cap. 17 – O problema do Idealismo Transcendental – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XVII

O  PROBLEMA  DO  IDEALISMO  TRANSCENDENTAL

128.
O IDEAL DO RACIONALISMO. — 129. A TAREFA DE KANT. — 130. SUA FILOSOFIA. — 131.
JUÍZOS ANALÍTICOS E JUÍZOS SINTÉTICOS. — 1S2. FUNDAMENTO DOS JUÍZOS ANALÍTICOS
E SINTÉTICOS. — 133. A CIÊNCIA ESTA CONSTITUÍDA POR JUÍZOS SINTÉTICOS «A
PRIORI». — 134. POSSIBILIDADE DOS   JUÍZOS   SINTÉTICOS   «A   PRIORI».

128.  
O ideal do racionalismo.

Se
consideramos o conjunto da filosofia de Leibniz, podemos dizer que nela o
racionalismo atinge seu mais alto cume. Depois do trabalho  levado  a efeito
pelo  pensamento  leibniziano,  estabelece-se em toda a ciência e em toda a
filosofia européia o império do racionalismo.

A
distinção feita por Leibniz entre verdades de razão e verdades de fato implica
em que o ideal do conhecimento científico consiste em estruturar todos seus
elementos como verdades de razão. Esse ideal é um propósito do homem, cuja
razão se põe à prova na resolução de problemas científicos apresentados pela
realidade. Mas a resolução destes problemas consiste primordialmente nisto: em
que as comprovações de fato acusadas pela experiência se tornem verdades de
razão, ou seja, juízos cujo fundamento esteja demonstrado, extraído de outras
verdades de razão mais profundas; e assim sucessivamente.

O
ideal do racionalismo consiste, pois, em que o conhecimento humano chegue a
estruturar-se do mesmo modo que o está a matemática, que o está a geometria, a
álgebra, a aritmética, o cálculo diferencial e o cálculo integral. É este o
momento mais sublime da física matemática, é este o instante em que todas as
esperanças são permitidas ao homem e que estas esperanças parecem ter, de
momento, já, uma realização tão extraordinária que se toca, por assim dizer, o
instante em que o homem vai poder conseguir uma fórmula matemática que
compreenda na brevidade de seus termos o conjunto íntegro da natureza.

Este
racionalismo, que aspira a que todo o dado se torne pura razão, este
racionalismo encontra sua realização metafísica na teoria das mônadas. Assim
como os conhecimentos de fato hão de ser problemas para se tornarem mais ou
menos em breve verdades de razão, assim também o desenvolvimento interno da
mônada que a leva de uma percepção a outra, culmina no reflexo que cada mônada
é em si mesma de todo o universo; e as hierarquias das mônadas atingem seu mais
alto cume em Deus, para quem toda percepção é apercepção, toda idéia é idéia
clara, e todo fato é ao mesmo tempo razão. Há, pois, no racionalismo de Leibniz
uma metafísica espiritualista que é aquela que expus na lição anterior. Esta
metafísica espiritualista nos representa o universo inteiro como constituído
por pontos de substância espiritual que chamamos mônadas. Quer dizer, que o
universo inteiro apresenta diante de nós duas faces. Uma face, que é a dos
objetos materiais, seus movimentos, suas combinações e as leis desses
movimentos e combinações; uma face que poderíamos chamar, por conseguinte,
fenomênica: a do mundo tal como o vemos, o percebemos e o sentimos. Porém, mais
profundamente, do outro lado desta face visível dos fenômenos, encontram-se as
verdadeiras realidades, encontram-se as existências em si mesmas das mônadas.

Tudo’isto
que aparece diante de nós como objetos extensos no espaço, movendo-se uns com
relação a outros, seguindo as leis conhecidas pela física, as leis do
movimento; todos esses fenômenos que vemos, ouvimos e tocamos, não são senão
aspectos externos, idéias confusas de uma realidade profunda, a realidade
dessas mônadas espirituais.

Assim,
na filosofia racionalista de Leibniz reaparece a teoria dos dois mundos que já
vimos ao iniciar-se a filosofia grega com Parmênides: um mundo fenomênico de
aparências e um mundo em si mesmo de substâncias reais, de substâncias que são
coisas em si. Para Leibniz estas coisas "em si" são as mônadas. O
que existe na verdade não é, como para Descartes, o espaço mesmo; não são, como
para os ingleses as vivências; mas são essas unidades espirituais que na simplicidade
do seu próprio ser metafísico contêm a multiplicidade das percepções. Notamos,
pois, aqui, que na metafísica de Leibniz o desenvolvimento da idéia idealista,
o desenvolvimento da atitude idealista iniciada por Descartes não chegou ainda
à sua terminação. Em Descartes encontramos ainda um resíduo do realismo aristotélico
apesar da atitude inicial idealista. Esse resíduo estava na teoria das três
substâncias. Nos ingleses encontramos uma curiosa e estranha transposição do
conceito aristotélico de coisa "em si", que em lugar de aplicar-se à
substância se translada à vivência mesma. E agora aqui em Leibniz, encontramos
também esse resíduo do realismo aristotélico na consideração da mônada como
coisa em si mesma. A mônada não é objeto do conhecimento científico mas é algo
que transcende do objeto do conhecimento científico e que existe em si e por
si, seja ou não conhecida por nós. Essa existência metafísica transcendente da
mônada, essa existência, essa "coisidade" em si mesma é o resíduo da
metafísica realista aristotélica.

129.  
A tarefa de Kant.

A
missão da filosofia que há de suceder à de Leibniz, a filosofia de Kant, vai
consistir em dar plena terminação e remate ao movimento iniciado pela atitude
idealista. A atitude idealista tinha posto o acento, a base de todo raciocinar
filosófico, sobre a intuição do eu, sobre a convicção de que os pensamentos nos
são mais imediatamente conhecidos que os objetos dos pensamentos. Porém, o
desenvolvimento dessa atitude idealista, o desenvolvimento das possibilidades
contidas dentro dessa atitude idealista, tinha arrastado consigo constantemente
um resíduo de realismo, porquanto todos estes filósofos, ainda que se situando
na atitude idealista, não a levavam até seus últimos extremos, antes em algum
momento de seu desenvolvimento detinham esse pensamento idealista e determinavam
a existência transcendente, "em si", de algum elemento dos que
tinham encontrado em seu caminho: ora o espaço, Deus, a alma pensante, ora as
vivências mesmas como fatos; ora essas mônadas que dentro da realidade das
coisas percebidas constituem uma autêntica e mais plena realidade.

Pois
bem. Era necessário, por dialética histórica interna, que esse processo
iniciado por Descartes chegasse a seu término e seu remate. Era necessário que
viesse um pensador capaz de dar fim, de concluir e rematar por completo as
possibilidades contidas na atitude idealista. Este pensador foi Emanuel Kant.
Emanuel Kant trata de terminar definitivamente — e essa é sua tarefa
fundamental — com a idéia de ser em si. Kant vai esforçar-se para mostrar como,
na relação do conhecimento, aquilo que chamamos ser, é não um ser "em
si", mas um ser objeto, um ser "para" ser conhecido, um ser
posto logicamente pelo sujeito pensante e cognoscente, como objeto de conhecimento,
mas não "em si" nem por si, como uma realidade transcendente.

Assim,
pois, Kant encerra um período da história da filosofia. Encerra o período que
começa com Descartes. E ao encerrar este período nos dá a formulação mais
completa e perfeita do idealismo transcendental. Mas, de outra parte, Kant abre
um novo período. Tendo estabelecido Kant um novo sentido do ser, que não é o
ser "em si", mas o ser "para" o conhecimento, o ser no
conhecimento, abre Kant um novo período para a filosofia, que é o período do
desenvolvimento do idealismo transcendental que chega até nossos dias. Ainda
hoje existem pensadores como Husserl, que chamam a seu próprio sistema
idealismo transcendental.

Kant
se encontrava, quando veio ao mundo filosófico, por sorte e pelo gênio de sua
imensa capacidade filosófica, situado no cruzamento de três grandes correntes
ideológicas que sulcavam o século XVIII. Estas três grandes correntes
filosóficas eram, de uma parte, o racionalismo de Leibniz, que acabamos de
explicar nestas duas últimas lições; de outra parte o empirismo de Hume, que
explicamos anteriormente, e em terceiro lugar, a ciência positiva
físico-matemática que Newton acabava de estabelecer. Na confluência dessas três
grandes  correntes situou-se Kant;   e  dessas  três  grandes  correntes tirou
os elementos fundamentais para poder estabelecer de um modo eficaz, de um modo
concreto, o problema da teoria do conhecimento e, em seguida, o problema da
metafísica. Kant, pois, nessa encruzilhada representa o homem que tem na mão
todos os fios da ideologia do seu tempo.

Até
muito avançado em anos não chega Kant a perceber, a intuir claramente seu
sistema filosófico. Seu livro capital, o mais estudado, o mais comentado, o
mais discutido de toda a literatura filosófica de todos os tempos, sua Crítica
da razão pura, escreveu-a quando já tinha cinqüenta e sete anos. Até então
tinha sido um excelente professor de filosofia; porém, seus ensinamentos da
filosofia não se tinham destacado em nada do ensinamento corrente naqueles
tempos nas Universidades alemãs. Nas Universidades alemãs dominava naquele tempo
a filosofia de Leibniz na forma escolar que lhe tinham dado os discípulos de
Leibniz, dentre eles Wolff, Baumgarten, Meier. E o ensinamento de Kant na
Universidade de Königsberg limitava-se a ler e comentar em aula a metafísica de
Baumgarten, a ética do mesmo e a lógica de Meier. Assim foi durante muito tempo
um excelente professor que dava, lições na Universidade, um pouco de tudo,
porque também ensinava’matemática, além de lógica e metafísica; também deu
aulas de geografia física. Muito tarde na sua vida, repito, chega a
cristalizar-se nele o sistema filosófico mais estudado e mais discutido de
todos quantos existem. Esse sistema filosófico está exposto numa multidão de
livros, mas principalmente, na Crítica da razão pura. que publica aos cinqüenta
e sete anos; e depois, a partir da Crítica da razão pura, em outros, como
Crítica da razão prática, Crítica do .iuízo, A religião dentro dos limites da
razão, e grande número de livros que foi rapidamente publicando até o final de
seus dias.

130.
Sua filosofia.

Vamos
tentar — a coisa não é fácil — definir numa lição com alguma exatidão, a
filosofia de Kant, à qual podemos dar o nome de idealismo transcendental; o
mesmo que ele adotou para uma parte de sua filosofia, mas que pode muito bem
estender-se a totalidade dela

A
filosofia de Kant parte também, como a de Descartes, como a de Leibniz, de uma
prévia teoria do conhecimento. Porém, muito mais acentuadamente que para seus
antecessores, é para Kant a filosofia, primeiramente, uma teoria do
conhecimento. Ele expôs, num pequeno livro que pretende ser acessível a todo
mundo, um pequeno livro que almeja ser popular, sua filosofia com o título de
Prolegômenos a toda metafísica futura. Quer dizer, o que há de se saber, o que
se deve elucidar de teoria do conhecimento antes de atacar o problema metafísico.
Por conseguinte, em Kant. com uma precisão, com uma clareza e uma consciência
plena, a filosofia estréia com um teoria do conhecimento. Porém, a diferença
radical, fundamental, que existe entre Kant e seus predecessores é que os
predecessores de Kant. quando falam do conhecimento, falam do conhecimento que
vão ter. do conhecimento que se vai construir, da ciência que há de se
constituir, da ciência que está em constituição, em germe, aquela que nesses
momentos se está forjando em Galileu, em Pascal, em Newton. Pelo contrário, quando Kant fala do conhecimento, fala de uma ciência
fisico-matemática já estabelecida. Quando fala do conhecimento refere-se ao
conhecimento científico-matemático da Natureza, tal como Newton o estabeleceu
definitivamente. Já disse que uma das três correntes que convergem em Kant é a
física matemática de Newton. Para ele esta física matemática é um fato que aí
está e que ninguém pode abalar. A possibilidade de reduzir a fórmulas
matematicamente exatas as leis fundamentais da Natureza, dos objetos, dos
corpos, do movimento, da gravitação, não é já uma possibilidade, é uma realidade;
conseguiu-o Newton e existe; aí está, definitivamente estabelecida, a ciência
físico-matemática da Natureza. Portanto, para Kant a teoria do conhecimento vai
significar antes de tudo e principalmente, não a teoria de um conhecimento
possível, desejável, como em Descartes, ou de um conhecimento que se está
fazendo, que está em fermentação como para Leibniz, mas a teoria do
conhecimento significa para ele a teoria da física matemática de Newton. É isso
que ele chama o "fato" da razão pura. Este fato é a ciência fisico-matemática
da Natureza.

131.
Juízos analíticos e juízos sintéticos.

Pois
bem; para Kant essa ciência fisico-matemática da Natureza se compõe de juízos;
quer dizer, se compõe de teses, de afirmações, de proposições; nas quais, em
resumo, de algo se diz algo; nas quais há um sujeito do qual se fala, do qual
se fala algo e acerca do qual se emitem afirmações, se predicam afirmações ou
negações; se diz: isto é isto, isso ou aquilo.

Estes
juízos são o ponto de partida de todo o pensamento de Kant; sobre esses juízos
vai assentar-se toda a sua teoria do conhecimento; e não esqueçamos nem um só
instante, antes lembremos constantemente, que estes juízos não são vivências
psicológicas. Não. Não são algo que acontece a nós, não são fatos da
consciência subjetiva, mas antes enunciações objetivas acerca de algo, teses de
caráter lógico que, por conseguinte, são verdade ou erro.

Toma,
pois, Kant esses juízos, cuja textura ou contextura constitui a totalidade do
saber cientificamente matemático, e os considera como enunciados lógicos, como
teses objetivas, afirmações acerca de objetos, mas não de modo algum como vivências
psicológicas, não como fatos psíquicos. E então verifica que estes juízos
logicamente considerados, podem todos eles dividir-se em dois grandes grupos:
os Juízos que ele chama analíticos e os juízos que ele chama sintéticos.

Chama
Kant juízos analíticos àqueles juízos nos quais o predicado do juízo está
contido no conceito do sujeito. Todo juízo consiste num sujeito lógico do qual
se diz algo e um predicado que é aquilo que se diz desse sujeito, Todo juízo,
pois, é redutível à fórmula "S é P". Pois bem; se analisando
mentalmente o conceito do sujeito, o conceito de "S", e dividindo-o
nos seus elementos conceptuais, encontramos, como um desses elementos, o
conceito "P", o conceito "predicado", então a esta classe
de juízos chama-os Kant juízos analíticos.

Exemplo
de juízo analítico: o triângulo tem três ângulos. Por que é analítico? Porque
se eu tomo mentalmente o conceito de triângulo e o analiso logicamente,
verifico que dentro do conceito do sujeito está o de ter três ângulos; e então
formulo o juízo: o triângulo tem três ângulos. Este juízo é um juízo analítico.

Ao
outro grupo chama Kant juízo sintético. Que são juízos sintéticos? Juízos
sintéticos são aqueles nos quais o conceito do predicado não está contido no
conceito do sujeito; de sorte que por muito que analisemos o conceito do
sujeito não encontraremos nunca dentro dele o conceito do predicado. Como, por
exemplo, quando dizemos que o calor dilata os corpos. Por muito que analisemos
o conceito de calor não encontraremos nele, incluído nele, dentro dele, o
conceito de dilatação dos corpos, como encontramos no conceito de triângulo o
conceito de ter três ângulos. A estes, pois, chama juízos sintéticos. Porque o
juízo consiste em unir sintèticamente elementos heterogêneos no sujeito e no
predicado.

132.  
Fundamento dos juízos analíticos e sintéticos.

Pois
bem: qual é o fundamento da legitimidade dos juízos analíticos? Ou dito de
outro modo: por que os juízos" analíticos são verdadeiros? Qual é o
fundamento de sua validez? O fundamento de sua legitimidade, de sua validez,
estriba-se no princípio de identidade. Como o sujeito contém no seu seio o
predicado, o juízo, que estabeleceu este predicado contido no sujeito, não
fará mais que repetir no predicado aquilo que há no sujeito. É um juízo
idêntico, é um juízo de identidade. Poderia chamar-se também uma tautologia
(formada de duas palavras gregas: tauto, o mesmo, logia, dizer); tautologia é,
pois, dizer o mesmo, repetir o mesmo. O juízo analítico está fundado no
princípio de identidade e não é mais do que uma tautologia; repete no predicado
aquilo que já está enunciado no sujeito.

Qual
é o fundamento dos juízos sintéticos? Qual é o fundamento de legitimidade dos
juízos sintéticos? ou dito de outro modo: por que são verdadeiros os juízos sintéticos?
Pois o fundamento de legitimidade dos juízos sintéticos está na experiência.
Se eu posso dizer com verdade que o calor dilata os corpos, como não pode ser
que eu o diga baseando-me no conceito de calor, visto que a dilatação dos
corpos não está contida no conceito de calor, não o digo por outra razão senão
porque eu mesmo experimento, porque eu mesmo tenho a percepção sensível de que,
quando esquento um corpo, este corpo torna-se mais volumoso. Então o fundamento
da legitimidade dos juízos sintéticos está na experiência, na percepção
sensível.

Muito
bem. Mas, ademais, os juízos analíticos são verdadeiros, universais,
necessários. São verdadeiros, visto que não dizem mais que o predicado daquilo
que já há no sujeito; são tautologias. São universais, válidos em todo lugar,
em todo tempo; válidos em qualquer lugar e em qualquer momento, porque não
fazem mais que explicitar no predicado aquilo que há no sujeito, e esta
explicitação é independente do tempo e do lugar. Mas, além de universais, são
necessários. Não podem ser de outro modo. Não pode ser que o triângulo não
tenha três ângulos. Visto que estes juízos tautológicos, derivados do
princípio de identidade, não fazem mais que explicitar no predicado aquilo já
contido no sujeito implicitamente, evidentemente o contrário destes juízos tem
que ser necessariamente falso. Quer dizer, que estes juízos são necessários.
São, pois, verdadeiros, necessários e universais. E como são verdadeiros,
necessários e universais não têm sua origem na experiência, mas nessa análise
mental do conceito do sujeito. São, pois, a priori (a priori significa
"independente da experiência", que não tem sua origem na
experiência).

Olhemos
agora os juízos sintéticos. Estes juízos sintéticos, quando são verdadeiros?
São verdadeiros enquanto a experiência os avaliza. Ora bem: a experiência que
é? É a percepção sensível. Esta percepção sensível se realiza num lugar: aqui;
num tempo: agora. Por conseguinte, enquanto a experiência sensível se está
verificando, ou seja, aqui e agora, esses juízos sintéticos são verdadeiros.
Sua validez é, pois, uma validez limitada à experiência sensível. Porém, como a
experiência sensível tem lugar aqui e agora, é abusivo dar a esses juízos
sintéticos um valor que prescinda do "aqui" e do "agora".
São juízos que somente são verdadeiros aqui e agora. Mas desde o momento em
que eu deixo de perceber simultaneamente a dilatação dos corpos e o calor, já
não sei qual pode ser o fundamento que avalize este juízo sintético. São, pois,
estes juízos sintéticos uns juízos particulares e contingentes. Particulares,
porque sua verdade está restringida, constrangida ao "agora" e ao
"aqui". Contingentes, porque seu contrário não é impossível. Poderia
mesmo acontecer que o calor, em vez de dilatar os corpos, os contraísse; não
haveria mais que mudar os signos positivos e negativos nas dimensões em que
entra o calor. São, pois, os juízos sintéticos particulares e contingentes,
oriundos de experiência, ou, como diz também Kant, a posteriori.

133.  
A ciência está constituída por juízos sintéticos "a priori".

Agora
surge o problema: qual dessas duas classes de juízos é a que constitui o
conhecimento científico físico-matemático? Os juízos analíticos ou os juízos
sintéticos? Os juízos analíticos não é possível. Não é possível que o
conhecimento científico esteja formado por juízos analíticos, porque se o
conhecimento científico estivesse formado por juízos analíticos não se
compreende como poderíamos chamá-lo sequer conhecimento. Os juízos analíticos
são puras’ tautologias; não acrescentam nada ao nosso saber. Quando
explicitamos no predicado aquilo que já está contido no sujeito, não fazemos
descoberta nenhuma de realidade, não descobrimos nada real, não fazemos mais
que explicitar o já conhecido. Por isso, com razão dizia Descartes que o
silogismo serve para expor verdades já conhecidas, mas não para descobrir
verdades novas. Do mesmo modo os juízos analíticos podem ser úteis para dar a
um conhecimento que já tenhamos adquirido uma forma didática que satisfaça ao
pequeno estudante; mas o conhecimento   científico  das  leis  da  Natureza
não  pode  constar  de juízos analíticos, visto que nenhum juízo analítico
acrescentaria um grama de conhecimento ao que já tivéssemos do conceito do
sujeito.

Então,
se a ciência não está constituída por juízos analíticos, estará constituída
pelos sintéticos? Mas tampouco isto é possível. Tampouco é possível que a
ciência esteja constituída pelos juízos sintéticos. Porque a ciência enuncia
acerca de seus objetos juízos que são verdadeiros universal e necessariamente,
agora e sempre; não juízos particulares ou contingentes, mas juízos universais
e necessários. Um juízo cuja legitimidade e validez estejam constrangidas ou
limitadas ao "aqui" e ao "agora" é um juízo cuja legitimidade
e validez não se estendem além do momento presente e por cima do espaço atual.
Por conseguinte, também não pode a ciência estar constituída por juízos sintéticos.

Se a
ciência estivesse constituída por juízos analíticos; se a ciência fosse, como
queria Leibniz, verdades de razão (a corrente leibniziana vem aqui desembocar
nas mãos de Kant); se a ciência estivesse constituída por juízos de pura razão,
a ciência seria vã; seria uma pura tautologia, uma repetição do já contido nos
conceitos sujeitos. Não seria nada, seria Simplesmente o resultado de uma mera
disecção conceptual. Se, de outra parte, a ciência estivesse constituída por juízos
sintéticos, por ligações de fatos (aqui a corrente de Hume vem cair nas mãos de
Kant); se estivesse constituída por meras ligações casuais de fato, habituais,
puros costumes, puros atos de pensar, constituídos à força de associação de
idéias e repetição concreta de experiências, a ciência, como bem dizia Hume,
não seria ciência, seria um costume sem fundamento; não teria legítima validez
universal e necessária. Porém, a ciência, a física, a lei da gravitação
universal, que se pode escrever numa fórmula matemática, a física de Newton —
aqui a terceira corrente vem às mãos de Kant — não é nenhuma tautologia, como
seria se fossem os juízos simplesmente analíticos, nem um hábito, nem um
costume sem fundamento lógico, como seria se seus juízos fossem puros fatos de
consciência, como queria Hume.

Então
é absolutamente indispensável que essa ciência de Newton, que não é juízo analítico
nem é juízo sintético, tenha um tipo de juízo que lhe seja próprio. Isto
significa que devem existir, como esqueleto ou estrutura da ciência
físico-matemática, uns juízos que não sejam nem os juízos sintéticos nem os
juízos analíticos; ou, melhor dito, tem que haver na ciência uns juízos que
tenham dos juízos analíticos a virtude de ser a priori, isto é, universais e necessários, independentes da pequena ou grande experiência. O que
pretende Kant não é nenhuma coisa extraordinária. È aquilo em que crêem todos
os físicos do mundo. Todos os físicos do mundo crêem que uma experiência
bem feita basta para fundamentar uma lei. E, todavia, essa lei vale além dessa
experiência concreta, vale para todas as experiências possíveis passadas,
presentes e futuras. Por conseguinte, os juízos da ciência são universais e
necessários, da mesma maneira que os juízos analíticos são a priori. Porém,
não são analíticos, porque se fossem analíticos, não aumentariam em nada nosso
conhecimento. Teriam que ser, pois, sintéticos; isto é, objetivos; ou seja,
que aumentassem realmente nosso conhecimento sobre 06 coisas. Mas então teriam
que estar fundados na experiência e seriam particulares e contingentes.
Tiremos-lhes este fundamento da experiência e digamos que os juízos da ciência
têm que ser necessariamente sintéticos e a priori ao mesmo tempo. Parece
absurdo que um juízo sintético, sendo sintético, não estando fundado no
princípio do contradição, antes estando fundado na percepção sensível, seja^a
priori. Como pode ser que um juízo sintético seja a priori? Pois não há outro
remédio. Os juízos científicos têm que ser ao mesmo tempo sintéticos e a
priori.

134.  
Possibilidade dos juízos sintéticos "a priori".

O
problema consistirá então em mostrar como é possível que existam juízos
sintéticos a priori; que condições têm que ocorrer para que sejam possíveis os
juízos sintéticos a priori. O que de início faz Kant é mostrar que,
efetivamente, as ciências estão constituídas por. Juízos sintéticos a priori; e
o mostra pela demonstração, ensinando-os, exibindo-os. Assim, por exemplo, as
matemáticas passaram sempre por ser o protótipo de vérité de raison. Mas a
matemática é juízo analítico? De maneira alguma. Tomemos um juízo matemático
elementar como este, por exemplo: a linha reta é a mais curta entre dois
pontos. Vamos ver se é um juízo analítico. Qual é o sujeito? A linha reta. Que
contém a linha reta? Analisemos o sujeito linha reta. Encontramos no conceito
de reta intuído algo que se assemelhe à magnitude, à quantidade? Não. A linha
reta significa uma linha cujos pontos estão todos na mesma direção. Se eu digo:
a linha reta é uma linha cujos cantos estão na mesma direção, então terei dito
um juízo analítico. Porém, só digo que a linha reta é a mais curta entre dois
pontos, então no predicado ponho um conceito, o conceito de curto, conceito de
magnitude, que não está de maneira alguma intuído no conceito de reta. Aqui,
pois, temos um exemplo patente de juízo sintético. E este juízo sintético não
é ademais a priori? Quem considera necessário medir com um metro a linha reta
para ver se é a mais curta entre dois pontos? Não é evidente por acaso? Não é isto
que chamava Descartes natura simplex? Não se vê por intuição que a linha reta é
a mais curta entre dois pontos? Pois, por conseguinte, esta intuição evidente é
uma intuição a priori. Não é uma intuição sensível que tenhamos pelos olhos,
pelos ouvidos, antes a temos também mentalmente. Esta intuição não é uma
análise do conceito. Aqui temos, pois, um exemplo claro em matemática de juízos
sintéticos e ao mesmo tempo a priori.

A
física também está cheia de juízos sintéticos a priori. Quando dizemos, em
mecânica racional, que em todo movimento que se transmito de um corpo a outro
a ação é igual à reação, não é este um Juízo sintético? Evidentemente é um
juízo sintético; e é a priori, porque ninguém o demonstra experimentalmente. A
lei da inércia e as demais leis do movimento que Galileu concebeu, como as
concebeu? Pois como ele mesmo dizia: mente concipio. Afastou de seus olhos toda
experiência sensível e concebeu com os olhos fechados um espaço, um móvel nesse
espaço, e dessa pura concepção foi por pura intuição direta tirando as leis do
movimento. Não são estes juízos sintéticos e ao mesmo tempo a priori?

E na
metafísica? Não são juízos a priori os que Descartes formula
demonstrando a existência de Deus? Ou por acaso Descartes e os demais que
demonstraram a existência de Deus, a imortalidade da alma, viram a Deus,
tiveram experiência de Deus? Não a tiveram. São juízos a priori; mas ademais
são sintéticos, porque na noção de parte, por exemplo, ou na de causa, na noção
de que todo fenômeno tem que ter uma causa e que é preciso deter-se nessa série
de causas até chegar a Deus, há alguma análise do sujeito? Não há. A análise do
sujeito nos levaria preferentemente a afirmar a infinita série das causas. Por
conseguinte, em metafísica também temos juízos sintéticos a priori. Em
matemática, em física, em metafísica, todo o conhecimento humano está
realmente constituído por juízos sintéticos a priori. f(Mas
acontece que não se compreende como sejam possíveis os juízos sintéticos a
priori.
Como é possível que um juízo seja ao mesmo tempo sintético e a
priori,
quer dizer obtido por intuição, obtido fora do raciocínio
discursivo, obtido fora da análise conceptual e ao mesmo tempo a priori, isto
é, independente da experiência? Como pode ser isto? É o que não compreendemos.
Então todo o livro de Kant, a Crítica da razão pura. está preparado a
responder a estas três perguntas: Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na matemática? Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na
física? São possíveis os juízos sintéticos a priori na metafísica?

Vejamos
a diferença nas três perguntas. A primeira pergunta não duvida da possibilidade
dos juízos sintéticos a priori na matemática, visto que existe a
matemática. Este é o fato de que Kant parte. Trata-se, pois, tão somente de
procurar as condições em que tem que funcionar o ato humano do conhecimento
para tornar possíveis os juízos sintéticos a priori, que são possíveis
posto que são reais nas matemáticas, que aí estão. Da mesma forma a segunda
pergunta. Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na física?
Kant não duvida de que sejam possíveis, visto que existe a física de Newton. O
que falta é ver, descobrir como tem de funcionar o ato lógico do conhecimento,
quais são as condições deste ato do conhecimento para que sejam possíveis estes
juízos sintéticos a priori na física, que são possíveis visto que a
física existe.

Porém,
a terceira pergunta é muito distinta. A metafísica é uma ciência discutida.
Cada vez que surge um filósofo novo no mundo torna a remanejá-la desde o
princípio. É uma ciência em que ne-nenhuma verdade está estabelecida como nas
matemáticas. É uma ciência de cuja existência se pode duvidar como duvida
Hume, por exemplo. Alguns duvidam que seja certa. Por conseguinte, aqui a
pergunta não  poderá  consistir em  como   sejam possíveis,  mas   em  se  
são  possíveis, isto é, se estes juízos são legítimos. Se resultar que são
legítimos, então se estudará como são legítimos, e se resultar que não são
legítimos, então ou não haverá metafísica ou a metafísica terá que ter
forçosamente um fundamento que não seja aquele que até agora veio  tendo.

A
responder estas três perguntas acerca das possibilidades dos juízos sintéticos
a priori, está orientada toda a filosofia de Kant.

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