Cap. VI – O realismo das Idéias de Platão – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

LIÇÃO 
VI

O REALISMO DAS IDÉIAS
EM PLATÃO

39.
O ELEATISMO NAO É IDEALISMO, MAS REALISMO. — 40. FOBMALISMO «OS ELEÁTICOS. —
41. PLATÃO: O SER E A UNIDADE. — 42. ELEMENTOS ELEÁTICOS NO PLATONISMO. — 43.
INFLUÊNCIA DE SÓCRATES: O CONCEITO. — 44. A TEORIA PLATÔNICA DAS IDÉIAS. — 45. O CONHECIMENTO. — 46.   A IDÉIA DO BEM.

39.  
O eleatismo não é idealismo, mas realismo.

Na
lição anterior presenciamos o espetáculo de uma metafísica de grande
envergadura, de alto vôo, na qual com uma pureza realmente exemplar se dá às
perguntas: quem é o ser? quem existe? uma resposta que na história do
pensamento moderno sobrevive ainda nos seus grandes traços.

A
filosofia de Parmênides de Eléia representa uma façanha intelectual de
extraordinária magnitude, não somente por aquilo que no seu tempo significou de
esforço genial para dominar o problema metafísico, mas sobretudo pela
profundidade incalculável da penetração que levou este filósofo a formular
idéias, pensamentos, direções, que Imprimiram a toda a filosofia européia uma
marcha que desde então continuou ininterrupta com a mesma orientação.

Vimos
as linhas gerais da filosofia de Parmênides, e podemos delas tirar as duas
bases fundamentais em que se assenta todo o sistema. Essas duas bases
fundamentais são: primeiramente, a identificação do ser com o pensar; em
segundo lugar, a aplicação rigorosa das condições do pensar à determinação do
ser.

Essas
duas bases fundamentais do sistema eleático poderiam induzir, e muitas vezes
induziram, ao erro de considerar o eleatismo como a primeira forma conhecida de
idealismo. Alguns historiadores da filosofia pensaram encontrar na filosofia de
Parmênides a forma primária do idealismo filosófico. Visto que — como se tem
dito — Parmênides identifica o pensamento e o ser, visto que estabelece que o
pensamento e as condições do pensamento são a única diretriz que nos pode guiar
através de nossa procura empós do ser; esta identificação constitui o núcleo
mesmo da filosofia que os modernos chamam Idealismo.

Todavia,
esta interpretação está radicalmente errada. Nem todos os historiadores da
filosofia a compartilham, nem de longe. Mas alguns, levados por um afã que
poderíamos qualificar de intimamente sistemático, acreditaram podê-lo
interpretar assim. Refiro-me principalmente com estas palavras à tendência
recente dos filósofos que se agrupam em torno do professor Hermann Cohen, em
Marburgo na Alemanha, os renovadores do kantismo na Alemanha. Esses filósofos,
preocupados em sistematizar intimamente, propendem a ver a história da
filosofia de uma maneira falsa, porque, como colocam no centro do pensamento
filosófico universal o sistema kantiano, resulta que tudo o mais, que aparece
no panorama histórico da filosofia, desde o seu nascimento na Grécia até
nossos dias, fica para eles subdividido geralmente em dois planos: os que se
situam no mesmo plano de Kant e os que se situam fora do plano kantiano; os que
de uma ou outra maneira podem eles considerar como precursores,
vislumbradores, da filosofia kantiana, que são os que constituem a corrente
central, segundo eles, e os que, por uma ou outra causa, se afastam da
filosofia tal como Kant a entende, e traçam outros sulcos distintos do
idealismo filosófico.

Assim,
os historiadores da escola de Marburgo viram em Parmênides um idealista.
Sobretudo em Platão, sucessor de Parmênides, acreditaram vislumbrar um
verdadeiro precursor de Kant. Interpretaram o eleatismo e o platonismo,
Parmênides e Platão, como idealistas avant la lettre. Pelo contrário,
filósofos como Aristóteles, cuja influência no pensamento humano não é possível
de modo algum negar, nem sequer diminuir o mínimo que seja, aparecem para eles
como fatais desvios de uma corrente que, se tivesse seguido o curso iniciado
por Parmênides ou Platão, teria chegado muito antes ao pleno esplendor que
recebe com Kant.

Isto
é uma maneira parcialíssima de focalizar a história da filosofia.
Parcialíssima e, além disso, radicalmente falsa. A filosofia de Parmênides não
pode, de modo algum, ser entendida como um idealismo antes do idealismo. É
certo que os dois esteios fundamentais do pensamento parmenídico (a identidade
entre o ser e o pensar e a submissão do ser às diretrizes do pensar) oferecem
evidentemente o flanco para que, jogando com as palavras, injetando em uma
mente do século VI antes de Cristo concepções que nem de longe podem estar
nela, se tirem conclusões que abonam uma interpretação idealista de
Parmênides. Mas Isto é um abuso. Na realidade, Parmênides não é um idealista.
Eu me atreveria, pelo contrário, a assentar com um pouco de paradoxo, um pouco
paradoxalmente, com um matiz de paradoxo, a afirmação contrária, a saber: que
Parmênides é o filo- , sofo grego que estabelece as bases do realismo
filosófico. Porque é claro que existe no pensamento de Parmênides esta
identidade entre o ser e o pensar; mas a interpretação dessa identidade
dependerá do lugar em que nós coloquemos o acento. Podemos colocar o acento no
"pensar" e dizer que o ser se reduz a pensar, e então é claro que
teremos algo parecido com o idealismo; mas coloquemo-lo ao inverso: coloquemos
o acento no "ser", e concluímos que o ser é quem recebe as
determinações do pensar, que  o pensar não é mais que aquele que injeta no ser
suas próprias determinações. Então, colocando o acento sobre o ser,
aparece esta filosofia com um aspecto completamente diferente.

Na
realidade, na mente de Parmênides não se dilui, nem por um bó instante, o ponto de partida efetivo
do seu pensamento; e o ponto de partida efetivo é a análise da coisa. Parmênides
parte na sua metafísica da realidade das coisas; de que as coisas são reais; de
que essas coisas que vemos, tocamos, sentimos, temos diante de nós, possuem a
plenitude do ser. Porém, pergunta imediatamente a si mesmo: em que consiste
esse "ser" dessas coisas? Como podemos "pensar" fosse ser
sem contradições? Como podemos chegar a ajustar, a identificar o nosso
pensamento com esse ser? Pois não podemos fazê-lo mais que analisando esse ser,
analisando as coisas e limpando-as de tudo aquilo que encontremos nelas de
contrário às condições do pensar.

Uma
das condições fundamentais de todo pensamento é que o pensamento
concorde consigo mesmo, que o pensamento seja coerente, ou, como dizemos
vulgarmente e com uma expressão imprópria mas corrente, que o pensamento seja
lógico. Quer dizer, que o pensamento não afirme agora uma coisa e um momento
depois o contrário, porque não pode ser verdade que uma coisa seja certa e que
imediatamente depois o contrário dessa coisa seja também certo.

Pois
se uma das condições do pensar é essa e temos aí o ser, então é
impossível que o ser que temos aí seja realmente contraditório e cheio de
incoerências. Tiremos do ser que temos aí suas incoerências de vulto,
aparentes, visíveis, essas incoerências notórias; digamos que essas
incoerências não pertencem ao ser porque não podem pertencer a ele, já que são
impensáveis, já que não concordam entro si; e o que ficar depois de ter feito
essa limpeza do ser, isto será o que verdadeiramente é. E dentre essas
incoerências, que temos que tirar de diante de nós, está a multiplicidade de
seres, está a mutabilidade daquilo que temos diante. Vemos que muda; mas como
mudar é ilógico, é irracional, digamos que acreditamos que muda: porém, que na
realidade não muda. A mobilidade do ser é outra dessas incoerências.

Temos,
pois, que para Parmênides a realidade continua a ser fundamentalmente uma
coisa, uma coisa que não admite outra ao seu lado, porque seria contraditória;
que não admite o movimento, porque seria contraditório; que não admite a
mudança, porque seria contraditória. Todavia o primeiramente existente para
Parmênides é res, coisa; e por isso, eu me atreveria a dizer que Parmênides é,
na realidade, o primeiro fundador do realismo metafísico, embora na ‘expressão
isto resulte paradoxal.

40.  
Formalismo dos eleáticos.

Esta
façanha que Parmênides leva a efeito seis séculos antes de Jesus Cristo, se a
olhamos e a contemplamos do ponto de vista técnico -filosófico,
indubitavelmente aparece-nos como grosseira ou, melhor dito, como ingênua, como
feita por um homem que pela primeira vez maneja a razão, sem disciplina
anterior, sem escola, sem a experiência secular dessa elaboração dos conceitos
e das idéias que as vai polindo, polindo, até fazê-las encaixar
perfeitamente umas nas outras. É um homem que leva a efeito uma façanha ingênua
e grosseira, porque não sabe ainda manejar o instrumento que tem nas mãos.
Descobrem os homens dessa época, os Pitagóricos e Parmênides, a razão, e ficam
maravilhados ante o poder do pensamento; ficam maravilhados de como o
pensamento, por si só, tem virtudes iluminativas extraordinárias; de como o
pensamento, por si só, pode penetrar na essência das coisas. A aritmética dos
Pitagóricos, a geometria incipiente naqueles tempos, tudo isto fez pensar àqueles
homens que com a razão poderiam decifrar imediatamente o mistério do universo
e da realidade. E então Parmênides faz da razão uma aplicação exaustiva, leva-a
até os últimos extremos, até os últimos limites, e este exagero na aplicação da
razão é, provavelmente, o que tem que suportar a culpa de que o sistema de
Parmênides apareça no seu conjunto como um simples formalismo metafísico. Com
efeito, o princípio racional de que Parmênides faz uso é o princípio de identidade.
Esse princípio, segundo o qual algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, esse
princípio de identidade é, todavia, realmente um princípio" formal. Não
tem conteúdo; se o quisermos preencher, temos que preenchê-lo com palavras como
"algo", "isto", "aquilo"; com frases como
"uma coisa não pode ser igual a outra" ou "não pode ser desigual
a si mesma". Essas palavras vagas — algo, aquilo, isto, uma coisa —
mostram perfeitamente que o princípio é uma forma que carece de um conteúdo
objetivo próprio; pois, se não há outras intuições mais que a própria intuição
desse princípio, então este princípio constitui um simples molde, dentro do
qual não se verte realidade alguma.

Vemos
isto clarissimamente se refletimos um instante na impressão que nos produzem
argumentações como as de Zenão de Eléia quando ataca o movimento. Recordemos a
argumentação sutil de Zenão de Eléia para demonstrar que Aquiles não pode nunca
alcançar a tartaruga. Nossa impressão é que aquilo não convence, que aquilo
está bem, que é difícil refutá-lo, que talvez não possa encontrar-se outro
argumento que se lhe oponha vitoriosamente; mas que, todavia, não convence
muito. E na verdade temos tanta razão, em não conceder mais que admiração, e
não crédito, a esses argumentos, temos tanta razão que os sofistas e os
cépticos, séculos após, adotam a Zenão de Eléia como um dos seus grandes
mestres. Mas, que é aquilo que falha nessa argumentação de Zenão de Eléia? Onde
está a causa desse desagrado que sua argumentação produz em nós? E muito
simples: a causa está em que Zenão de Eléia faz um uso objetivo e real de um
princípio que não é mais que formal; e como faz desse princípio um uso objetivo
e real, sendo assim que o princípio é puramente formal, não podemos rebatê-lo
facilmente com princípios de razão, de argumentação. Mas, em troca, a realidade
mesma resulta contrária àquilo que diz Zenão. E em que consiste este choque
entre a realidade e o princípio formal? Relembremos o argumento de Zenão. Zenão
parte do princípio de que o espaço é infinitamente divisível. Mas, pensemos um
momento: o espaço é infinitamente divisível na possibilidade; pode ser
infinitamente dividido no pensamento; pode sê-lo como mera possibilidade, como
mera forma; porém o sofisma, por assim dizer, de Zenão de Eléia consiste em que
este espaço — que em potência pode ser infinitamente dividido — é realmente e
agora mesmo dividido. De modo que o sofisma de Zenão consiste em confundir as
condições simplesmente formais e lógicas da possibilidade com as condições
reais, materiais, existenciais do ser mesmo.

Diz
Zenão que Aquiles não alcança a tartaruga porque a distância entre ele e a
tartaruga é um pedaço que pode dividir-se infinitamente. Sim. Mas esse
"pode dividir-se infinitamente" tem dois sentidos: um sentido de
mera possibilidade formal matemática, e outro Sentido de possibilidade real,
existencial. E o trânsito suave, o trânsito oculto, entre um e outro sentido é
que faz com que a argumentação surpreenda, mas não convença. Este é o vício
fundamental de todo o Eleatismo. Todo o eleatismo não é mais que uma metafísica
da pura forma, sem conteúdo.

41.  
Platão: o ser e a unidade.

Quem
percebeu bem os méritos extraordinários de Parmênides e no mesmo tempo o seu
ponto fraco, foi Platão. Sabemos que Platão o Aristóteles representam os dois
cumes do pensamento grego. Platão deve uma enorme parte de sua filosofia a
Parmênides. Deve também outra parte de sua filosofia a Sócrates. Mas percebeu
muito bem o ponto em que a filosofia de Parmênides fraquejava. E numa passagem
de O sofista, diálogo de Platão, se diz textualmente que "Parmênides
confunde aquilo que é com a unidade do que isso é." Isto é, que Parmênides
confunde o que é, ou seja, a existência de algo, com a unidade do que isso é,
ou seja, com a unidade das propriedades disso que existe. Confunde, pois,
segundo Platão, o existir com o que eu chamo o consistir. Confunde a existência
com a essência. Confunde o que mais tarde Aristóteles vai chamar
"substância" com aquilo que d substância tem, ou seja, com o que a
substância é, com sua essência. Uma essência, não por isto, não por essência,
há de existir já.

Este
erro, que Platão revela e descobre na filosofia de Parmênides, é, com efeito,
fundamental. Consiste em confundir as condições formais do pensamento com as
condições reais do ser. Assim, Platão está perfeitamente armado para
desenvolver com uma amplidão magnífica alguns dos postulados contidos na
filosofia de Parmênides e alguns outros que toma do seu trato pessoal com
Sócrates. Vou primeiramente tentar fixar com muita brevidade aquilo que Platão
deve a Parmênides e o que deve a Sócrates.

42.  
Elementos eleáticos no platonismo.

A
Parmênides deve Platão três elementos muito importantes de kuu filosofia. Deve-lhe em primeiro
lugar a convicção de que o instrumento para filosofar, ou seja, o método para
descobrir aquilo que v, quem é o ser, quem existe, não pode ser outro que a
intuição intelectual, a razão, o pensamento, o nous, como dizem os gregos’. Da
Identificação, que faz Parmênides entre o pensar e o ser, recolhe Platão este
ensinamento: que o guia, que nos pode conduzir sem falha nom erro através dos
problemas da metafísica, é o pensar, é o pensamento. Nosso pensamento é quem
deve advertir-nos a cada momento: por aí vai bem; por aí vai mal. O
pensamento, na forma de intuição intelectual, é quem nos há de levar
diretamente à apreensão do verdadeiro  e autêntico ser.

Em
segundo lugar, aprende e recebe de Parmênides a teoria dos dois mundos: do
mundo sensível e do mundo inteligível. Porque se, efetivamente, a intuição
sensível não serve para descobrir o verdadeiro ser, mas antes este há de ser
descoberto por uma intuição intelectual, não pelos olhos do rosto, mas pelos
interiores do espírito, o espetáculo do mundo, que o mundo oferece aos
sentidos, é um espetáculo errôneo, falso, ilusório. E junto, ou defronte, ou
em cima, eu ao lado deste mundo sensível, está o outro mundo de puras verdades,
de puros entes, de puras realidades existentes, que é o mundo inteligível. Essa
divisão em dois mundos recebe-a, também, Platão de Parmênides, e faz uso dela.

E em
terceiro lugar, Platão aprende de Parmênides ou de seu discípulo Zenão de Eléia
— o autor dos argumentos antes expostos — a arte de discutir, a arte de aguçar
um argumento, de polir uma argumentação, de contrapor teses; em suma, essa arte
que Platão desenvolve em forma pessoal amplíssima e que leva o nome de Dialética.

São
estas as três dívidas fundamentais que tem Platão para com Parmênides.

43.  
Influência de Sócrates: o conceito.

Mas
a influência de Sócrates em Platão não é menos importante que a influência de
Parmênides. Sócrates ensina a Platão umas quantas coisas de capital
importância. Sócrates é um homem que não escreveu nunca uma linha e resulta
que, depois de vinte e cinco séculos, falamos ainda dele com o mesmo
interesse, às vezes com a mesma paixão como se estivesse vivendo hoje. É um
caso único na história do pensamento humano.

Sócrates
contribui para o cabedal da filosofia com umas quantas coisas de interesse
fundamental. A primeira é a seguinte: Sócrates descobre o que denominamos os
"conceitos". Como descobre Sócrates os conceitos? Porque lhe ocorre
aplicar às questões morais, às questões da vida moral, o método que os
geômetras seguem ao fazer sua ciência. Que fazem os geômetras? Reduzem as
múltiplas formas sensíveis, visíveis, dos objetos a um repertório pouco
numeroso de formas elementares que chamam "figuras". Os geômetras
apagam, por assim dizer, as formas complicadíssimas da realidade sensível e analisam
essas formas e as reduzem a polígonos, triângulos, quadriláteros, quadrados,
círculos, elipses; um certo número reduzido de formas e figuras elementares. E
então se propõem, de cada uma dessas formas ou figuras elementares, como se diz
no grego, "dar a razão", dar razão delas, explicá-las, dizer o que
são, dar sua definição; uma definição que compreenda sua gênese e ao mesmo
tempo as propriedades de cada uma dessas figuras.

A
Sócrates ocorre o propósito de fazer com o mundo moral o mesmo que os geômetras
fazem com o mundo das figuras físicas.

No
mundo moral há uma quantidade de ações, propósitos, resoluções, modos de
conduta que se apresentam ao homem. Pois a primeira coisa que ocorre a Sócrates
é reduzir essas ações e métodos de conduta a um certo número de formas
particulares, concretas, a um certo número de virtudes; por exemplo: a justiça,
a moderação, a temperança, a coragem. E logo, após ter feito de cada uma
dessas virtudes ou formas primordiais da vida moral o mesmo que faziam os
geômetras com suas figuras, aplica o entendimento, aplica a intuição
intelectual, para chegar a dizer o que é a justiça, o que é a moderação, o que
é a temperança, o que é a coragem, o que é o amor, o que é a compaixão etc.
Ora: "que é?" significa para estes gregos "dar a razão
disso", encontrar a razão que o explique, encontrar a fórmula racional que
o abranja completamente, sem deixar fresta alguma. E a essa razão que o
explica, a esta fórmula racional denominam com a palavra grega logos, uma das
palavras mais refulgentes do idioma humano; ilustre, porque dela provém a
lógica e tudo aquilo que com a lógica se relaciona; ilustre também porque o
credo religioso apossou-se dela, e a introduziu no latim com o nome de verbum,
que se encontra até mesmo nos dogmas fundamentais de nossa religião: o Verbo
divino. Essa é a tradução latina da palavra logos, que antes de Sócrates
significava simplesmente conversa, palavra; possui desde então o sentido
técnico filosófico que Sócrates lhe dá; e, a partir dele, possui em toda a
filosofia um sentido muito variável, que variou muito no decorrer da filosofia,
mas que primordialmente é a razão que se diz de algo. O que os geômetras dizem
de uma figura, do círculo, por exemplo, para defini-lo, é o logos do círculo, é
a razão dada do círculo Do mesmo modo, o que Sócrates pede com afã aos cidadãos
de Atenas é que lhe dêem o logos da justiça, o logos da coragem. Dar e pedir
logos é a operação que Sócrates pratica diariamente pelas ruas de Atenas.

Pois
que é este logos senão o que hoje denominamos "conceito"? Este é o
conceito. Quando Sócrates pede o logos, quando pede que indiquem qual é o logos
da justiça, que é a justiça, o que pede é o conceito da justiça, a definição da
justiça. Quando pede o logos da coragem, o que pede é o conceito da coragem.
Sócrates é, pois, o descobridor do conceito. Pois bem: o conceito de logos é
algo que Platão recebe de Sócrates.

Mas
para Sócrates o interesse fundamental da filosofia era a moral: chegar a ter
das virtudes e da conduta do homem conceitos tão puros e tão perfeitos que a
moral pudesse ser aprendida e ensinada como se aprendem e se ensinam as
matemáticas, e que, por conseguinte, ninguém fosse mau. Porque a convicção de
Sócrates é que aquele que é mau o é porque não sabe.

44.  
A teoria platônica das idéias.

Esta
convicção moral e profunda e esta idéia do conceito toma—as Platão de
Sócrates. Mas imediatamente estende, amplifica o uso do conceito, já não
somente para a geometria, não somente para as virtudes, como Sócrates, mas, em
geral, para a coisa em geral. Converte, pois, Platão, o conceito no
instrumento para a determinação do qualquer coisa em geral, e imediatamente põe
em relação essa contribuição socrática com os ensinamentos recebidos de
Parmênides; une a idéia de conceito, de logos, com a idéia de "ser" e
com os atributos do ser parmenídico, e daí resulta exatamente a solução
peculiar de Platão ao problema metafísico, sua teoria das idéias. Veja-se uma
passagem de Aristóteles em que explica como Platão chegou à sua filosofia, como
Platão chegou ao seu próprio sistema. Diz Aristóteles: "A ocupação de
Sócrates com os objetos éticos e não com a natureza em geral, procurando
naqueles objetos éticos o que tem de geral e encaminhando sua reflexão
principalmente às definições, induziu a Platão, que o seguia, a opinar que a
definição tinha como objeto algo distinto do sensível." Eis aqui a união
entre o método socrático de buscar o logos, com a idéia parmenídica de que o
ser não é o sensível; e esta união dá por resultado a metafísica de Platão,
que culmina na sua famosa teoria das idéias, que vou expor agora em poucas
palavras.

Também
Platão, como Parmênides e como todo metafísico em geral, de Qualquer época que for,
parte da pergunta: quem existe? quem é o ser? Mas Platão já está de sobreaviso.
Já descobriu o erro que tinha cometido Parmênides ao confundir o "que
existe?" com aquilo que o que existe é, ao confundir a existência com a
essência. E como está de sobreaviso, não comete o mesmo erro, mas antes, pelo
contrário, distingue já claramente entre a metafísica como teoria da existência
e a metafísica como teoria da objetividade em geral. Já existe em Platão, por conseguinte,  embora muito Intimamente unidas e não fáceis de
separar — uma teoria da existência e uma teoria da objetividade, uma teoria do
objeto, uma verdadeira ontologia, além da metafísica.

A
ontologia de Platão está muito clara. Relembremos o logos de Sócrates, a
definição do conceito que abrange uma porção da realidade, da mesma forma que
a figura "triângulo" abrange uma porção de formas que se dão na
realidade visível e tangível. Que é, pois, este logos? Platão o analisa e
encontra que esse logos é uma unidade sintética, uma união na qual estão
reunidos, atados, formando uma síntese indissolúvel, uma porção de entes ou de
caracteres.

Pois
bem: essa união, essa unidade dos caracteres que definem um objeto recortado na
realidade, a essência desse objeto, ou, se se quiser, a consistência, unida
numa unidade indissolúvel, se a contemplamos agora com uma intuição direta do
espírito e logo conferimos a essa unidade a realidade existencial, essa é a
idéia, segundo Platão.

Agora
vamos explicar, um por um, os elementos dessa idéia.

Em
primeiro lugar a palavra "idéia" é um neologismo de Platão. A
situação dos filósofos, que começavam a filosofar há vinte e cinco séculos, era
difícil, porque não tinham a seu dispor terminologia nenhuma. Para nós é muito
simples: puxamos a gaveta da história, e desde Platão até aqui temos uma
enormidade de termos para dizer o que queremos dizer. Mas então não havia mais
que os termos do idioma usual. Daí, os filósofos lançarem mão de dois recursos:
um, tomar do idioma usual um termo e dar-lhe sentido filosófico; o outro recurso
consiste em forjar um termo novo. Isto fez Platão ao forjar a palavra
"idéia": formou-a com uma raiz de um verbo grego que significa
"ver". De modo que "idéia", realmente, significa visão,
intuição intelectual. Isso é exatamente o que significa idéia.

Mas
a idéia é uma intuição intelectual do ponto de vista do sujeito que a intui.
Deixemos agora o sujeito que a intui e tomemos a idéia em. si mesma, ela, a
intuída nessa visão, o objeto da visão, e então a idéia é duas coisas. Em
primeiro lugar, unidade, reunião indissolúvel, amálgama de todos os caracteres
de uma coisa, definição dos seus caracteres, a essência deles, o que eu
denomino a consistência. E em segundo lugar Platão confere a isto existência
real. De modo que as idéias são as essências existentes das coisas do mundo
sensível. Cada coisa no mundo sensível tem sua idéia no mundo inteligível, e
então aplica Platão sem rodeios a cada uma dessas unidades que chama
"idéia" os caracteres que Parmênides aplica ao ser em geral. Quer dizer: uma idéia é sempre uma. Há muitas idéias. O mundo das idéias está cheio de
idéias, porém cada idéia é uma unidade absolutamente indestrutível, imóvel,
imutável,  intemporal,  eterna.

Essa
idéia é, ademais, o paradigma (é palavra platônica), o modelo exemplar ao qual
as coisas que vemos, ouvimos e tocamos, se ajustam imperfeitamente. A melhor
maneira de explicar essa relação de semelhança imperfeita entre as coisas e as
idéias consiste em relembrar que uma das origens de tudo isto está na
geometria. As coisas forçosamente têm que ter uma figura geométrica, mas a têm
imperfeita. As coisas são quadrados, quadriláteros. Mas é um quadrilátero
perfeito esta lousa? De modo algum. Não é preciso mais que aproximar-se para
ver que os lados não são retos; está muito torto. Se está muito bem feito e à
primeira vista não parece torto, aproxime-se mais e se verão os defeitos. Não
há nenhuma coisa que seja na sua figura perfeitamente ajustada à figura
geométrica que pensa o geômetra. Pois, do mesmo modo, não há nenhum homem
realmente que seja absolutamente ajustado à idéia do homem. Não há nenhuma
estátua realmente que seja absolutamente ajustada à idéia de beleza. Não há
nenhum ser na natureza que seja absolutamente ajustado à sua idéia no mundo
supra-sensível. A relação entre as coisas e as idéias é uma relação em que as
coisas participam das essências ideais; porém não são mais que uma sombra, uma
imperfeição dessas essências ideais.

Num
de seus diálogos, em A República, Platão compara os dois mundos: o mundo
sensível e o mundo inteligível, ou, como ele o chama, o céu, topos uranos, o
lugar celeste; compara-os às sombras que se projetariam no fundo de uma caverna
escura se por diante da entrada dessa caverna passassem objetos iluminados pelo
sol. Do mesmo modo que entre as sombras projetadas por esses objetos e os
objetos mesmos há um abismo de diferença, e, sem embargo, as sombras são em
certo modo partícipes da realidade dos objetos que passam, desse mesmo modo os
seres que contemplamos na nossa existência sensível, no mundo sensível, não
são mais que sombras efêmeras, transitórias, imperfeitas, passageiras,
reproduções ínfimas, inferiores,  dessas idéias puras, perfeitas, eternas, imperecíveis, 
indissolúveis, imutáveis, sempre iguais a si mesmas, cujo conjunto forma o
mundo das idéias.

45.  
O conhecimento.

E
então nosso conhecimento, nossa ciência, nossa episteme, em que consiste?
Consiste em elevar-nos por meio da dialética, da discussão, das teses que se
contrapõem e se vão depurando na luta de umas contra outras, para chegar desde
o mundo sensível, pela discussão, a uma intuição intelectual desse mundo
supra-sensível, composto todo ele pelas unidades sintéticas que são as idéias
e que ao mesmo tempo constituem a unidade ontológica da significação, unidade
ontológica daquilo que consiste, da essência, e ao mesmo tempo unidade
existencial atrás dessa unidade ontológica.

No
mundo das idéias existe, ademais, uma hierarquia. As idéias estão em relação
hierárquica, mantêm entre si essas relações que são por sua vez outras idéias.
Precisamente esse será um dos pontos fracos do si^ema platônico, por onde a
perspicácia profunda de Aristóteles saberá penetrar.

46.  
A idéia do bem.

Todas
as idéias pendem de uma idéia superior a todas elas que é a idéia do bem. Aqui
ecoa de novo, como um acorde que volta ao final da sinfonia, aquele interesse
moral que fora fundamental no pensamento de Sócrates e que também herdou
Platão. Para Platão o importante é realizar a idéia do bem. Que os Estados
políticos, formados na terra pela união dos homens que moram nela, sejam o
melhor possível, se ajustem o mais possível a essa idéia do bem. Por isso põe
toda a sua filosofia, toda a sua metafísica e toda a sua ontologia ao serviço
da teoria política do Estado; porque acredita que assim como a idéia do bem é a
suprema idéia que rege e manda em todas as demais idéias, do mesmo modo entre
as coisas que existem nesse mundo sensível, aquela suprema que deverá mais que
nenhuma coincidir com a idéia do bem é o Estado. E consagra os dois mais
volumosos diálogos que escreveu, A República e As Leis, a estudar a fundo como
deve ser a constituição de um Estado ideal. Por sinal que conclui, em resumo,
que o Estado ideal será um Estado no qual, ou os que mandam sejam filósofos, ou
sejam os filósofos os que mandam.

Chegamos
com isto ao termo daquilo que me propunha dizer nesta lição. Temos, creio eu,
com a filosofia de Platão, todos os fios necessários para compreender a de
Aristóteles. A filosofia de Aristóteles seria incompreensível se, como quiseram
os filósofos atuais da escola de Marburgo, interpretássemos Platão como uma
espécie de Kant de vinte e cinco séculos atrás. Então Aristóteles seria
incompreensível, porque o que fez fundamentalmente foi plasmar e dar uma forma
arquitetônica, magnífica aos elementos que há na filosofia de Platão.

A
filosofia de Platão não é, como julgam Natorp, Cohen e os fundadores da escola
de Marburgo, não é, nem de longe, idealismo. As idéias de Platão não são
unidades sintéticas do nosso pensamento e que nosso pensamento imprime às
sensações para dar-lhes unidade e substantividade. Não; antes para Platão, o
mesmo que para Parmênides, as idéias são realidades que existem, as únicas realidades
que existem, as únicas existentes, visto que as coisas que vemos e tocamos são
sombras efêmeras; são, aquilo que são, indiretamente e por metaxis ou
participação com as idéias.

Somente
desta maneira, compreendendo a Platão na sua autêntica realidade metafísica,
somente entendendo-o como um realismo das idéias, somente assim se pode
entender Aristóteles, porque o que este fará será dar uma lógica interna a todo
o sistema c trazê-lo, por assim dizer, do seu céu inacessível, a esta terra,
para fazer que estas idéias, que são transcendentes às coisas percebidas, se
tornem imanentes, internas a elas. Em suma, Aristóteles colocará a idéia dentro
da coisa sensível. Isto é o que fará Aristóteles e o que veremos na próxima
lição.

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