A criação do mundo pelo Demiurgo no Timeu de Platão

História da Filosofia na Antiguidade – Hirschberger

E.   O Mundo

a)    O   mundo   visível

A obra essencial de Platão, para a sua cosmologia, é o Timeu.
Este diálogo influiu, como nenhuma outra obra, sobre as idéias cosmológicas
do Ocidente. Foi também lido na Idade-Média, na tradução latina de Cícero e de Calcímo, junto com o comentário deste. Nele se inspira
particularmente a cosmografia e a enciclopédia medieval, como, por exemplo, a
de Guilherme de Conches ou a de Honório de Autun. Mesmo Galileu buscou nela decisivas
motivações para o esboço matemático do seu sistema cosmológico. E, em particular,
segue a concepção teleológica da natureza toda, até hoje, na suas pegadas, e
vem, como em Platão, dar numa
psico-teologia. Como na sua psicologia, também aqui recorre Ale,
freqüentemente, ao mito. Primeiro, por não haver ciência exata no domínio do
mundo espácio-temporal, como êle diz; e, depois, porque a imagem e o símbolo,
pelo menos, deixam pressentir o que o conceito puro não é capaz de apreender.

Platão
contrapõe claramente o nosso mundo físico ao mundo das Idéias. Designa-o
como o mundo visível (λοτοζ δρατοζ),
em oposição ao mundo pensável das Idéias, pois não encerra nenhuma realidade,
estando sempre em mudanças, sendo, por isso, algo de múltiplo, divisível,
indeterminado, ilimitado, sem medidas, grande e pequeno. Antes de tudo. porém,
o inundo físico está encerrado no tempo e no espaço, é apenas aparência das
Idéia.s, no sentido de cópia delas. Platão
diz, por isso, que êle é participante das Idéias (μεθτεξιζ),
e, só assim, pode conservar uma existência aparente. É uma como cera informe,
moldada pela Idéia; ou como a ama, que recebe
e cria o menino, cujo pai verdadeiro é a Idéia.  Assim como  a 
percepção  sensível  só pode  existir   e  ser  lida  pela idéia,   assim  
também   o   mundo   dos  sentidos,   somente   pela idéia.

b)    Formação  
do   mundo

α)   
O mito.
— O mundo tem, como fundamento da sua ciência,   a bondade
perfeita;   mas  quem  é bom  nunca,  e em  nenhum   lugar,   tem  inveja.  
Totalmente livre  dela,   quereria   que  lhe   fosse,   tanto   quanto 
possível,   semelhante.    E assim, segundo a doutrina dos mais inteligentes
dos homens, ver aí o fundamento verdadeiro do devir e do universo seria o mais
acertado" (Tim-. 29 e).   Mas o Demiurgo não é Criador, que tirasse
do nada tudo quanto existe. Pois, já antes existia a matéria, e a sua obra só
consiste em tirar o mundo visível que não se encontrava em estado de repouso,
mas no de um movimento desmedido e desordenado — da desordem para a ordem,
convencido que este segundo estado era, em todo ponto  de  vista,  melhor  que
o primeiro"   (1. c).    O  primeiro ser formado pelo Demiurgo é a  alma
do mundo — substância não sensível, invisível.   Não-sensível, invisível;
embora, de um  lado,   "mesclada"  da realidade  indivisível  e 
eternamente imutável, e, do outro, da  mutável. Como a alma humana, ela é
revestida de um corpo, a matéria do cosmos. Este cosmos ela o anima e, com a
sua providência e força viva, forma o todo: deuses criados, homens, animais,
plantas e matéria inanimada. O todo
tem várias ordens; ao reino da matéria inanimada se sobrepõe o das plantas; a
este, o dos animais, a do homem e o dos "deuses criados", i.é, o dos
planetas (com a nossa Terra) e das
estrelas. Quanto mais alto subirmos, tanto mais almas encontraremos; quanto
mais baixo des cermos, menos o Nous se manifestará. E, assim, é o todo
uma criatura animada e, na verdade, inteligente, pois foi feita pela
Providência de Deus" (Tim. 30 b).   E este universo é único e é o
só existente, perfeito no seu ser e aparecer, visível e abrangendo a
plenitude do visível. Organismo vivo, nele existem todos os outros organismos
mortais e imortais; imagem sensível de Deus, só atingível como objeto de pensa
mento,  o universo é, êle próprio, também Deus, de grandeza e bondade totais,
belo e perfeito", como se exprime o Timeu, na sua solene conclusão.

 

β) Sentido do mito. — Aristóteles assumiu
esta descrição do nascimento do mundo, literalmente, e afirma o começo do
mundo no tempo; êle é eterno, para Platão,
só por não ter nenhum fim (De caelo A, 10; 280 a 28). Mas já Xenó crates, o segundo chefe da
Academia, depois da morte de Platão, aduz
a interpretação de que a doutrina platônica visa apenas fins didáticos, do
mesmo modo que um matemático, para o fim de ser melhor entendido, alinha as figuras
geométricas, quando elas, na verdade, estão fora do tempo. Neste sentido é que
quase todos os platônicos interpretam o Timeu.

αα) Necessidade de um
princípio do mundo.
— O que Platão queria,
com a sua doutrina sobre a formação do mundo, era exprimir o pensamento de que
o mundo não existe por si mesmo, mas deponde de um princípio, esse, certo,
existente por si mesmo. Mesmo sendo o mundo eterno, quanto à alma e à matéria,
mesmo assim existe essa dependência de um último princípio, como exatamente se
pode ver muito bem em Aristóteles. O
Timeu não significa aqui nada mais do que um paralelo concreto e
imaginoso com a ascensão dialética, para o anhypoteton e a Idéia do Bem
em si, no Estado.

ββ) O Espírito vivo. — O
segundo grande pensamento que Platão quer
exprimir, com o seu mito, é o desenvolvimento e o aprofundamento  do conceito
de teleologia. Que todo o mundo é ordenado, resulta já simplesmente da sua
doutrina das Idéias. O Demiurgo forma o mundo fitando as Idéias eternas. Mas
cada Idéia é, para Platão, como
vimos, ao mesmo tempo um termo e um fim; e o reino total das Idéias não é
outra coisa senão um ascender para a altura suprema, a fim de considerar e
fundamentar tudo à sua luz (cf. sup.. pág. 124). Mas que esta plenitude
espiritual com que se considera o mundo não significa uma ordem puramente
lógica, como acontece com uma tábua de logaritmos. mas sim um espírito vivo,
isto no-lo certifica o Timeu, com a sua doutrina da alma do mundo que,
com a sua Providência (προνοια) ordena o
todo, dele fazendo um cosmos (Tim. 30b5-c1). Também o mecanismo conhece
sentido e ordem. O livro de Leucipo tem,
como título, Περι νου, e deve ter ensinado
que todo devir implica conformidade com uma lei penetrada de sentido (παντα
εν λογοι και υπ αναγχηζ,
frg. 2). Mas tais conexões de sentido são possíveis sem um  Espírito que as 
tenha pré-determinado?   Haverá uma ordem, sem que tivesse sido ordenada? O        mecanismo
deveria admiti-lo, mas Platão, o
pai da doutrina das Idéias e, assim, dos atemporais "princípios mesmo para
Deus",  opina,  ao menos
quanto ao ser do mundo,  que a ordem   deste  pressupõe  um  ser   ordenador,  
Espírito  vivo, não só objetiva, 
mas  ainda  subjetivamente.    Se  a alma  do mundo se identifica com Deus ou
não, é discutido.   Mas, seja como   for,   em  ambos  os  casos permanece o
pensamento,  de que  o nous, imanente no mundo, pressupõe um princípio
vivo, donde deriva:   "Sem alma torna-se impossível a manifestação do nous(Tim. 30b
3).

γγ)    "No 
princípio  era  a  alma".
  —  Que  a alma  viva, como  fonte espiritual,
é,  ao mesmo tempo,  fonte de energia e casualidade, já o mostramos  (cf. supra
pág. 144).   Não somente a alma  o mundo é a última e a primitiva fonte do movimento,  
mas,   em   geral,   cada verdadeira   causalidade   é sempre  algo  de 
psíquico.   A  Filosofia  moderna  não vê,  na causalidade,  muitas   vezes,  
outra  coisa  senão  a  dependência mútua,
regular e temporal, de dois acontecimentos; ou a explica pelo conceito de
emanação, ou pelo pensamento de identidade.   Platão
explica toda causalidade por analogia com um fenômeno psíquico, habitual ao homem na sua auto-experiência.    Nem na sua psicologia,  nem  na sua cosmologia separa
ele o psíquico do físico; ao contrário, o psíquico tem o primado, é o
princípio de explicação também de todo movimento corpóreo, e mesmo da
existência física. As Leis acentuam, fortemente, esse ponto de vista e,
contra os pré-socráticos, que sempre se apegavam a uma αρχη
material, afirma o seguinte: "Dá-se á alma um lugar secundário, quando,
na verdade, lhe convém o primeiro, pois pré-existia já a todo corpo-e foi ela
a primeira a provocar todas as alterações e trans formações dos corpos"
(892 a). "O temperamento, o caráter, os desejos, as reflexões e as
opiniões verdadeiras; os projetos. e as lembranças nela já pré-existiam ao
comprimento, à largura,  a profundidade e à força dos corpos"   (Leis  896)

c)     A.   matéria                                                            1,

α) Matéria eterna. — A
conseqüência desta teoria seria propriamente, o pan-psiquismo, talvez como o
exprimirá Leibniz mais tarde, com
a sua monadologia. Mas Platão, apesar
da sua
Filosofia de cunho tão pessoal e original, não se submete, de bom grado, a
nenhum extremismo. Como reconhece, ao lado do mundo das Idéias, também um mundo
sensível, e ao lado da ciência, a opinião, e ao lado do Estado ideal dá um
lugar também às formas menos boas do Estado, assim admite, no Timeu, algo
de diferente do espírito e da alma. Assim, o Demiurgo não é o todo-poderoso
criador do mundo. Já achou a matéria pré-existente. Deve operar com ela, que
lhe impõe limites ao querer. O Demiurgo queria fazer tudo bom e nada mau,
"tanto quanto possível"’ (Tim. 30 a 3). Se tudo não lhe é
possível, isso é por força da matéria. Por isso, ao lado das obras da sua livre
e consciente atividade criadora, está a obra da "necessidade". Nesta
se inclui o que depende da matéria como tal. Mas Platão não lhe reconhece nenhuma causalidade real. Ela
significa apenas uma "concausalidade" συναιτιον
e, como tal, é cega (πλανωμενη αιτια),
causalidade de natureza puramente mecânica, como poderíamos dizer. A verdadeira
causa de todo devir é sempre, e somente, a alma. Contudo, a matéria-tempo está
presente, e isto tem as suas conseqüências. O Demiurgo já não pode formar um
mundo melhor. Lembremo-nos da afirmação do Teeteto, de que o mal
"acompanha, necessariamente, esta natureza finita e este mundo
terrestre". Platão o concede
forçado pela necessidade. Ele pode usar mal da matéria, no seu sistema. Por
isso, tenta fazê-la derivar  idealmente,   more geométrico.

β) Idealização da matéria. — Platão deduz, do poliedro regular, os
quatro elementos de Empédocles —
água, fogo, luz e terra. A Terra, como o elemento mais pesado, consta de
hexaedros; o fogo, como o mais leve e sutil, de tetraedros, por terem estes
corpos uma superfície mínima e arestas mais atiladas; o ar, por fundamentos
análogos, de octaedros; e a água, de icosaedros. Por seu lado, os poliedros
elementais constam de triângulos elementais ordenados da maneira mais
condizente com a formação de cada um dos elementos. Mas o triângulo elemental
resulta de superfícies; estas, por sua vez, de linhas; e estas, de pontos. Mas
os pontos podem enumerar-se e derivam, finalmente, da unidade. Platão parece ter querido responder,
diretamente, com a doutrina dos triângulos elementais, â teoria atômica de Demócrito. E com "Ia. atinge
também o problema da αρχη dos pré-socráticos.

 

d)    Espaço    e   tempo

— O resultado é uma nova αρχη o
espaço.   Pois foi a isto que conduziu o deduzir a matéria do triângulo
elemental, e e ele,  o espaço matemático,  considerado aqui  como sendo a matéria.

α)   
"Res  extensa". 
— Como mais  tarde  com  Descartes, aparece  aqui  a  matéria 
considerada  como   apenas  extensão, como se nenhuma diferença houvesse entre
o corpo físico e o matemático.  É  sempre   a  tentativa  renovada  do  racionalismo
de transformar todo o mundo em conceitos.  Mas Platão tinha   bem   consciência   do   contestável   da   sua  
dedução.    É sempre por um "conceito espúrio" que nós captamos a matéria  
espacial;   e  sempre  permanecem  o espaço  e   a  matéria como algo de
"obscuro",  "enigmático", e apenas crível".   Deveria 
ser  algo    irreal   e  impossível a existência  do  espaço.

"Nós   apenas  sonhamos   que  todos os seres   existiam  sob   a forma
de espaço"   (Tim.,  52 b).   Tão pouco é  o tempo  algo de
incondicionalmente  necessário.   Tempo só existe onde há devir   corpóreo;  
êle   só  nasce  com   êste  mundo   dos   corpos. Platão adverte, por isso,
sobre a existência de seres para os quais nenhum sentido têm as questões de
onde e quando.   E esses seres são os que Platão
considera como primeiros.   Mas concede que, com esse mundo de seres
ideais, não temos esgotado a realidade;  havendo  ainda lugar para  o espaço e 
a matéria,   embora  este  mundo  do  devir  não  tenha   nenhuma realidade.

 

β)  
As   aporias.
  —  Não  se  pode,   realmente,   atribuir   à matéría
nenhuma causalidade?    Se há diferenças necessárias entre as coisas, que só podem provir do ser da matéria, na., deveríamos então,   necessariamente,   poder   considerar  
como princípio de atividade o de que provêm as coisas necessàriamente?   E,  se é atividade,  não é  então
também  realidade? Repete-se  aqui,  na ordem  cosmológica,  o problema 
cognoscitico teorético das relações entre o pensamento e a percepção sensível. 
Também aí quis Platão fazer cair
todo o peso sobre o  pensamento.   E também então poderíamos  nós perguntar: se,    nem  a sensibilidade,  não ê possível a  rememoração, 
não somente   em   geral,   mas   também   o   nos   rememorarmos   de formas
determinadas de tais seres, poderíamos afirmar, com  segurança,
que a sensibilidade em nada contribui para o conteúdo do saber? Assim também
podemos perguntar agora: deverá o mundo sensível ser, na realidade, somente um
ente intermediário entre o ser e o nada? Platão
também aqui começou por esboçar um dualismo, para depois tentar
arredá–lo, desvalorizando uma das suas alternativas na sua pretensão à
realidade. Que êle tivesse a consciência das dificuldades bem o mostra o seu
dito, de que a matéria e o espaço são algo de enigmático,  obscuro e apenas
crível. 

e)    Bibliografia

A. E. Taylor, A
Commentary on Plato’s Thimaeus 
(Oxford, 192.3). F. M. Cornford, Plato’s Cosmology. The
Timaeus of Plato Translated with a Running Commentary (New York, 1937, 1957).
C. Baeumker, Das Probleme der
Materie in griechischen. Philosophie
— O Problema da Matéria na Filosofia
Grega (1890). E. Sachs, Die
Funf platonischen Körper
— Os Cinco Corpos de Platão (1917). M. F. Sciacca, La Metafísica di Platone, vol. I: 
II Problema Cosmológico   (Napoli, 1938).

G.    C. ClaChorn, Aristotles Criticism of
Plato’s Timaeus
(The Hague, 1954).

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