cap. 20 – Entrada na Ontologia – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

PARTE
DOUTRINAL

Lição XX ENTRADA NA ONTOLOGIA

170.
TEORIA DO SER E DO ENTE. — 171. DOIS MÉTODOS. — 172. ESTAR NO MUNDO.
— 173.  ESFERA DAS COISAS  REAIS.  — 174.  ESFERA DOS  OBJETOS IDEAIS. 
— 175.  ESFERA DOS  VALORES.  — 176.   NOSSA  VIDA.  — 177.   NEM REALISMO 
NEM IDEALISMO. — 178.   CAPÍTULOS DA ONTOLOGIA.

Nas
lições anteriores propusemo-nos realizar uma excursão pelo campo da metafísica.
Partimos do problema essencial metafísico, que é o problema de: que existe?
Perseguimos, em nossa excursão ao longo da história da filosofia, as duas

grandes respostas contraditórias que se deram a essa pergunta. Deparamos,
primeiro, com o realismo, e depois, como o idealismo; e sintetizamos a forma
mais perfeita e completa do realismo em Aristóteles, assim como achamos a
forma mais completa e perfeita do idealismo em Kant, se bem que nem um nem
outro são exclusivistas.

Ao
perseguir ao longo da história estas duas soluções fundamentais do problema
metafísico, tivemos que prescindir por completo de outros problemas filosóficos
que estão mais ou menos em relação com este problema metafísico, com o objetivo
de que a contraposição do idealismo e do realismo resultasse clara, resultasse
nitidamente delineada diante de nossos olhos. Mas, tendo chegado ao término
dessa primeira excursão pelo campo da filosofia, vamos iniciar outro tipo de
excursão filosófica, por aquela outra parte da selva filosófica que leva o nome
estranho de ontologia. Isto quer dizer, naturalmente, que a ontologia e a metafísica
não são conceitos que se sobrepõem exatamente; há intercâmbios problemáticos
entre uma e outra esfera como veremos no decorrer da nossa excursão pela
ontologia; mas não são idênticas nem se propõem o mesmo fim as reflexões ontológicas
e as metafísicas.

Assim,
pois, agora saímos daquela intricada parte da metafísica para entrar nesta não
menos intricada, porém muito interessante parte, a ontologia.

Não
se me oculta, evidentemente, a dificuldade da empresa. Não é fácil aquilo que
vamos fazer;  não é fácil em poucas lições chegar a um conhecimento profundo
dos problemas variadíssimos que a ontologia apresenta, e menos ainda podemos
ter a pretensão de dar-lhes aqui uma solução. Mas isso não importa, porque à
filosofia não apetece menos que as soluções o doce prazer do difícil caminho
que a elas conduz. Assim como o excursionista se diverte muito mais durante a
excursão que ao término dela, assim também nós, nessa excursão introdutória
pelo campo da filosofia, o que pretendemos é simplesmente aguçar a percepção,
a intuição dos problemas filosóficos. Todavia, devo fazer ressaltar dois
requisitos fundamentais que são necessários para que nossa excursão pelo campo
da ontologia obtenha frutos gratos c proveitosos. Estes dois requisitos são
duas disposições do ânimo que é mister desenvolver para que essas lições
últimas sejam frutíferas. A primeira delas é aquilo que eu chamaria
ingenuidade. É mister que nos coloquemos diante dos problemas da ontologia com
ânimo ingênuo, desprovido de preconceitos; é mister que aquilo que sabemos,
aquilo que estudamos em livros e teoria, não venha sobrepor-se à intuição clara
dos objetos que consigamos produzir em nós mesmos. Esta intuição direta, clara,
dos objetos mesmos não deve ser enturvada por uma atmosfera de teorias ou de
conceitos apreendidos ou estudados antes. Isso é o que eu chamo ingenuidade, e
nessa disposição ingênua do ânimo ê conveniente que se coloque o leitor para
acometer os problemas da ontologia.

Mas,
ao mesmo tempo, é também exigível outra disposição de ânimo que parece
contradizer a primeira: refiro-me ao rigor na marcha reflexiva do pensamento. É
indispensável que nossas intuições, nossas visões nessa excursão pelo campo da
ontologia, sejam rigorosas, precisas, as mais claras possível, de maneira que
façamos este trabalho com uma preocupação de exatidão comparável com a das
próprias matemáticas. E por isso digo que as duas condições, a ingenuidade é o
rigor, em certo modo se contradizem. A ingenuidade é algo assim como a
puerilidade, como a infância, e, de outra parte, o rigor é uma virtude que
somente os homens habituados ao trabalho intelectual, à meditação reflexiva,
podem desenvolver. E, todavia, estas duas virtudes, aparentemente opostas, são
as que convém que o aspirante a filósofo cultive.

Por
último, também interessa uma terceira disposição de ânimo que é a paciência.
Ouçamos a palavra de Descartes quando nos aconselha que evitemos a
precipitação. Evitar a precipitação consiste em contentar-se, em cada uma das
etapas da viagem filosófica, com os resultados que se obtiveram, sem pretender,
de modo algum, antecipar soluções prematuras nem levantar problemas que não
estejam eles mesmos levantados espontaneamente pela constelação dos resultados
a que se haja chegado.

Com
este viático, com esta preparação para a viagem, vamos ao campo intricado da
ontologia; c de início encontramos, ao chegar a essa parte da selva, o letreiro
que diz: "Ontologia".

170.  
Teoria do ser e do ente.

Vamos
estudar a ontologia. Que significa a palavra "ontologia"? A palavra
"ontologia" significa "teoria do ser". Mas esta significação
não é absolutamente exata em rigor. Ontologia, em rigor, não significa "teoria do ser", porque está formada não pelo verbo "ser"
grego, no infinito, mas pelo particípio presente desse verbo. Está formada pelo
genitivo ontos, que é o genitivo de to on; o genitivo tou ontos não significa
ser, mas significa o ente, no particípio presente. Por conseguinte, a rigor,
ontologia significa teoria do ente e não teoria do ser; e há uma diferença
notável entre teoria do ser e teoria do ente. A palavra "ser", o
verbo "ser" tem uma quantidade muito grande de significações. É extraordinariamente
multívoca; tem uma grande variedade de sentidos; e já Aristóteles dizia que o
ser se predica de muitas maneiras. Dentre outras, acabamos de encontrar essa
distinção entre o ser em geral e o ente. O ser em geral será aquilo que todos
os entes têm de comum, enquanto que o ente é aquele que é, aquele que tem o
ser. De outra parte, o ser será aquilo que o ente tem e que o faz ser ente.

Haverá,
pois, que estar predisposto a encontrar significações muito variadas dentro do
conceito "ser"; não somente estas duas que já o simples exame
filológico da palavra nos fez descobrir, mas outras muitas e muito distintas.
Ontologia será tudo isto. Será teoria do ente, tentativa de classificar os
entes, tentativa de definir a estrutura de cada ente, de cada tipo de ente; e
será também teoria do ser em geral, daquilo que todos os entes têm de comum,
daquilo que os classifica como entes.

171.  
Dois métodos.

Para
chegar pouco a pouco e lentamente ao coração mesmo da ontologia, que métodos
vamos seguir?

Oferecem-se-nos
dois. Oferece-se-nos, em primeiro lugar, o método da análise dialética da
noção mesma de ser. Poderíamos tomar a noção de ser, dirigir a ela nossa
atenção e ir separando, por análise dialética, as diferentes significações da
noção para compará-las intuitivamente com o conjunto da realidade e ver até que
ponto, como e em que sentido, cada uma das distintas significações da noção de
ser tem direito legítimo e possui algum sentido e não é simplesmente uma
palavra. Poderemos, pois, seguir esse método da analise dialética que seguiu
maravilhosamente e com perfeição e mestria extraordinárias Aristóteles na sua
Metafísica. Num dos livros da Metafísica, justamente o livro que começa
dizendo: "o ser se diz de muitas maneiras", Aristóteles vai
assinalando com limpidez e perfeição os distintos sentidos em que se pode
tomar o ser.

Mas
podemos seguir um segundo método, uma segunda ,via, que consistiria em
colocar-nos diante da realidade, diante do ser pleno, diante do conjunto total
dos seres, na situação em que a própria vida nos coloca. Consistirá esse método
em destacar-nos e partir de nossa vida atual, de  nossa realidade  como  seres
viventes,  de nós mesmos tais como estamos rodeados de coisas, vivendo no mundo
Tal é o ponto de partida de Heidegger, o maior filósofo que  tem hoje a
Alemanha.

Este
segundo caminho parece o mais adequado para ser seguido nestas lições. O
primeiro caminho tem vantagens didáticas; tem vantagens de exposição, e até
vantagens de abstração escolástica. Ao invés, este outro caminho que consiste
em tomar o ponto de vista de nossa existência real tem vantagens precisamente
existenciais; tem a vantagem de nos colocar talvez de um modo mais dramático e
vivente em contacto direto com os problemas à medida que eles mesmos vão
surgindo à nossa passagem.

172.  
Estar no mundo.

Por
conseguinte, vamos seguir este segundo método e a partir de nossa vida. Nós
vivemos, estamos vivendo. Em que consiste nosso viver? Nossa vida consiste em
que estamos no mundo; estar no mundo, isto.é viver. E estar no mundo consiste
em ter mais ou menos à mãó1 — direi — uma porção de coisas, uma
porção de objetos, uma porção de objetos materiais, de animais, de objetos de
toda classe, que constituem o âmbito onde nos movemos e atuamos. Nossa vida,
pois, consiste em tratar com as coisas que há. E as coisas que há, estão em
nossa vida e para nossa vida. E esse trato com as coisas é enormemente variado.
Fazemos com as coisas — para viver e vivendo — uma multidão de atos: comemos
frutas, plantamos árvores, cortamos madeira, fabricamos objetos, transpomos os
mares; quer dizer, estamos constantemente atuando com e sobre tudo aquilo que
há em nosso derredor. E "uma", uma coisa das coisas que fazemos com
as coisas, é pensá-las. "Além" de acender o fogo, podemos
perguntar-nos: que é o fogo? e pensamos acerca do fogo. Mas nossa atitude
primeira fundamental não é pensar, mas antes pensar é algo que no decurso de
nossa vida se nos impõe. As coisas são para nós amáveis ou odiáveis; dão-nos
facilidades ou nos opõem resistência. E quando as coisas opõem resistência à
nossa vida, imediatamente procuramos rodeios para vencer essas resistências; e
um desses rodeios para vencer essas resistências de uma coisa consiste em
pormo-nos um momento a pensar: que é isto?

Pois
bem: se tomamos esta atitude reflexiva do pensamento (que, repito, não é a
primária, mas já uma atitude derivada ou secundária), então começa o conjunto
das coisas a adquirir para nós, de repente, um matiz, um aspecto completamente
diferente.

173.  
Esfera das coisas reais.

Estamos,
por exemplo (digo-o somente por via de exemplo) na floresta, e estamos
tratando, vivendo com a floresta. Estamos junto a uma árvore e com essa árvore
fazemos algo: colocamo-nos, por exemplo, debaixo de sua ramagem, de sua
folhagem, para evitar a chuva; decidimo-nos a cortar um galho para acender
fogo, ou para fazer com ele um assento ou nos decidimos a tomar um fruto para comer;
mas também pode chegar o momento em que nos detenhamos e digamos: O que é esta
árvore? Então nossa atitude varia por completo. Já esta árvore não é um fim
imediato de nossa ação, de nosso fazer, mas esta ação e este fazer se tornaram
agora meditação e pergunta acerca do ser da árvore. Perguntamos qual é o ser
da árvore; o que é a árvore, e podemos responder que esta árvore é um carvalho.
Podemos continuar perguntando na nossa atitude de pensamento: o que é
carvalho? E podemos responder: é uma espécie vegetal. Podemos continuar
perguntando: e o que é uma espécie vegetal? E responder que é um modo de ser
coisa; uma espécie de vegetal é um conjunto de coisas, árvores, estas coisas,
classes de plantas, todas as espécies vegetais. Assim chegamos a determinai
dessa maneira que na nossa vida há coisas como árvores, pedras, plantas,
animais, um certo conjunto de coisas.

174.  
Esfera dos objetos ideais.

Mas
também podemos, num momento determinado, fixar a atenção em que, neste bosque
onde estamos, esta árvore que temos diante é igual àquela outra árvore que
existe lá. Então nos vem à mente a "igualdade" e dizemos: O
que é igualdade? e constatamos que a igualdade não é coisa; não há nenhuma
coisa que seja a igualdade. As coisas que há são árvores, animais, plantas,
pedras, o sol; mas a igualdade não é uma coisa; não há nenhuma coisa, não há
nada disso que eu chamo coisa que seja a igualdade.

Também
podemos ter percebido que o tronco desta árvore é circular, e podemos então
perguntar-nos: o que é o círculo? E também vemos imediatamente que o círculo
não é uma coisa, que não há nenhuma coisa que seja o círculo. E então,
recapitulando já o momento, verifico que com aquilo que "há" na
"minha vida" posso fazer dois grupos: um grupo onde porei árvores,
pedras, plantas, animais, casas, o Sol, a Lua, e a esse grupo chamarei coisas;
outro grupo em que aquilo que há são: a igualdade, a diferença, o triângulo,
o círculo, os números; e a tudo isso não poderemos chamar coisas, dado que o
nome de coisas reservei-o para aquelas outras. Esses novos objetos não são
coisas. Por enquanto, vamos chamá-los objetos ideais. E constato que no
repertório daquilo que há na minha vida achei, primeiro, coisas; segundo,
objetos ideais.

175.  
Esfera dos valores.

Mas
enquanto faço estas reflexões torno a pousar o olhar sobre a árvore e digo a
mim mesmo: que bela é esta árvore! E agora surge outra novidade que há em meu
mundo. Além das coisas e dos objetos ideais, há a beleza da árvore, e me digo:
Onde colocarei a beleza? Entre as coisas? Não, certamente. A beleza não ó uma
coisa. Colocá-la-ei entre os objetos ideais? Também não a posso colocar
entre os objetos ideais, porque, veja-se que coisa mais curiosa! A beleza
"não é"; os objetos ideais são, porém a beleza não é.

Se a
árvore é bela, esta beleza que a árvore tem não acrescenta nem um átomo ao seu
"ser" árvore. Se a árvore não fosse bela, não deixaria por isto de
ser tão árvore como se fosse bela. A beleza não acrescentou, pois, à árvore nem
um átomo de ser. Não posso dizer que a beleza seja um objeto ideal, porque os
objetos ideais são e a beleza não é. Não posso ter a beleza como tenho o
círculo diante da vista do pensamento, diante da visão intelectual. Diante de
minha visão intelectual tenho o círculo; e deste círculo que tenho, que está na
minha vida, posso dizer isto, isso ou aquilo. Diante de minha visão intelectual
tenho o número sete, c dele posso dizer que é primo e que é ímpar. Estes são
objetos ideais. Porém ante minha visão intelectual não tenho a beleza. A
beleza é sempre algo que tenho que pensar de uma coisa. Mas quando digo de uma
coisa que é bela, não acrescento um átomo de ser a essa coisa. A coisa que tem
beleza nem por isso tem mais ser que a coisa que não tem beleza. Que é aquilo
que tem então a coisa que tem beleza e que a distingue das outras coisas? A
coisa que tem beleza e que nem por isto tem mais ser, "tem mais valor. A
árvore bela não "é" mais que a árvore não bela, porém
"vale" mais; o quadro belo, bem pintado, não é ontologicamente mais
que o quadro mal pintado ou feio, porém tem mais valor. Ah! Encontro-me agora
com um grupo de objetos que "há" na minha vida e que não são nem as
coisas nem os objetos ideais, e que nem sequer têm ser, mas valor; que nem
sequer são, mas que valem. Estes objetos vou chamá-los "valores".

Assim,
pois, tenho já descobertos, no âmbito de minha vida, estes três conjuntos de
objetos que há. Na minha vida há coisas, na minha vida há objetos ideais, na
minha vida há valores.

176.  
Nossa vida.

Por
acaso com isto. já terminamos? Por acaso com isto está já dito tudo aquilo que
há na minha vida? Não, certamente. Pois se, sentado ao pé desta árvore fecunda
e frutífera (para a ontologia), dedico-me a fazer agora algumas reflexões mais
desinteressadas ainda, porque abrangem a totalidade daquilo que há em minha
vida, reflexões de caráter completo e total, verifico que, além dessas três
esferas de objetos, há minha própria vida, há o conjunto de todas elas na
minha vida, há minha vida mesma. E minha vida mesma, direi primeiro, não será
um desses três objetos? E acho que não. Porque minha vida não é uma coisa. Como
poderia ser minha vida uma coisa, quando as coisas estão na minha vida? Como
poderia ser minha vida uma coisa, quando minha vida é a que contém as coisas?
Não pode, pois, minha vida ser ao mesmo tempo a que contém e a contida. Não é, pois,
minha vida uma coisa. Será então minha vida um objeto ideal? Mas também não é
possível que minha vida seja um objeto ideal, porque os objetos ideais são
aquilo que são: o número sete, a raiz quadrada de três, a igualdade, o
círculo, o triângulo são aquilo que são, em todo tempo, fora do tempo e do
espaço; não mudam. Ao contrário, minha vida flui no tempo, muda no tempo; uns
dias é isto, outros dias é aquilo, e, sobretudo, minha vida é propriamente
aquilo que ainda não é. Minha vida, propriamente, é aquilo que vai ser; minha
vida, propriamente, está por ser. Ao contrário todos estes objetos ideais são
eternamente e fora do tempo e do espaço aquilo que são, de uma vez para sempre.

Direi,
então, que minha vida é um valor? Mas também não o posso dizer; porque os
valores não são, mas valem. Os valores são qualidades de coisas; as coisas são
válidas, porém os valores, eles, não são, senão que imprimem às coisas seu
valor, e minha vida, ao contrário, é uma realidade. De minha vida posso
predicar o ser, que não posso predicar dos valores. Por conseguinte, minha vida
não é nem coisa, nem objeto ideal, nem valor. Então, o que é minha vida?

 

177.  
Nem realismo nem idealismo.

Poderíamos
aqui, neste momento, distinguir entre mim que vivo e o mundo ou conjunto
daquilo que há em mim; poderíamos aqui, neste instante, distinguir entre mim e
o outro; e então poderíamos nos perguntar: que relação de ser, que relação
ontológica há entre mim e o outro? Mas esta distinção entre mim e o outro é uma
distinção válida, aceitável na vida mesma, dentro da vida. Psicologicamente o
eu, vivendo sua vida, consiste, precisamente, em estar entre coisas. Porém
ontològicamente esta distinção não é válida. Pois como, não perseguimos durante
os séculos que vêm desde Parmênides até Kant precisamente os esforços da
metafísica para verificar esta distinção? Os realistas dizem: "Se eu me
elimino, ficam as coisas." Os idealistas dizem: "Se eu me elimino,
elimino também as coisas." Mas vimos, justamente, que esta contraposição
radical das duas doutrinas é o que há de falso nelas. Se eu me elimino, não se
dão as coisas; nisso tem razão o idealismo. Mas, de outra parte, se elimino as
coilsas, não fica o eu; e nisso tem razão o realismo. O eu e as coisas não
podem, pois, distinguir-se e separar-se radicalmente, mas ambos, o eu e as
coisas, unidos em síntese de reciprocidade, constituem minha vida. E eu não
vivo como independente das coisas, nem as coisas se dão como independentes de
mim, antes viver — como diz Heidegger, embora empregando outra terminologia —
viver é estar no mundo; e tão necessárias são para minha existência e na minha
existência as coisas com que vivo, como eu vivendo com as coisas. Por conseguinte,
o subterfúgio que consistiria em cortar a vida em dois — o eu e as coisas — e
apresentar o problema ontológico alternativamente sobre o eu e sobre as
coisas, conduziria à disputa secular entre idealismo e realismo. Porém foi
porque se cortou arbitrariamente a autêntica realidade que é a vida; e a vida
não permite esse corte em dois, eu e as coisas, antes a vida é estar no mundo,
e tão necessária e essencial é para o ser da vida a existência das.coisas como
a existência do eu.

Por
conseguinte, nem realismo nem idealismo exclusivistas e exagerados, pois a vida
não tolera divisão, e, portanto, exemplifica em si mesma um quarto tipo de
objeto que não se pode reduzir, nem a coisas, nem a objetos ideais, nem a
valores, e que é aquilo que chamaríamos, pelo menos provisoriamente, objeto
metafísico.

178.
Capítulos da ontologia.

Se
agora fazemos uma pequena recapitulação, ou balanço, daquilo que obtivemos
nestas elucidações prévias, verificamos que conseguimos um certo número de
resultados apreciáveis, e que são:

1.°
Chamamos ontologia à teoria dos objetos como objetos, ou seja, à teoria das
estruturas ônticas, daquilo que há na minha vida.

2.°
Nem tudo o que há na minha vida tem igual estrutura ôntica. Assim as coisas não
têm igual estrutura ôntica aos objetos ideais, ou aos valores, ou à vida mesma
na sua totalidade.

3.°
Dentre as coisas que há na minha vida posso distinguir objetos que &o e
objetos que valem. Já tenho aqui duas grandes províncias ontológicas, porque
descobri duas estruturas ônticas diferentes: a estrutura ôntica do ser que é a
estrutura ôntica do valor que vale. Mas ainda dentro da estrutura ôntica
dos objetos que são, descobri também:

4.°
Objetos que são reais (as coisas), objetos que são ideais (a igualdade, o
círculo, a diferença etc.) e a vida, que não é nenhum deles.

Temos,
pois alcançado aqui os quatro capítulos fundamentais da ontologia. A ontologia
terá como primeira incumbência descobrir e definir o melhor possível as
estruturas ônticas de cada um desses quatro grupos de objetos; terá que nos
dizer em que consiste ser coisa; terá que nos dizer em que consiste ser objeto
ideal; terá que nos dizer em que consiste ser valor; e, por último, terá que
nos dizer o que é a vida. Aqui o problema ontológico converge com o problema
metafísico; porque, ao chegar à vida, como algo prévio, mais profundo que a
divisão entre sujeito e objeto, entre mim e coisas, atingimos já o fundamento
mais fundo de toda a realidade. EI nas problematicidades, nos problematismos da
vida, da estrutura mesma da vida e de suas condições ônticas, estará a solução
que podemos dar aos eternos problemas da metafísica; é lá que poderemos
encontrar a resposta ao grande problema: O que é aquilo que de verdade existe?
Ao mesmo tempo, lá também se nos apresentará o último grande problema da
ontologia, que é o da unidade, que paira sobre essas quatro formas de
objetividade: a das coisas, a dos objetos ideais, a dos valores e da própria
vida.

Assim,
nossa próxima marcha através do campo da ontologia está perfeitamente clara.
Teremos que nos esforçar para definir da melhor maneira possível,
sucessivamente, a estrutura de cada uma destas esferas do que "há"
na vida, e teremos que terminar pelo problematismo da própria vida, atingindo
com ele os mais distantes e mais profundos problemas da metafísica.

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