

Se
retornamos à consideração existencial primária que nos serviu de ponto de
partida, ou seja nós vivendo, verificamos que as coisas de que se compõe o
mundo, no qual estamos, não são indiferentes, antes essas coisas têm todas elas
um acento peculiar que as faz. ser melhores ou piores, boas ou más, belas ou
feias, santas ou, profanas. Por conseguinte, o mundo no qual estamos não é
indiferente. A não-indiferença do mundo e de cada uma das coisas que constituem
o mundo em que consiste? Consiste em que não há coisa alguma diante da qual não
adotemos uma posição positiva ou negativa, uma posição de preferência. Por
conseguinte, objetivamente visto, visto do lado do objeto, não há coisa alguma
que não tenha um valor. Umas serão boas, outras más, umas úteis, outras
prejudiciais; porém nenhuma absolutamente indiferente.

Pois
bem; quando de uma coisa enunciamos que é boa, má, bela, feia, santa ou
profana, que é que enunciamos dela? A filosofia atual emprega muitas vezes a
distinção entre juízos de existência e juízos de valor; é esta uma distinção
freqüente na filosofia, e assim os juízos de existência serão aqueles juízos
que enunciam de uma coisa aquilo que essa coisa é, enunciam propriedades,
atributos, predicados dessa coisa, que pertencem ao ser dela, tanto do ponto de
vista da existência dela como ente, como do ponto de vista da essência que a
define. Em frente a estes juízos de existência, a filosofia contemporânea põe
ou contrapõe os juízos de valor. Os juízos de valor enunciam acerca de uma
coisa algo que não acrescenta nem tira nada do cabedal existencial e essencial
da coisa. Enunciam algo que não se confunde nem com o ser enquanto existência
nem com o ser enquanto  essência de.coisa. Se dizemos, por exemplo, que uma
ação é justa ou ‘ injusta, o significado por nós no termo justo ou injusto não
se refere à realidade da ação, nem enquanto efetiva e existencial, nem quanto
aos elementos que integram sua essência.

Então
daqui puderam tirar-se duas conseqüências. A primeira conseqüência é a
seguinte: os valores não são coisas nem elementos das coisas. E dessa
conseqüência primeira tirou-se esta outra segunda conseqüência: dado que os
valores não são coisas nem elementos das coisas, então os valores são impressões
subjetivas de agrado ou desagrado que as coisas nos produzem e que nós
projetamos sobre as coisas. Recorreu-se então ao mecanismo da projeção
sentimental; recorreu-se ao mecanismo de uma objetivação e se disse: essas impressões
gratas ou ingratas que as coisas nos produzem, nós as tiramos do nosso eu
subjetivo e as projetamos e objetivamos nas coisas mesmas e dizemos que as
coisas mesmas são boas ou más, ou santas ou profanas.

Mas
se considerarmos atentamente esta conseqüência que se extraiu, teremos que
chegar à conclusão de que é errônea, de que não é verdadeira. Supõe esta teoria
que os valores são impressões subjetivas de agrado ou de desagrado; porém esta
teoria não percebe que o agrado ou desagrado subjetivo não é de fato nem pode
ser de direito jamais critério do valor. O critério do valor não consiste no
agrado ou desagrado que nos produzam as coisas, mas em algo completa mente
distinto; porque uma coisa pode produzir-nos agrado, e, não obstante, ser para
nós considerada como má, e pode produzir-nos de sagrado e ser por nós
considerada como boa. Nem outro é o sentido contido dentro do conceito do
pecado. O pecado é grato, mas mau Nem outro é o sentido contido no conceito do
"caminho íngreme dá virtude". A virtude é difícil de praticar,
desagradável de praticar e, não obstante, reputamo-la boa. Como diz o poeta
latino: Video melio ra proboque, deteriora sequor: "Vejo o melhor e o
aprovo, e pratico o pior." por conseguinte, a série das impressões
subjetivas de agrado ou desagrado não coincide, nem de fato nem de direito, com
as determinações objetivas do valor e do não-valor. Este argumento me parece
decisivo. Mas se fosse pouco, poderiam acrescentar-se alguns mais; dentre
outros, o seguinte: acerca dos valores, há discussão possível; acerca do agrado
ou desagrado subjetivo não há discussão possível. Se eu digo que este quadro me
é desagradável e doloroso, ninguém pode negá-lo, já que ninguém pode comprovar
que o sentimento subjetivo que o quadro me produz é como eu digo ou não, pois
enuncio algo cuja existência na realidade é íntima e subjetiva no meu eu. Se eu
afirmo, porém, que o quadro é belo ou feio, disso se discute, e se discute do
mesmo modo que se discute acerca de uma tese científica, e os homens podem
chegar a convencer-se uns aos outros de que o quadro é belo ou feio, não
certamente por razões ou argumentos como nas teses científicas, mas por
exibição dos valores Não se pode demonstrar para ninguém que o quadro é belo,
como se demonstra que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos;
porém pode-se-lhe mostrar a beleza; pode-se-lhe descortinar o véu que cobre
para ele a intuição da beleza; pode-se-lhe fazer ver a beleza que ele não viu,
assinalando-lha, dizendo-lhe: "veja, olhe", que é a única maneira de
fazer quando se trata destes objetos.

191.  
Objetividade dos valores.

Por
conseguinte, dos valores pode-se discutir, e se se pode discutir dos valores é
porque na base da discussão está a convicção profunda de que são objetivos, de
que estão aí e de que não são simplesmente o resíduo de agrado ou desagrado, de
prazer ou de dor, que fica na minha alma depois da contemplação do objeto.

De
outra parte, poderíamos acrescentar que os valores se descobrem. Descobrem-se
como se descobrem as verdades científicas. Durante um certo tempo o valor não
é conhecido como tal valor, até que chega na história um homem ou um grupo de
homens que de repente têm a possibilidade de intuí-lo, e então o descobrem, no
"sentido pleno da palavra "descobrir". E aí está. Mas então não
aparece diante deles como algo que antes não era e agora é, mas como algo que
antes não era intuído e agora é intuído.

De
modo que a dedução ou conseqüência que contra a objetividade dos valores se
extrai do fato de não serem os valores coisas, é um? conseqüência excessiva;
porque pelo fato de os valores não serem coisas, não estamos autorizados a
dizer que sejam impressões puramente subjetivas da dor ou do prazer. Isto,
porém, nos apresenta uma dificuldade profunda.

De
um lado, vimos que, como quer que os juízos de valor se distinguem dos juízos
de existência, porque os juízos de valor não enunciam nada acerca do ser,
resulta que os valores não são coisas. Mas acabamos de ver, de outra parte, que
os valores também não são impressões subjetivas. Isto parece contraditório.
Parece que há uma disjuntiva férrea que nos obriga a optar entre coisas ou
impressões subjetivas. Parece como se estivéssemos obrigados a dizer: ou os
valores são coisas, ou os valores são impressões subjetivas. E resulta que não
podemos dizer nem fazer nenhuma dessas duas afirmações.

Não
podemos afirmar que são coisas, porque não o são, nem podemos afirmar que sejam
impressões subjetivas, porque também não o são. Então dir-se-ia que teria
chegado nossa ontologia dos valores a um beco sem saída. Porém não há tal beco
sem saída. O que há é que esta mesma dificuldade, este mesmo muro em que parece
que tropeçamos, nos oferece a solução do problema. A disjuntiva é falsa. Não
nos podem obrigar a optar entre ser coisa e ser impressões subjetivas, porque
existe um escape, uma saída, que é neste caso a autêntica forma de realidade
que têm os valores: os valores não são nem coisas nem impressões subjetivas,
porque os valores não são, porque os valores não têm essa categoria própria dos
objetos reais e dos objetos ideais, essa primeira categoria de ser. Os valores
não são, e como quer que não são, não há possibilidade de que tenha alguma
validez o dilema entre ser coisas ou ser impressões. Nem coisas nem impressões.
As coisas são, as impressões também são. Porém os valores não são. E então, que
é isso tão esquisito de que os valores não são? Que quer dizer este não-ser? É
um não-ser que é algo, é um não-ser muito estranho.

Pois
bem; para esta variedade ontológica dos valores, que consiste em que não-são,
descobriu a meados do século passado o filósofo alemão Lotze a palavra exata, o
termo exato: os valores não-são, mas valem. Uma coisa é valor e outra coisa é
ser. Quando dizemos de algo que vale, não dizemos nada do seu ser, mas dizemos
que não é indiferente. A não-indiferença constitui esta variedade ontológica
que contrapõe o valor ao ser. A não-indiferença é a essência do valer. O valer,
pois, é agora a primeira categoria desse novo mundo de objetos que delimitamos sob
o nome de valores. Os valores não têm, pois, a categoria do ser, mas a
categoria do valer, e acabamos de dizer aquilo que é o valer.

O
valer é não ser diferente. A não-indiferença constitui o valer, e ao mesmo
tempo podemos precisar algo melhor esta categoria: a coisa que vale não é por
isso nem mais nem menos do que a coisa que não vale. A coisa que vale é algo
que tem valor; o ter valor é o que constitui o valer; valer significa ter
valor, e ter valor não é ter uma realidade entitativa a mais ou a menos, mas
simplesmente não ser indiferente, ter esse valor. E então percebemos que o
valor pertence essencialmente ao grupo ontológico que Husserl, seguindo nisso
ao psicólogo Stumpf, chama objetos não independentes ou, dito em outros termos,
que não têm por si mesmos substantividade, que não são, mas que aderem a outro
objeto. Assim, por exemplo, — psicologicamente, não logicamente — o espaço e a
cor não são independentes um do outro; não podemos representar o espaço sem cor
nem a cor sem espaço. Eis aqui um exemplo de objetos que necessariamente estão
aderidos um ao outro. Pois bem: ontològicamente podemos separar o espaço e a cor;
porém o valor e a coisa que tem valor não os podemos separar ontològicamente, e
isto é o característico: que o valor não é um ente, mas é sempre algo que adere
ã coisa e, por conseguinte, é o que chamamos vulgarmente uma qualidade. O valor

 é
uma qualidade. Chegamos com isto à segunda categoria desta esfera. Os valores
têm a primeira categoria de valer em lugar de ser, e a segunda categoria da
qualidade pura.

 

192.  
A qualidade.

Vamos
examinar esta segunda categoria, a qualidade. É uma qualidade irreal, ou seja,
que não é real. Uma qualidade irreal, por quê? Porque não é coisa. Uma
qualidade irreal é uma qualidade tal que se eu a imagino artificialmente, à
parte do objeto que a possui, não posso senão considerá-la irreal. Se eu me
represento o verde à parte da lâmpada, posso considerar a
"verdosidade" como algo real, porque tem todos os caracteres da realidade.
Quais são estes caracteres da realidade? Descrevemo-los na lição anterior: têm
ser, têm espacialidade, têm temporalidade e causalidade. Porém se eu separo a
beleza daquilo que é belo, a beleza carece de ser; a beleza não é; não há algo
entitativamente existente, ainda que seja idealmente, que seja a beleza, antes
sempre beleza é qualidade de uma coisa. Por conseguinte, examinando as relações
entre a coisa que tem valor e o valor tido pela coisa, chegamos à conclusão de
que a qualidade valiosa — q valor
— é irreal no sentido de que não é uma res, uma coisa.

Mas
não basta com isto, porque, como conhecemos outra esfera de objetos que são os
objetos ideais, poderíamos sentir-nos tentados a tirar daqui, em conclusão, que
se o valor não é uma qualidade real, talvez seja uma qualidade ideal. Mas
também não é uma qualidade ideal. Porque, que é o ideal? Definimo-lo numa
lição anterior. Assim como o real é aquilo que tem causa e produz efeitos,
disséramos que o ideal é aquilo que tem fundamento e conseqüências. O
triângulo, o círculo, o número 3, qualquer objeto matemático, as relações, são
ideais; o que quer dizer que seu modo de conexão não é o modo de conexão por
causa é efeito, mas o mundo de conexão por fundamento e conseqüência, como, por
exemplo, no silogismo, e por isso estão fora do tempo e do espaço, porque os
fundamentos de conexão entre os elementos de um conjunto ideal não se sucedem
uns aos outros no tempo por "causação", mas estão conexos fora do
tempo por implicação de fundamento e conseqüência. E então se os valores fossem
o fundamento da "valiosidade" da coisa, eu poderia demonstrar a
beleza, demonstrar a bondade, demonstrar os valores mesmos, como posso
demonstrar a propriedade dos números ou posso demonstrar as propriedades das
figuras, as relações puras, as essências puras. Mas eis aqui que os valores não
se podem demonstrar, mas a única coisa que se pode fazer é mostrá-los. Logo os
valores não têm idealidade no sentido que demos nós a essa palavra. Não a têm,
e não são, pois, qualidades nem reais nem ideais. Por isso, a única maneira de
designá-los é uma maneira negativa, e dizer que são qualidades irreais, não
reais. Porém não devemos chamá-los ideais, porque então os intuiríamos no
conjunto das estruturas do ser ideal e os faríamos cair sob as leis rígidas da
demonstração.

Com
isto não fica ainda perfeitamente determinada a estrutura ontológica dos
valores, porque, embora já saibamos que são valentes e não entes, e que são
qualidades irreais, ainda devemos declarai mais algumas coisas. São, por
exemplo, estranhos por completo à quantidade, e sendo estranhos à quantidade,
são também estranhos — como já o indicamos de passagem — ao tempo e ao espaço.

Quando
uma coisa é valiosa, quando um quadro é belo, ou um ato é justo ou generoso,
assim é independentemente do tempo, do espaço e do número. Não se pode dizer
que um quadro seja tantas vezes belo. Não há maneira de contar, de dividir a
beleza em unidades. Não se pode dizer que um quadro começa a ser belo, que
esteja sendo belo num momento e depois deixe de ser belo. Não se pode dizer que
um quadro seja belo aqui e feio lá. De modo que os valores são independentes do
número, independentes do tempo e independentes do espaço.

Além
disso, os valores são absolutos. Se não fossem absolutos os valores, que
seriam? Teriam que ser relativos. E, que significa ser relativo? Significa ser
valor para uns indivíduos mas não para outros; para umas épocas históricas, mas
não para outras. Mas isto não pode acontecer com os valores, porque vimos que
os valores são alheios ao tempo, ao espaço e ao número. Se houvesse valores que
fossem valores para uns mas não para outros, seriam dependentes desses uns para
os quais são valores e não dependentes daqueles outros; quer dizer, estariam em
relação ao tempo, e não o podem estar. St dizemos que pode haver valores que o
são para uma época histórica mas não para outra, também estariam em dependência
de tempo e de espaço, e não o podem estar. Mas exclamará alguém: Isso não se
pode dizer, já que há ações que foram consideradas como justas e logo mais, na
história, foram consideradas como injustas; que há quadros ou objetos naturais
que foram considerados como belos e logo mais, na história, foram considerados
como feios, ou vice-versa: em suma, que não há unanimidade na história e no
tempo sucessivo, nem no espaço, nem nos homens ao intuírem os valores. Mas isto
não é uma objeção. Note-se bem que esta não é uma objeção; é o mesmo que se
dissesse que antes de Pitágoras o teorema de Pitágoras não era verdade, ou que
antes de Newton a lei da gravitação não existia. Não têm sentido estas
suposições relativistas, porque a única coisa que pode ter e tem um sentido é
dizer que a lei da gravitação não foi conhecida pelo homem até Newton; mas não
que a lei da gravitação dependa na sua realidade ôntica do tempo em que foi
descoberta. Pois é exatamente o mesmo. Os homens podem intuir tais valores ou
não intuí-los, ser cegos ou clarividentes para eles; mas o fato de que exista
uma relatividade "histórica" no homem e  nos seus atos de percepção e
de intuição de valores, não nos autoriza de modo algum a trasladar esta
relatividade histórica do homem aos valores e dizer que porque o homem é
relativo, relativamente histórico, sejam assim também os valores. O que se
passa é que há épocas que não têm possibilidades de perceber certos valores;
mas quando as épocas seguintes chegam a perceber tais valores, isto  não quer dizer
que de pronto ao perceberem-nos os criam, mas que estavam aí, de um modo que
não vou agora definir, e que esses valores que estavam aí são, num momento da
história, percebidos ou intuídos por essas épocas históricas e por esses homens
descobridores de valores Tudo isto encontramos nas duas primeiras categorias
dessa esfera axiológica, dessa esfera estimativa, a saber: que os valores não
são entes, mas valentes. Que os valores são qualidades de coisas, qualidades
irreais, qualidades alheias à quantidade, ao tempo, ao número, ao espaço, e
absolutas.

193.  
A polaridade.

Ainda
nos resta, porém, a terceira categoria importantíssima nesta esfera ontológica.
Se analisamos a não-indiferença em que consiste o valor, deparamos com isto:
que uma análise daquilo que signi fica não ser indiferente nos revela que a
não-indiferença implica sempre um ponto de indiferença e que isso que não é
indiferente se afasta mais ou menos desse ponto de indiferença. Por conseguinte,
toda não-indiferença implica estruturalmente, de um modo necessário, a
polaridade. Porque sempre existem duas possibilidades de afastar-se do ponto
de indiferença. Se ao ponto de indiferença o chamamos simbolicamente
"0" (zero), a não-indiferença terá que consistir, necessariamente,
por lei de sua estrutura essencial, num afastamento do zero, positivo ou
negativo. Isto quer dizer que na entranha mesma do valer está contido que os
valores teimam polaridade: um pólo positivo e um pólo negativo. Todo valor tem
seu contra-valor. Ao valor conveniente contrapõe-se o valor inconveniente
(contra-valor); a bom contrapõe-se mal, a generoso contrapõe-se mesquinho, a
belo contrapõe-se feio; a sublime contrapõe-se ridículo; a santo contrapõe-se
profano. Não há, não pode haver um só valor que seja só. mas todo valor tem seu
contra-valor negativo ou positivo. E essa polaridade constitui a terceira
categoria dessa esfera ontológica; e essa terceira categoria, que chamamos
polaridade, está fundada e enraizada na essência mesma do valer, que é a
não-indiferença; porque toda não-indiferença pode sê-lo por afastar-se,
positiva ou negativamente, do ponto de indiferença.

Agora
se compreenderá a íntima relação que existe entre os valores e os sentimentos,
e por que os psicólogos, faz trinta ou quarenta anos, quando começou a
estruturar-se a teoria dos valores, propenderam á dizer que os valores não
tinham nenhuma entidade própria, não eram coisas, mas impressões subjetivas. É
porque confundiram os valores com os sentimentos. Por que confundiram os
valores com os sentimentos? Porque dentre os fenômenos psíquicos os sentimentos
são os únicos que têm como os valores esta característica da polaridade. Uma,
que é positiva, e outra, que é negativa. Porém há dois tipos de polaridade: a
polaridade dos sentimentos, a polari dade psicológica, e a polaridade dos
valores ou axiológica. E em que se diferenciam estes dois tipos de polaridades?
Em que a polaridade dos sentimentos, por força subjetiva, é uma polaridade infundada;  
não   digo   logicamente   infundada,   mas   infundada,   "ilogicamente".
Enquanto que a polaridade dos valores é uma polaridade fundada, porque os
valores expressam qualidades irreais, mas objetivas, das coisas mesmas,
qualidades das coisas mesmas; ao contrário. os sentimentos o que fazem é
representar vivências internas da alma, cuja polaridade está causalmente
fundada. Mas toda fundamentação causai é, ao menos parcialmente, uma
fundamentação ininteligível; tropeça com um fundo de inteligibilidade de
fundamento. Esta é a razão pela qual os psicólogos puderam confundir os
sentimentos com os valores. Tinham isto de comum: a polaridade.

194.  
A hierarquia.

Chegamos
com isto à quarta categoria dessa esfera ontológica dos valores, e esta quarta
categoria é a hierarquia. Os valores têm hierarquia. Que quer dizer isto? Há
uma multiplicidade de valores, Já citei uma multidão deles. Estes valores
múltiplos são todos eles valores, ou seja, modos do valer, como as coisas são
modos de ser. Mas" os modos ‘do valer são modos da não-indiferença. Ora, o
não ser indiferente é uma propriedade que em todo momento e em todo instante,
sem faltar um pingo, tem que ter o valor. Logo a têm que ter também os valores
nas suas relações múltiplas. E essa não-indiferença dos valores nas suas
relações múltiplas, uns com respeito aos outros, é o fundamento de sua
hierarquia. Compreender-se-á muito melhor esta categoria ontológica do valor,
que chamo hierarquia, quando fizermos rapidamente uma classificação dos valores.

Vamos
fazer, pois, uma classificação dos valores. O problema é difícil e não vou
entrar a expor as dificuldades, porque nos levaria muito longe.

O
problema de classificar os valores foi estudado por quase todos os filósofos
contemporâneos que se ocuparam do valor.

195.  
Classificação dos valores.

Vamos
tomar provisoriamente uma classificação que anda por aí e que é provavelmente a
menos incorreta, a mais aceitável de todas, que é a classificação de Scheler no
seu livro O formalismo na ética e a ética material dos valores. Segundo
esta classificação, poder-se-iam agrupar os valores nos seguintes grupos ou
classes: primeiro, valores úteis; por exemplo, adequado, inadequado,
conveniente, inconveniente. Depois, valores vitais; como, por exemplo, forte, fraco.
Valores lógicos, como verdade, falsidade. Valores estéticos, como belo, feio
sublime, ridículo. Valores éticos, como justo, injusto, misericordioso,
desapiedado. E, por último, valores religiosos, como santo, profano.

Pois
bem; entre essas classes ou grupos de valores existe uma hierarquia. Que quer
dizer esta hierarquia? Quer dizer que os valores religiosos afirmam-se
superiores aos valores éticos; que os valores éticos, afirmam-se superiores aos
valores estéticos; que os valores estéticos afirmam-se superiores aos lógicos,
e que estes por sua vez se afirmam superiores aos vitais, e estes por sua vez
superiores aos úteis. E este afirmar-se superior, que quer dizer? Pois quer
dizer o seguinte, nada mais que o seguinte: que se esquemàticamente assinalarmos
um ponto com o zero para designar o ponto de indiferença, os valores, seguindo
sua polaridade, agrupar-se-iam à direita ou à esquerda deste ponto em valores
positivos ou valores negativos e_ a maior ou menor distância do zero. Uns
valores, os úteis, se afastarão se desviarão pouco do ponto de indiferença;
estarão próximos do ponto de indiferença. Outros valores, o grupo seguinte, os
vitais, se afastarão algo mais do ponto de indiferença. Quer dizer, que postos
a escolher entre sacrificar um valor útil ou sacrificar um valor vital,
sacrificaremos com mais gosto o valor útil que o valor vital, porque a
distância em que se acham os valores úteis é mais próxima do ponto de
indiferença. Menos nos importa jogar pela janela um saco de batatinhas que
sacrificar um valor vital, por exemplo, um gesto bizarro. Mas estes valores
vitais, por sua vez importam-nos menos que os valores intelectuais. Quer dizer,
que os valores intelectuais se afastam mais do ponto de indiferença e são ainda
menos indiferentes que os valores vitais, e assim sucessivamente.

Se
nós tivermos que optar entre salvar a vida de uma criança, que é uma pessoa, e,
portanto, contém valores morais supremos, ou deixar que se queime um quadro,
preferiremos que se queime o quadro. Haverá quem não tenha a intuição dos
valores estéticos e então preferirá salvar um livro de uma biblioteca antes do
que um quadro. Isto é o que quer dizer a hierarquia dos valores.

No
ápice das hierarquias coloca Scheler os valores religiosos. Que quer dizer
isto? Pois quer dizer que para quem não seja cego aos valores religiosos (coisa
que pode acontecer), para quem tenha a intuição dos valores religiosos estes
têm hierarquia superior a todos os demais. Desta maneira chegamos a esta última
categoria estrutural ontológica da esfera dos valores: a hierarquia,

E
agora, para terminar vão duas observações de relativa importância para dar por
terminada esta caminhada pela esfera dos valores.

A
primeira observação é a seguinte: um estudo detido, pormenorizado, profundo,
de cada um destes grupos de valores que vimos na classificação pode e deve
servir de base — ainda que isto não o percebam os escritores cientistas — a um
grupo ou a uma ciência correspondente a cada um desses grupos. De modo que, por
exemplo, a teoria pura dos valores úteis constitui o fundamento da economia,
saibam-no ou não os economistas. Se os economistas percebessem isto e
estudassem a axiologia antes de começarem propriamente sua ciência econômica, e
esclarecessem seus conceitos do valor  útil, então veríamos quanto melhor
fariam a ciência econômica.

Depois
vêm os valores vitais. Pois bem; de que achamos falta, desde tantos anos, na
ciência contemporânea, senão de um esclarecimento exato dos valores vitais que
permitiria introduzir pela primeira vez método e clareza científica num grande
número de problemas que andam dispersos por diferentes disciplinas e que não se
sabe como tratar? Somente alguns espíritos curiosos e raros deles trataram. Por
exemplo: a moda, a indumentária, a vestimenta, as formas de vida, as formas do
trato social, os jogos, os esportes, as cerimônias sociais etc. Todas essas
coisas têm que ter sua essência, sua regularidade própria, e, não obstante,
hoje, ou não estão estudadas em absoluto ou estão em livros curiosos ou
estranhos como alguns ensaios de Simmel ou em notas ao pé das páginas. E, não
obstante, constituem todo um sistema de conceitos cuja base está num estudo
detido dos puros valores vitais.

O
resto é bem evidente. É bem evidente que o estudo detido dos valores lógicos
serve de base à lógica. É evidente também que o estudo detido daquilo que são
os valores estéticos serve de base à estética. É evidente também que o estudo
dos valores morais serve de base à ética. E disto não há queixa, porque,
efetivamente, na filosofia contemporânea a lógica, a estética e a ética têm
fundamento numa prévia teoria desses valores.

Do
mesmo modo a filosofia da religião não pode fundar-se senão num estudo
cuidadoso, detido, dos valores religiosos. E hoje começa a haver também na
literatura filosófica contemporânea uma filosofia da religião fundada na base
de um prévio estudo dos valores religiosos. E jcosso
citar um nome tanto mais grato quanto está por suas crenças religiosas
muito próximo de nós — Gründler — que escreveu um ensaio sobre Filosofia da
religião sobre a base feno-ontológica, quer dizer, sobre um estudo dos valores
religiosos. Esta é a primeira observação.

A
segunda observação enlaça-se com o que dizíamos na lição anterior refutando
energicamente àqueles que acusam a ontologia contemporânea de partir em dois
ou em três a unidade do ser. Relembre-se que tivemos de prestar atenção a
essas críticas, segundo as quais distinguir o ser em ser real, ser ideal etc, é
renunciar à unidade do ser. Relembre-se o que tivemos que responder àquelas
críticas. Tivemos que fazer ver àqueles críticos que na série das categorias
do ser real a primeira era o ser; e na série das categorias do ideal, a
primeira era também o ser, e que, portanto, essa distinção ou divisão não
atingia a raiz ontológica do ser, mas suas diversas modalidades. Agora
deparamos com essa mesma crítica quando chegamos ao campo dos valores; porque
nos dizem: vocês dividem_ aquilo que há em duas esferas incomunicadas: as
coisas que são e os valores que vocês chegam a dizer que não são, mas que
valem. Porém á ingênua esta crítica e pode dar-se por respondida. Precisamente
porque os valores não são é que não atentam nem menoscabem em nada a unidade do
ser. Dado que não são, mas que valem, que são qualidades necessariamente de
coisas, estão necessariamente aderidos às coisas. Representam aquilo que na
realidade há de valer. Não somente não se menoscaba nem se parte em dois a
realidade mesma, antes, ao contrário, integra-se a realidade; dá-se à realidade
isso: valer. Em troca, não a diminui nem a divide. Precisamente porque os
valores não são entes, antes qualidades de entes, sua homogênea união com a
unidade total do ser não pode ser posta em dúvida por ninguém. Teria que ser
posta em dúvida se nós quiséssemos dar aos valores uma existência, um ser
próprio, distinto do outro ser. Porém não fazemos  tal,  antes, ao contrário, 
consideramos que os valores não são, mas representam simples qualidades
valiosas, qualidades valiosas; de quê? Pois das coisas mesmas. Aí está a fusão
completa, a união perfeita com todo o restante da realidade.

Aliás,
este problema da unidade do real é um problema ao qual ainda não posso dar uma
resposta plenamente satisfatória, por uma razão: porque ainda nos resta o
último objeto. Resta-nos por estudar o último objeto daqueles em que dividimos
a ontologia, e este último objeto, precisamente é aquele que tem no seu seio a
raiz da unidade do ser. Resta-nos por estudar a vida como objeto metafísico,
como recipiente em que há tudo isso que enumeramos: as coisas reais, os objetos
ideais, e os valores. Resta-nos ainda a vida como o recipiente metafísico,
como o estar no mundo. É essa unidade ou objeto metafísico, que é a vida, que
estudaremos na próxima lição; e nela, então, encontraremos a raiz mais profunda
dessa unidade do ser.

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