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Porém antes, ainda umas palavras sobre a segunda parte do povo, a parte não livre, os escravos, cujo número em Pernambuco e, sobretudo, nas províncias do meio (Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo) sempre ainda equivale ao dos livres, e antigamente muito o superava.

A população escrava (como já se mencionou) foi recrutada de duas raças; parte indígenas, tantos quantos caíram na servidão dos colonos brancos pelo aprisionamento na guerra, pelo roubo de homens e pela compra; todavia, o número desses servos índios era precisamente nas províncias do meio muito escasso; e, além disso, nós já vimos (caps. III e VII) como depois de uma luta bicentenária por um princípio, finalmente a lei de emancipação, de 6 de junho de 1755, reconhecia a liberdade e igualdade de direitos dos habitantes primitivos, eximia-os completamente e sem exceção da escravidão. Para o futuro, devia somente pesar a maldição da escravidão humana sobre a raça africana; contudo, sem dúvida quando o sangue de outra raça, índia ou européia, se misturava com a africana, logo ficava o mestiço sob o jugo da escravidão; e, de fato, era coisa que vigorava em toda parte nos Estados escravocratas, assim também no Brasil, como tradição e lei: "o filho segue a condição da mãe". Portanto, quando agora nos referimos à população escrava do Brasil, visamos exclusivamente os negros e os mestiços de seu sangue.

A imigração da raça africana se fez, como se sabe, por meio de tráfico de escravos, que o Brasil logo no início da colonização atraiu às suas terras, e de ano para ano foi tomando maior incremento.

Alguns escritores, por exemplo Tomás de Mercado, em 1569, desde cedo pro-fligaram incisiva e abertamente os abusos e barbaridades desse comércio de homens; porém essa instituição em si mesma e, sobretudo, o princípio da escravidão negra vigora até aos tempos modernos, como coisa permitida e justa; e ao passo que, sobretudo a Companhia de Jesus, com tamanha animação e tão persistente energia combateu nas fileiras em prol da liberdade dos índios, o negro não achou advogados74.

E os serviços do africano, assim como estavam as circunstâncias, eram de fato imprescindíveis; a imigração européia continuava sempre escassa, visto como mãe-pátria, Portugal, e algum tempo a Holanda, não dispunham no momento de muitos homens que pudessem ceder, e os próprios imigrantes de todo não teriam sido aptos para se entregar ao pesado trabalho da agricultura no fértil trecho plano da costa das quentes províncias do meio; quando muito, os seus filhos, os crioulos, podiam impunemente expor-se aos ardores do sol tropical; por outro lado, os índios, quer fossem escravos, quer livres, de aluguel, eram sempre maus trabalhadores, sem atividade contínua, nem perseverança; e, contudo, era preciso continuar a exploração das fazendas, a produção do açúcar, e, se possível ainda, aumentá-la.

Assim ficava a introdução dos negros uma questão de vida ou de morte; e nós já vimos como a Holanda e Portugal se guerreavam simultaneamente, não só no Brasil, como nas costas da África; apenas o conde Moritz de Nassau firmara o pé em Pernambuco, logo ele mandou tomar posse das feitorias de escravos em Angola, em 1637 e 1641; por outro lado, a reconquista desses lugares, em 1648, se efetuou quase só pela vontade e às custas da província do Rio de Janeiro. Daí em diante, progrediu sem estorvo a introdução de negros, a princípio por via indireta, passando por Lisboa, mais tarde diretamente da África, como monopólio da bandeira portuguesa e provisoriamente também de companhias privilegiadas. Aconteceu o mesmo depois da declaração de independência do Brasil, até ser, afinal, por uma lei de 4 de setembro de 1850, definitivamente abolida essa importação75.

Deve causar-nos pasmo que continuasse tanto tempo a introdução dos negros a ser uma necessidade para o Brasil, e que ainda atualmente muito se sinta a falta dela, quando se sabe que nos Estados escravocratas norte-americanos, onde, entretanto, só cem anos mais tarde foi introduzido o primeiro negro, e com muito maior produção, lhes basta á procriação dos escravos dentro do país; todavia, a coisa se explica por uma economia mal entendida, que também era usada nas Antilhas e atualmente ainda o é em Cuba.

O fazendeiro brasileiro, como o das índias Ocidentais, sempre preferiu comprar escravos em plena virilidade, dos quais ele pode obter imediata utilidade; mulheres eram menos procuradas e importadas em menor escala; daí resultou na população escrava uma grande desproporção dos sexos, em conseqüência do que a natural multiplicação não chegava para compensar as perdas naturais. Daí a premente necessidade de sempre novas introduções de negros africanos, "pretos brutos", assim chamados em contraposição aos "pretos crioulos", nascidos no país; e essa corrente contínua teve então uma grande influência sobre o caráter da população negra, por serem procedentes, em regra geral, sempre das mesmas feitorias portuguesas, portanto sempre dos mesmos grupos de povos da África76 e76_A.

Sendo assim, o negro do Brasil mantinha continuamente uma certa ligação com a pátria africana; daí a razão por que nem o novo meio, nem a cultura dos brancos, nem a mescla do sangue branco ou índio puderam afetá-lo de modo dominante, como aconteceu na América do Norte; foi necessário que se operasse primeiro uma espécie de fusão.

Assim como o negro adotava a língua portuguesa, também a enriquecia com grande número de palavras africanas; de par com um sem-número de vocábulos de origem indiana, dão à língua brasileira a sua feição característica. Além disso, apegaram-se os pretos com grande zelo às exterioridades do culto católico, porém desfigurando-as, ao seu modo; eles têm assim os seus santos e imagens de santos preferidos, que em grande parte são negros, como seus adoradores; por exemplo, Nossa Senhora da Conceição é a grande padroeira dos brancos e Nossa Senhora do Rosário é a grande padroeira dos negros; por outro lado, adotaram os brancos dos pretos uma parte de suas superstições por fetiches de suas pátrias, e a bruxaria africana, o feitiço, tem grande voga entre as populações incultas de todas as cores77 e 77

Finalmente, os negros no Brasil não formam de modo algum uma tão promíscua e confusa massa de povo, sem diferenças, como na União Norte-Americana, onde quase não podem ser classificados senão pela mescla de sangue; aqui, ao contrário, ainda por muito tempo, podia-se distinguir, nas diversas províncias, de que feitoria, de que trecho da costa da África costumavam, de preferência, obter os seus escravos; e, segundo a opinião de viajantes recentes, ao menos na vizinhança da Bahia, ainda este fato se dá até hoje, onde a maioria dos pretos pertence sempre à raça da Costa do Ouro, bem dotada, tanto no físico como na. inteligência.

Certamente foi sobretudo essa homogeneidade nacional que desenvolveu o forte espírito de associação, que caracteriza a população escrava brasileira, sem dúvida circunstância digna de reflexão para um Estado escravocrata; e já muitas vezes o seu perigo se patenteou abertamente em grandes levantes de escravos; em geral, porém, conseguiu aqui a raça branca dominadora obviar a esse perigo, já tolerando esse espírito de associação, já consentindo em que, dentro de certos limites e formas, abertamente se manifestasse.

No Haiti, onde, em iguais circunstâncias, existia semelhante tendência associativa (na América do Norte existiam muito leves vestígios disso e conseguiu-se, ao que parece, suprimi-la quase completamente, por meio de leis penais), reuniam-se os negros em noites escuras, pois que não lhes era permitido de outro modo, para celebrar o deus pátrio Vaudoux, uma serpente do Congo, cujo culto secreto se realizava com orgias selvagens; e esse fetichismo, por mais zelosamente que os fazendeiros franceses o perseguissem, conservou-se até hoje, e tem representado papel importante, não só durante a revolução, como de então para cá, na história do Haiti.

Muito diferente é no Brasil, onde os negros podem entregar-se a esses ajuntamentos à plena luz do dia. Começa por existirem, tanto entre os libertos como entre a população escrava, irmandades religiosas de assistência mútua, que se congregam em torno do altar de um santo preferido, e costumam celebrar com grande pompa a festa de seu padroeiro. Fora isto, usavam os negros, antigamente, em certas províncias e cidades, fazer uma festa anual para a escolha e coroação de um rei e de uma rainha do Congo, cabeças que, durante a festa, exerciam entre os escravos uma espécie de chefia e até certo ponto eram reconhecidas pelas autoridades. Assim também passaram às rivalidades de partidos dos brancos, dividiram-se, como estes, em dois grandes partidos, cada um sob o seu chefe e seus anciãos, e, quando o povo brasileiro comemorava uma festa nacional, os escravos não ficavam atrás dos livres.

Os negros, por seu lado, tomam esta prática muito a sério e muitos escravos diligentes, que penosamente economizam o dinheiro para a sua alforria, não hesitam um momento em empregar uma parte do mesmo para obter maior influência no seio de sua associação, alcançar talvez um cargo de honra; contudo, toda essa atividade associativa, política e religiosa dos escravos não tem significação profunda, e, se não podemos negar-lhe que venha a ter alguma no futuro, em todo caso hoje em dia não se vislumbra que encerre algum perigo.

No que diz respeito à condição dos escravos, como já é de noção tradicional, eles são bens móveis do seu senhor, e a sua servidão se transmite de geração em geração, pelo fato de seguir o filho sempre a condição da mãe. Ao que se sabe, nunca existiu no Brasil um livro de leis propriamente dito sobre escravos, um "código negro" (como nas colônias inglesas e francesas); em compensação, a legislação geral da mãe-pátria, Portugal, as coleções de leis de dom Manuel, o Venturoso (1521) e Filipe II (12 de janeiro de 1603), também cogitavam das relações entre senhores e escravos, e o faziam inteiramente de uma forma correspondente ao estado de cultura da época.

Por um lado, sem dúvida, verificava-se em suas disposições uma severidade que, segundo o nosso modo dever, já é crueldade, porém de nenhum modo visava só ao criminoso escravo. Por outro lado, nas leis portuguesas, que se referem tanto aos servos cristãos como aos não cristãos, não somente aos escravos negros e índios, mas. também aos servos de sangue mouro e português, não existe o odioso caráter do código norte-americano sobre"escravos; aqui não é uma raça que quer rebaixar de modo absoluto a outra e elevar-lhe insuperáveis barreiras, porém somente uma classe que procura conservar a supremacia; entretanto, a ascensão de uma classe para outra é sempre relativamente mais fácil, e não é possível existir jamais tão crassa diferença entre as duas classes, como a que existe entre duas raças separadas, quais duas castas.

Todavia, no escravismo de um país escassamente colonizado, a legislação não passa de simples teoria e somente a prática resolve as coisas; temos, pois, que indagar como eram tratados os negros.

Nos tempos antigos eram todos os fazendeiros do Brasil mal afamados por sua desmedida crueldade; depois ficou ao menos essa exprobração aos habitantes do Maranhão e Pará; ser vendido para ali era para os escravos das províncias do Sul a mais eficaz ameaça, o mais severo castigo.

Inteiramente ou meio nus, mal ou insuficientemente alimentados, além disso sobrecarregados de trabalho, à mínima falta tinham os escravos que contar com a mais rigorosa punição, tanto que Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, comparava a vida dos escravos nas fazendas de açúcar com a história da Paixão do Salvador; correntes, flagelação, ferimentos e escárnios, fome e fadigas, de dia e de noite, era essa a sua sorte, como outrora a vida de Jesus, e se tudo eles sofriam com paciência, então era seu quinhão, como o tormento, o merecimento do martírio.

"Não são somente simples maus tratos — clamou o mesmo pregador, em outra ocasião — porém os escravos são tiranizados e martirizados"; e para citar exemplo, "calando coisas mais indignas", citou ele aquele desumano castigo de que primeiro se serviram os espanhóis em Haiti, que consiste em surrar a chicotadas o servo até sangrar e depois borrifar-lhe as costas feridas com gordura fervente ou chumbo derretido (século XVII).

Talvez atualmente aconteçam semelhantes barbaridades, quando a culpa de um escravo e a violência de um senhor por igual chegam ao seu auge; contam-se do Brasil, tanto como da América do Norte, casos de ser até queimado vivo um negro; e, sobretudo, parece que eram de uso comum o chicote, a palmatória e a vara, coleira e grilhões de ferro. "Um castigo leve — diz um ditado da terra — ofende o negro, um castigo rigoroso o traz ao arrependimento". Contudo, em regra geral, já desde o século passado reivindica o fazendeiro brasileiro a fama de tratar os seus escravos com mais brandura que ninguém, e a opinião pública adotou esse conceito, se com justiça é o que resta saber, porém ao menos são alegadas boas razões. 

Em todo o Brasil reina o belo costume de que, em qualquer lugar, quando um escravo incorre num castigo, qualquer homem livre, seja um velho amigo da casa ou seja o primeiro que passa, pode arvorar-se em seu padrinho;.e o seu pedido de perdão para o culpado quase nunca é negado pelo senhor; ele séria acoimado de faltar às boas maneiras, seria ofender o amistoso padrinho.

Já se vê que o tratamento dos escravos varia segundo as condições, naturalmente; o escravo caseiro, que se ocupa somente com o leve trabalho pessoal de seus senhores, mas está exposto a todo momento, segundo o capricho, ora a um agrado amistoso, ora igualmente a um castigo por um motivo insignificante; o escravo do pequeno senhor, por exemplo, do lavrador, o qual compartilha, com o seu dono, dos trabalhos da roça, da habitação e da mesa, e, tal qual o escravo do Oriente, identifica-se inteiramente com a família; finalmente, o escravo da gleba, do fazendeiro, que mora longe da casa senhorial, nas suas choças, e que lida diretamente apenas com o seu capataz e o administrador; tudo são outras tantas gradações diversas e nelas reina a maior variedade de tratamento.

O pior para os escravos era quando o senhor se ausentava e a propriedade era confiada a um inspetor, sob condição de participar dos lucros, ou quando um especulador, com capitais insuficientes, queria explorar uma fazenda ou propriedade afundada em dívidas, e destas não faltavam no Brasil, nem faltam; importava então a todo custo obter o mais alto rendimento; os negros eram sobrecarregados de trabalho ao extremo, ao mesmo tempo lhes reduziam o mais possível o preciso para viver em alimento, habitação e roupa.

Por outro lado, a melhor de todas as sortes era nas grandes propriedades, que antigamente pertenciam às ordens monásticas; nessas reinava uma muito suave forma de servidão e os pretos tinham, até certo ponto, razão, quando se gabavam de ser servos, não dos monges, mas do claustro e do seu padroeiro; ali não se vendia ninguém; o trabalho era relativamente leve e, para o que dizia respeito ao bem-estar, tanto como à instrução religiosa, cuidava-se com máximo zelo.

Iguais condições se achavam nas propriedades de alguns grandes e ricos fazendeiros; assim como para eles era ponto de honra nunca parcelar a fazenda, assim também faziam questão de não vender um escravo; os escravos permaneciam então fixos ao solo, onde haviam nascido, e, muitas vezes, era-lhes permitido de bom grado tomar um dos nomes da família, de sorte que existia formalmente como que um laço de raça, tal qual-existia nos clãs escoceses entre o senhorio das terras e os seus campônios.

Finalmente, uma importante suavização do jugo, certamente pesado, era o bastante generalizado costume de ser possível aos escravos adquirirem bens particulares. Por um lado, aos domingos (quanto às outras festas da Igreja católica, no que diz respeito aos escravos, parece que no Brasil se prescindia de muitas) fica o negro livre de todo o trabalho, e o que ele ganhar nesse dia é dele; também então em muitas fazendas nesse dia ele não é alimentado; velho costume brasileiro que na atualidade tem caído cada vez mais em desuso.

Por outro lado, um mais vasto campo abria-se para as atividades e espírito de especulação; pelo menos antigamente, em algumas fazendas, fornecia o senhor somente roupa a seu escravo, porém alimentação não; para isso possuía cada família, ao lado de sua choça, um pequeno campo e, além do domingo e dias santos, também tinha o sábado para si; além disso, havia muitas horas livres, pois nas grandes fazendas o trabalho não era muito sobrecarregado e, a maior parte do tempo, a cada um era atribuída uma tarefa moderada. Ou, mormente nas cidades, e nas suas vizinhanças, o negro aluga o seu tempo do seu senhor; ele então procura trabalho livre e somente, sob pena de castigo, tem que entregar diariamente ou por semana uma determinada quantia; o que ele ganhar a mais lhe pertence. Esta propriedade particular do escravo, embora não seja garantida pela lei, é protegida pelos costumes contra qualquer usurpação de seu senhor, e ele pode fazer do dinheiro o que lhe aprouver; em geral é dissipado em artigos de luxo inúteis, em bebidas e, sobretudo, no jogo, pelo qual todo brasileiro, branco ou de cor, é apaixonado; porém muitos economizam também vintém por vintém, para comprar a sua alforria.

Com isto somos chegados à emancipação dos escravos. Neste sentido existem no Brasil princípios muito liberais. Aqui nunca aconteceu, como nos Estados escravocratas norte-americanos, imiscuir-se o poder do Estado, estorvando, fazendo depender a alforria de condições, dificultando-a pelas formalidades ou proibindo-a inteiramente; a emancipação ficou sendo o que, segundo a natureza das coisas, devia ser, exclusivamente um negócio entre os senhores e os escravos; e, se nisto, não tanto pelas leis, como pelos cosoimes imemoriais, se estabeleceram certas regras, estas eram inteiramente favoráveis à causa da liberdade.

Assim, era praxe dar alforria a uma escrava depois de haver ela criado dez filhos; era corrente entre os fazendeiros, como boa obra, emancipar um certo número de escravos nas disposições testamentárias, em caso de morte; e muitos já lhes dispensavam o mesmo favor em vida, quando os escravos, por especiais merecimentos, a isso tinham feito jus; especialmente isto acontecia com aqueles que se distinguiam nas lavras de ouro ou de diamantes por um valioso achado. Além disso, quando ao batizado de um filho de escrava um assistente qualquer oferecia 20S para o resgate do neófilo, o senhor se considerava obrigado a aceitar a oferta; e a este privilégio recorriam muitas vezes os homens livres, para obter a liberdade de seus filhos naturais; freqüentemente também costumavam os padrinhos de batismo fazer o mesmo para os seus afilhados, e nessa esperança procuravam sempre as mães negras os seus compadres entre os vizinhos mais abastados. Finalmente, acontecia a miúde o escravo resgatar-se a si mesmo, oferecendo dos seus haveres particulares ao seu senhor o dinheiro para a alforria, e, nestas circunstâncias, recusar-lhe o resgate era tido como crueldade sem igual.

Tais eram as condições, segundo a narração de viajantes contemporâneos, nos tempos mais antigos e ainda no princípio deste século; com pesar acrescentamos aqui que daí em diante esses casos de emancipação se tornaram mais raros e mais difíceis.

Neste sentido ao menos a supressão do tráfico de negros africanos repercutiu aqui, tanto como na América do Norte, de modo decidicamente desfavorável. Desde que a introdução regular foi estorvada e, por fim, cessou inteiramente, os preços •subiram ao quádruplo; na mesma escala, portanto, se tornou mais difícil para o escravo ajuntar o dinheiro para a sua alforria; por outro lado, o senhor agora, há de refletir cada vez mais, antes de deixar escapar das mãos tão preciosa mercadoria humana; e, assim, acontece atualmente, com crescente freqüência, recusar ele o dinheiro de resgate que lhe oferece o seu escravo para a própria alforria. Nem sempre sem castigo: viram-se exemplos de tais desgraçados que, vendo perdido o trabalho penoso de tantos anos, enganada a esperança de uma vida inteira, se suicidavam e muitas vezes somente depois de haverem satisfeito a sua vingança, trucidando o senhor desumano.

Em parte com essas emancipações e em parte com os nascimentos, o número de negros livres aumentou consideravelmente no decurso dos séculos78; e essa população negra livre, na qual se mistura o sangue dos pretos e dos brancos, relativamente com pouco sangue índio, prevalece nas províncias centrais do Brasil sobre os brancos puros, tanto como nas províncias do Norte, do antigo Estado do Maranhão, prevalecia a população livre de raça índia ou meio sangue.

Tal qual esta última, também ela toma na ordem social a segunda categoria; ela constitui a grande massa da população, a classe do trabalho propriamente dita; e tais famílias de cor, que estão ainda na primeira geração de liberdade, que, portanto, depois de sua emancipação, começaram do nada, muito raras vezes se elevam a algum bem-estar,.tanto mais que, como já se mencionou, era muito difícil sobretudo para essa gente, adquirir um pedaço de terra próprio.

Também os seus descendentes ficam na maioria no mesmo nível; porque, mesmo não sendo os mestiços em nada inferiores aos brancos, em dotes de inteligência e habilidade (mormente os mamelucos, de sangue branco e índio, são afamados por sua energia e constituem os heróis das lendas brasileiras), atribui-se-lhes, contudo, grande indolência e sensualidade, atributos que, sem dúvida, não permitem atividade continuada, não favorecem o enriquecer. O viajante, portanto, só muito excepcionalmente acha um negro livre senhor de uma grande propriedade rural; freqüentemente encontram-se mulatos como tais; porém, a eles pode-se aplicar especialmente o provérbio brasileiro alusivo à rápida mudança de posses: "O pai tasqueiro e taverneiro, o filho cavaleiro, o neto indigente".1"

Portanto, em regra geral, está a raça de cor, na escala de graduação social, abaixo dos brancos; dela se recruta no interior a classe dos moradores e em parte a dos lavradores; na cidade, a dos operários e merceeiros; ao passo que os jornaleiros são na maioria escravos; só raramente e em casos isolados alcança um homem de cor a categoria da aristocracia rural, ainda muito menos a dos negociantes (nos grandes portos conservam de todo tempo a preponderância os residentes europeus, outrora somente os portugueses, agora de todas as nações). Estas altas categorias, porém, não são próprias para inocular na sua árvore genealógica sangue de cor, isto é, não tomam facilmente para legítima esposa uma rapariga de cor; entretanto, nas relações sexuais, dão decidida preferência às mulatas, como o adágio brasileiro diz sem rodeios: "As brancas são para casar, as mulatas para fornicar, as pretas para trabalhar".

As raparigas mulatas, cheias de paixão sensual e destituídas de toda força moral, estão sempre prontas a acolher esses desejos ilícitos; um sem-número vivem como camaradas nas casas de rapazes solteiros e casados, até que uma rival mais feliz ou a esposa branca lhes faça ceder o lugar. Naturalmente, os filhos destas relações não são considerados de igual condição, e, logó que é possível, são afastados do lar paterno com um pequeno dote compensador; igualmente a mãe abandonada, que então é considerada viúva; e a maioria acaba achando um esposo entre a gente de sua cor.

Este generalizado concubinato serve para o efeito de introduzir sempre maior percentagem de sangue novo branco na população de cor; não precisamos acrescentar que, por outro lado’, isto é pernicioso para a moralidade de todo o povo brasileiro, assim como especialmente degradante (segundo o nosso modo de ver) para a raça de cor79.

Uma espécie de sujeição da raça de cor à raça branca existe, portanto, também no Brasil; porém — e isto é o contraste com o estado de coisas que subsiste, por exemplo, nos Estados Unidos da América do Norte — essa subordinação é simples-mente um aspecto de natureza social, não é instituição política; em regra geral, distinguem-se as pessoas pelas posses e pela posição, muito mais do que pela cor da pele. O homem de cor, mormente o negro livre, não importuna o seu semelhante branco de posição equivalente com a sua companhia, não entra na casa dele sem especial convite; porém "onde se reúne gente livre de diferentes cores, em lugares públicos ou como hóspedes, sob o mesmo teto, em toda parte tratam-se uns aos outros com igual consideração, e nunca um mulato pensa em se subordinar ao branco por sua livre vontade, nem procura o branco mostrar-se ostensivamente superior ao homem de cor. Somente para com as altas autoridades e pessoas muito ricas se evidencia uma espécie de devoção, mesmo da parte dos brancos". Assim descreve o viajante alemão Burmeister as condições atuais; e assim sempre foram; jamais houve aqui um contraste vivo de raças.

Devemos, em parte, atribuir este fato ao caráter nacional dos portugueses que, como todo latino, já são mais inclinados a se misturar e se entender com a raça submetida, ao passo que, ao contrário, os germanos completamente a absorvem ou a suplantam; além disso, talvez influísse a circunstância de que nos inícios da colonização, quando os imigrantes portugueses formavam ainda exclusivamente o povo do Brasil, lhes faltava de todo o governo colonial local, o "self-government", como possuíam desde o princípio os imigrantes ingleses na América do Norte. Eles não podiam, portanto, como estes últimos, por meio de leis para todos os tempos, reservar para a raça branca, isto é, para si, a exclusiva participação no Estado, o exclusivo direito às honras e dignidades públicas; por outro lado, o governo da mãe-pátria, Portugal, evitara inteligentemente tal exclusivismo, e como precisasse para o seu serviço de gente livre de todas as cores, assim recompensava o verdadeiro mérito sem diferençar a cor da pele.

Já mencionamos na história da guerra holandesa, como os quatro mais notáveis chefes das tropas livres brasileiras foram elevados à nobreza por cartas régias de mercê e revestidos com o hábito da Ordem de Cristo (1638), entre eles dois brancos, um índio, Antônio Filipe Camarão, e um negro, Henrique Dias. À memória deste último o governo português prestou ainda honra especial, criando, na província de Pernambuco, dois regimentos de milícias com o seu nome, os "Velhos Henriques" e os "Novos Henriques", que subsistiram ao menos até ao fim da dominação colonial, talvez ainda até hoje: toda a gente nesses regimentos, desde o soldado raso ao oficial superior, devia ser de sangue negro puro; eles estavam em pé de perfeita igualdade com as outras unidades do exército, nas quais tanto serviam os brancos como os homens de cor; e tal organização militar dava aos negros livres daquele país, ao mesmo tempo, uma segurança material contra a possível veleidade de opressão pelos concidadãos brancos.

Ainda melhor era a posição dos homens livres de cor; muitos classificavam-se de brancos e ninguém se incomodava em verificar se a cor de seu rosto os autorizava a tanto; eram-lhes acessíveis os empregos municipais e estaduais e da Igreja, sem estorvo, e, sobretudo no interior, de fato estavam grande parte dos cargos públicos nas suas mãos. Somente uma preterição feria a raça de cor, enquanto durou o governo colonial; porém neste ponto eles tinham por companheiros de infortúnio os brasileiros brancos; isto é, as mais altas dignidades eram então quase que exclusivamente reservadas aos portugueses natos, e em geral os "filhos do Reino" olhavam de cima, com bastante soberba, para os naturais da colônia, aos quais eram realmente superiores de muito em cultura, indústria e desembaraço, e aos quais faziam concorrência triunfante, não só nos cargos do Estado, porém ainda mais no comércio.

Precisamente esse estado de coisas deu mais tarde à revolução brasileira a sua feição particular; os brancos e os livres de cor reuniram-se instantaneamente contra os portugueses, de sorte que estes em pouco tempo foram vencidos, expulsos, e com isto a parte mais importante, mais popular da revolução ficava concluída. Também nas seguintes revoltas, quando o povo realmente tomava parte (na maioria das vezes ele fazia apenas o papel de coro), sempre o motivo era combater alguma influência portuguesa, imaginária ou verdadeira, além da arraigada inimizade que existia contra os ricos residentes portugueses. E, como a guerra era feita em comum, também o resultado favorecia o conjunto da população livre: a Constituição do império tacitamente estabelece a igualdade de todas as raças, outorga a todos os cidadãos livres, sem distinção da cor da pele, iguais direitos políticos, e com isto sanciona a antiga tradição.

Não havia, assim, o mínimo motivo de hostilidade entre ambas as raças livres; por mais violentos que fossem os abalos que sacudiram o Brasil, sempre homens de todas as cores estavam em ambos os partidos; e fosse qual fosse o partido vencedor, dava-se aos colaboradores de cor a sua competente parte em honras e dignidades públicas, parte que sempre era, em todo caso, de preferência proveitosa para os mulatos e mestiços; quando muito se encontram no interior negros de puro sangue nos cargos públicos. Nem para o futuro não há aqui a recear guerra de raças, porque justamente não há nenhuma distinção legal, nenhuma oposição de raças.

Se o Brasil (excetuando as tentativas provinciais de autonomia e desunião) porventura tem motivo de recear alguma coisa, será uma revolução puramente social, resultante dos contrastes sociais realmente existentes, talvez algum dia uma guerra de escravos contra os livres, ou antes ainda uma guerra dos sem posses contra a pequena aristocracia dos possuidores de bens; e a maior guerra civil que o império teve até agora de sustentar, o levante de 1835 no vale do Amazonas, tinha deveras esse característico, por assim dizer uma feição comunista80.

Até aqui havemos considerado os negros e os mestiços de seu sangue na sua dupla situação, primeiramente como escravos, depois como livres; devemos agora ainda encarar uma terceira situação, intermediária, a de auto-emancipação pela fuga.

Escravos fugidos, houve-os naturalmente desde sempre; porém direito legal de liberdade não podia, nem pode aqui ser alcançado pela fuga, porque não existe no Brasil em parte alguma "asilo" ou território livre. Ao contrário, desde o início firmou-se o princípio de que um escravo regularmente registrado ficava segura posse de seu senhor para sempre, e, no caso de fugir e ser apanhado por terceiro, devia ser restituído ao dono, em troca de uma retribuição e indenização das despesas; assim ordenava o decreto de 6 de janeiro de 1574. Estas disposições legais com isto uniam toda a população livre contra os escravos fugidos; cada qual achava de seu interesse tê-los sob vigilância: o fazendeiro rico, para dar escarmento a seus próprios escravos, o pobre "morador", porque tinha oportunidade para merecer uma avultada quantia pela captura. Contudo, não podia haver vigilância que bastasse num país meio selvagem, tão extenso, tanto mais porque lhe faltava a instituição complementar — a de passaporte81.

Sabe-se que nos Estados escravocratas da América do Norte todo homem de cor era obrigado a trazer consigo, se livre, o certificado de sua liberdade, se escravo, logo que saía da fazenda a que pertencia, um passaporte de seu senhor; e todo branco tinha o direito, mesmo o dever, de pedir vista regularmentar desse documento; porém tais medidas de polícia eram desconhecidas no Brasil e, com o estado atrasado da civilização, eram de fato impossíveis; a nobre arte da leitura e da escrita era mesmo entre os libertos muito rara; e assim uma pessoa, para reconhecer um escravo, tinha de se fiar exclusivamente na sua própria perspicácia. Nestas circunstâncias variava a situação do escravo fugido, segundo as diversas classes.

Para o nacional de cor ou negro, criado nos costumes e língua do país, a fuga estava relativamente segura, logo que ele desse as costas à sua terra; onde ele não era conhecido, bastava calçar-se e passava tão bem por um liberto ou nascido livre, como qualquer outro; esta classe de escravos fugidos passava, assim, tacitamente, ao meio da população livre; e, se ficavam perdidos para o seu senhor, em todo caso não constituíam um perigo para o país.

Outro caso era o do africano, cujos modos ainda traíam o "preto bruto"; para onde quer que ele se voltasse, por toda parte pesava sobre ele a suspeita de não ser livre, e assim ele preferia, mesmo depois de sua emancipação regular, permanecer no mesmo lugar, no meio dos conhecidos. Identicamente os fugitivos desta categoria; na imediata vizinhança da sua antiga fazenda, onde eles conheciam todos os caminhos e atalhos nas matas da montanha, é que procuravam um refúgio; ora vagavam isolados, cada um com a sua família; ora se reuniam diversos num grande grupo e fundavam no âmago da mata uma aldeia em comum, em geral umas pobres choças de palha e de taipa, ao lado de uma roçada pequena para fazer plantação, o conjunto defendido, às vezes, por muralha tosca, para o caso de um imprevisto assalto; chamava-se a uma tal colônia de escravos fugidos um "quilombo", ou, em outros sítios, um "mocambo", ambos nomes provavelmente de origem africana.

Quilombos desta ordem existiram desde cedo, e certamente em todas as províncias do Brasil (o primeiro exemplo histórico conhecido foi na Bahia, em 1575, destruído pelo governador-geral dali, Luís de Brito de Almeida), e eram em toda parte considerados uma muito desagradável e temida vizinhança para o fazendeiro; porque não somente os fugitivos, onde podiam, roubavam e danificavam as plantações, mas também porque os seus próprios escravos se punham em relações com os quilombolas, lhes levavam o que eles precisavam e, afinal, cansados de trabalhar, se refugiavam também no quilombo.

Contra tão grave mal de nada podiam valer os esforços e valor do particular isolado; cumpria ao Estado intervir. E foi criada ainda no século XVII e princípio do XVIII na maioria das províncias uma tropa especial de polícia montada, que era exclusivamente destinada a percorrer os distritos meio selvagens, apanhar os escravos fugidos e dissolver a tempo qualquer ajuntamento dos mesmos. Chamavam-se a esses caçadores de escravos "capitães-do-mato", ou, em outros lugares, "capitães-do-campo"82, conforme a natureza do terreno; recrutavam-se exclusivamente entre os livres de cor e os negros crioulos; e finalmente, pelo decreto régio de 17 de dezembro de 1722, foi-lhes dado um regulamento próprio, que detidamente determinava o seu serviço e recompensa para cada caso.

Era este um ofício brutal, para o qual só se prestavam homens de grande força física e gênio destemido, armados até aos dentes, levando enormes cães de caça, esses mateiros embrenhavam-se na selva, sempre preparados para combate de vida e de morte. E eles tinham toda a razão para isso: se um destes caçadores de homens caía nas mãos da caça humana perseguida, a mais terrível sorte o esperava: no mínimo, amordaçavam-no com um pedaço de pau, amarravam-no a uma árvore, as mãos atrás das costas, e ali o deixavam morrer de inanição; do seu lado, os capitães-do-mato, onde encontravam resistência e a venciam, não observavam moderação alguma e praticavam muito derramamento de sangue inútil, no seu próprio prejuízo material, porque por um preso se pagava maior gratificação que pela cabeça decepada de um escravo fugido. Na verdade, o governo procurou pôr termo a estas crueldades, com proibições e ameaças; porém debalde, sempre esses sangrentos desmandos foram inseparáveis de tão desumano ofício.

Igualmente não se podiam remover os outros inconvenientes, menos graves, pois apenas prejudicavam a bolsa do fazendeiro. Muito caçador de escravos, a fim de tornar mais rendoso e mais fácil o seu oficio, peitava um negro, para que ele fugisse de seu senhor e se apresentasse a ele caçador; outros agarravam qualquer escravo que encontrassem no caminho, ou mesmo no seu trabalho, e o encarceravam durante a noite; na manhã seguinte, conduziam eles então os supostos fugitivos, homens e mulheres, as mãos amarradas atrás das costas, a seu senhor e exigiam a sua gratificação; ainda outros conservavam durante meses, em sua casa, os fugitivos apanhados e obtinham lucros com o trabalho deles.

Apesar de tudo, em suma, a instituição dos capitães-do-mato foi absolutamente vantajosa; na verdade não se podiam extirpar por completo os quilombos e os escravos tugidos, porém estas evasões nunca chegaram a ter grande importância, nem ameaçaram seriamente o efetivo de escravos dos Estados brasileiros.

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