A LEITURA GRAMSCIANA DO FORDISMO E DO AMERICANISMO: A HEGEMONIA NASCE NA (E DA) FÁBRICA


A LEITURA GRAMSCIANA DO FORDISMO E DO AMERICANISMO: A HEGEMONIA NASCE NA (E DA)
FÁBRICA







ÍNDICE:



INTRODUÇÃO


    Procuramos, neste trabalho, analisar as questões que
estão mais no âmago do texto de Gramsci Americanismo e Fordismo. Enveredamo-nos
pela leitura do próprio texto, de um modo imanente, procurando entender suas
questões para, só posteriormente, contextualizá-lo com sua época. Assim, não
nos preocupamos em dominar uma vasta bibliografia acerca do assunto, este é um
trabalho posterior e que exige um maior fôlego.



    Nosso trabalho teve a pretensão de ser,
apenas, introdutório às questões concernentes ao texto de Gramsci, ser um
primeiro esforço para a compreensão deste autor e dos objetos de estudo de que
trata.



     Nossa metodologia foi um estabelecimento de
divisões no texto – possibilitadas pelo próprio Gramsci – que abordam as
questões apresentadas pelo autor; porém, as questões só fazem sentido se
consideradas dentro do todo do trabalho.


     O objeto do texto de Gramsci em discussão é o
fordismo e, conjuntamente, o americanismo. Veremos adiante como e porquê ambos
não se separam para Gramsci. Além do objeto do texto, há duas problemáticas
que decorrem dele e que o permeiam até o epílogo: há a problemática da
resistência ao fordismo e, concomitantemente, os problemas decorrentes dela.



     Acerca das palavras americanismo e fordismo,
Gramsci já de início, e na primeira parte do texto, as aponta como uma “rubrica
geral e convencional”
1
: elas
abarcam um conjunto de fenômenos sociais que emanam da sociedade moderna.
Americanismo e fordismo com o séquito de fenômenos que os acompanham, decorrem
da necessidade da economia moderna em potencializar sua organização para a
produção e reprodução de capital de modo mais veemente.



     Daí a lógica dos problemas decorrentes do
americanismo e do fordismo entrarem logo em seguida na discussão, sendo sua
primeira problemática: eles são os “anéis da cadeia que assinalam a passagem do
velho individualismo econômico para a economia pragmática”
2
,
são
o elo de uma economia para outra. Dessa transição decorre a última das duas
problemáticas: a resistência ao desenvolvimento. Tal resistência existe por
parte de discernentes forças sociais, tanto das “subalternas” como das
“dominantes”.



     Os problemas são organizados pelo próprio
Gramsci ao início do texto, o autor em discussão não pretende esgotar todos os
problemas emanantes do fordismo e do americanismo, ele apenas apresenta uma
“lista de alguns dos problemas mais importantes, ou essencialmente importantes”
3
.
A
citação de tal lista, mesmo que grande, torna-se indispensável para nós: “1)
substituição do atual grupo plutocrático por um novo mecanismo de acumulação e
distribuição do capital financeiro, fundado imediatamente sobre a produção
industrial; 2) questão sexual; 3) questão de saber se o americanismo pode
constituir uma ‘época’ histórica, isto é, se pode determinar um desenvolvimento
gradual do tipo, noutra parte examinado, das ‘revoluções passivas’ próprias do
século passado, ou se, pelo contrário, representa apenas a acumulação molecular
de elementos destinados a produzir uma ‘explosão’, isto é, uma revolução de
tipo francês; 4) questão da ‘racionalização’ da composição demográfica
européia; 5) questão de saber se o desenvolvimento deve ser o ponto de partida
no interior do mundo industrial e produtivo, ou se se pode verificar a partir
do exterior, para a construção cautelosa e maciça de uma armação jurídica
formal que guie, do exterior, os desenvolvimentos necessários do aparato
produtivo; 6) questão dos chamados ‘altos salários’, pagos pela indústria
fordizada e racionalizada; 7) o fordismo, como ponto extremo do processo de
tentativas sucessivas, por parte da indústria, de superar a lei tendencial da
queda da taxa de lucro; 8) a psicanálise (sua enorme difusão no pós-guerra),
como expressão da aumentada coerção moral, exercida pelo aparato estatal e
social, sobre os indivíduos particulares e pelas crises doentias que tal
coerção determina; 9) o Rotary Club e a maçonaria.”

4



    Destarte, movemos a discussão, a partir de
agora, para o exame dos problemas decorrentes do americanismo e do fordismo.
Enumeramos os problemas de acordo com a própria lista apresentada por Gramsci,
sem seguir necessariamente a ordem numérica dos problemas, mas tratando de
todos.


ESTUDO
DOS PROBLEMAS 1 e 4: A INTRODUÇÃO DO FORDISMO NA EUROPA E O PROBLEMA DEMOGRÁFICO


     Tratamos destes dois problemas conjuntamente em
função da simbiose e do encadeamento de um a outro no texto de Gramsci.



     O fordismo não é algo geneticamente europeu,
ele provém dos EUA, decorrendo daí a expressão “americanismo”. Gramsci, porém,
tem diante de si a realidade européia e, destarte, versa inicialmente acerca da
tentativa de introdução do fordismo na Europa, em especial, na Itália.



     A tentativa de introdução do fordismo (alguns
de seus elementos) na Europa ocorreu tendo o “velho grupo plutocrático” como o
agente social. Um anacronismo existiu: 1) tentou-se conciliar a velha estrutura
social européia com o fordismo, que era a forma de maior racionalidade da
produção na época; 2) procurou-se adaptar os benefícios que o fordismo ensejou
com uma plutocracia que superexplorava os trabalhadores europeus. Com efeito,
houve resistências à introdução do fordismo, combatidas com uma violenta
coerção.



     Dissemos que há um anacronismo da estrutura
social européia com o fordismo. Esse anacronismo existe em função de, nos EUA,
não existir uma indefinição dos trabalhadores na produção; ao contrário, há uma
“composição demográfica racional”

5
. E mais: tal composição é uma “condição preliminar”

6
para o fordismo. Na Europa a realidade era diferente, seu passado deixara como
legado a existência de classes parasitárias: “criadas pela ‘riqueza’ e
‘complexidade’ da história passada, que deixou uma série de sedimentações
passivas através dos fenômenos de saturação e fossilização do pessoal estatal e
dos intelectuais, do clero e da propriedade rústica, do comércio de rapina e do
exército antes profissional, depois do recrutamento, mais profissional pelo que
toca aos oficiais”

7
(além da administração do Estado). Trata-se então de uma bifurcação no texto
que, em si, expressa duas realidades discernentes: uma fordizada e que teve um
passado que permitiu ao fordismo sua ontologia; outra, tradicional e que tem a
cidade de Nápoles como um exemplo, apresentando características que resistem ao
fordismo.



     A situação da demografia italiana (que Gramsci diz
ser semelhante ao resto da velha Europa, à Índia e à China), introduzida após
o exemplo da cidade de Nápoles, apresenta dificuldades ao fordismo: está doente
em função da emigração, há um desfavorecimento na relação entre população ativa
e passiva, há escassez do emprego de mulheres na produção; isto é, a demografia
italiana não é racional. Porém, nos EUA, além de inexistir essas dificuldades
demográficas, não há o peso das tradições peculiares à Europa; com efeito, a
primazia da atividade econômica ficou com a produção industrial, que foi
dominando
outros setores da economia como o transporte e o comércio. Vale a pena citar
Gramsci comentando as experiências de Ford: “Recordar as experiências de Ford
e as poupanças feitas pela sua empresa com a gestão direta do transporte e do
comércio das mercadorias produtivas, poupanças feitas pela sua empresa com a
gestão direta do transporte e do comércio das mercadorias produzidas, poupanças
que influíram sobre os custos de produção, permitiram melhores salários, e
menores
preços de venda. Uma vez que existiam estas condições preliminares, já
racionalizadas
pelo desenvolvimento histórico, foi relativamente fácil racionalizar a produção
e o trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sindicalismo operário
com base territorial) com a persuasão (altos salários, benefícios sociais
diversos,
propaganda ideológica e política habilidosíssima), e conseguindo deslocar, sobre
o eixo da produção, toda a vida do país. A hegemonia nasce da fábrica e não
tem necessidade, pare se exercer, senão de uma quantidade mínima de
intermediários
profissionais da política e da ideologia.”
8

Em suma, a estrutura determina as superestruturas.



     Provisoriamente, então, parece que a introdução do
fordismo (na Itália) depende da substituição do velho grupo plutocrático por
um outro agente social. Massimo Fovel aposta em uma união entre empresários
e trabalhadores, em um corporativismo. Esse corporativismo eliminaria elementos
semi-feudais que não pautam-se na produção industrial. Porém, Gramsci mostra
que a atuação do Estado italiano vai em sentido contrário, promovendo “as velhas
formas de acumulação parasitária da poupança e tende a criar quadros sociais
fechados”
9

; o Estado e a corporação
defendem justamente as posições da classe média que deveria combater, sendo
o instrumento de conservação da mesma forma de acumular capital e não do avanço
ao fordismo, a argumentação de Gramsci se dá por redução ao absurdo, refutando
o corporativismo apregoado por Fovel dentro de sua própria lógica. Esse
conservadorismo
ocorre porque a concorrência derrubaria um nível de vida mínimo dos
trabalhadores,
engendrando tensões sociais, isto é, o corporativismo dependia tanto daquele
estado dos trabalhadores como do desemprego, dependia de um equilíbrio. A saída
apresentada por Fovel foi, desse modo, refutada por Gramsci; concomitantemente,
há a crítica ao fascismo, mostrando que este retarda uma modernização do
processo
produtivo na Itália.


ESTUDO DO
PROBLEMA 9: UMA QUESTÃO DE SUPERESTRUTURA


     Consideramos que o problema agora em discussão está
contemplado dentro da esfera da “superestrutura”, para lembrarmos de Marx.
Trata-se
da Rotary Club, uma organização de empresários, e não de pequenos-empresários:
“é uma maçonaria sem pequenos-burgueses e sem a mentalidade pequeno-burguesa”
10

.
A Rotary Club existe nos EUA e, além dela, há a Yong Men’s Christian
Association,
uma associação de protestantes; como contraponto, e ironicamente, Gramsci diz
que, na Europa, em vez destas duas organizações, há a maçonaria e os jesuítas:
trata-se de organizações de espíritos muito diferentes, as duas primeiras têm
um “espírito” próprio ao capitalismo, as duas últimas têm um espírito
tradicional.
Não há como não lembrar da Ética protestante e do espírito do capitalismo, para
Weber há uma determinação da realidade no espírito e, inversamente, do espírito
na realidade. No último parágrafo do livro de Weber aqui citado, cuja discussão
se dá acerca das relações entre a ética protestante e o ethos econômico da vida
moderna, encontramos este pensamento com todas as letras: “Seria (…)
necessário
investigar mais adiante, a maneira pela qual a ascese protestante foi por sua
vez influenciada em seu desenvolvimento e caráter pela totalidade das condições
sociais, especialmente pelas econômicas. Isto porque, se bem que o homem moderno
seja incapaz, mesmo dentro da maior boa vontade, de avaliar o significado de
quanto as idéias religiosas influenciaram a cultura e os caracteres nacionais,
não se pode pensar em substituir uma interpretação materialística unilateral
por uma igualmente bitolada interpretação causal da cultura e da história”
11

(alertamos para não se ler essa citação com anacronismo,
segundo o próprio Weber, a relação entre a ascese protestante e o espírito do
capitalismo só é válida – se for válida – para alguns séculos precedentes ao
nosso).



     A determinação de organizações ideologicamente
diferentes, para Gramsci, decorre de realidades diferentes e podemos dizer que
é materialista: o processo produtivo racionalizado, nos EUA, engendrou um
pensamento social pela massa bruta de americanos adaptado a este processo
produtivo; porém, na Itália, há uma realidade tal que enseja uma apologia do
modo de vida rural (que tem opositores). Portanto, Gramsci e Weber fazem um
duelo de correntes na tradição sociológica: Weber versus Marx.


ESTUDO DO PROBLEMA
2: O INSTINTO SEXUAL REGULADO PELA PRODUÇÃO FORDIZADA


     Acerca deste problema, Gramsci introduz os efeitos
na questão sexual que o desenvolver da sociedade trás consigo. O desenvolver
da sociedade implicou em regulamentação da questão sexual, essa regulamentação
vem sendo estudada, diz Gramsci, à luz do iluminismo, e não de qualquer
iluminismo
como mostra o texto, mas, em especial, um iluminismo à moda de Rousseau:
trata-se
de uma desnaturação do homem. Uma das passagens mais citadas de Rousseau pela
tradição filosófica expressa a apologia que o mesmo faz do homem natural, do
bom selvagem: “O estado de reflexão é um estado contrário à natureza e (…)
o homem que medita (…) é um animal depravado.”
12



     Gramsci, estudando o problema não a partir do “homem
natural”, aponta dois problemas para a mulher: “o ideal ‘estético’ da mulher
oscila entre a concepção de ‘procriadora’ e de ‘brinquedo'”

13
.
A mulher, na sexualidade, ou tem mera função reprodutiva ou é objeto de esporte,
ou ainda, as duas coisas indiferentemente. Ou é um brinquedo ou é um instrumento
de procriação de filhos para impedir que, na terceira idade, existam velhos
“bastardos”. Com esse problema, um problema nacional passa também a existir:
Gramsci diz que o aumento da média de vida (na França) e a baixa natalidade
colocam um problema para o funcionamento do processo produtivo. Esse problema
exige soluções que acabam por gerar outros problemas: imigrantes são
introduzidos
no país, modificando a cultura nacional e; passa-se a existir uma certa divisão
do trabalho entre os imigrados e os não imigrados no processo produtivo.



     O trabalho racionalizado que o fordismo exige,
redunda em exigir um homem em concernência com tal racionalização: tal homem
tem de estar física e psicologicamente adaptado à produção fordizada. O
problema aqui investigado se põe na medida que o instinto sexual também tem de
estar regulado pela produção fordizada, esta tem em tal regulamentação uma de
suas premissas. A falta de ponderação, no que concerne à sexualidade, é um
desgaste que prejudica a atividade produtiva.


O ESTUDO
DOS PROBLEMAS 3, 5 e 8: FORDISMO – UMA FORÇA PRODUTIVA


     Fordismo: esta racionalidade do trabalho
constitui-se a partir das unidades de produção ou de mecanismos exteriores a
ele? Nossa proposta de entendimento é de que Gramsci trata essa questão como um
pseudo-dilema, vamos a ela.



     Trata-se de uma questão que Gramsci começa a tratar
com mais ênfase a partir da crítica feita a Trotski. Este, dá soluções
equivocadas
para uma preocupação justa: a vontade de dar a primazia do eixo econômico à
produção industrial. O erro de Trotski, segundo Gramsci, é tentar estabelecer
esta primazia a partir de uma coerção, de um método militarista; isto é, a
partir
de fora. Esse método militarista para objetivar preocupações “justas”
14

é expressão da despreocupação que a tradição marxista (isto é, não a marxiana)
tem para com a subjetividade, além do vício de trabalhar com modelos; mas isto
já é uma digressão.



     O fordismo ganha vida a partir de dentro e de
fora da fábrica. Dentro, o trabalhador desenvolve atividades autômatas,
maquinais, que exigem altos dispêndios físicos; trata-se de um trabalho
coisificante, repetitivo, trabalho de um “gorila amansado” (Taylor). Tal
crítica a este modo de trabalhar (embora não o modo de trabalhar fordista) está
de modo magistral exposta nas “obras de juventude” de Marx, porém, a análise
esmerada da leitura gramsciana do fordismo nos impõe a necessidade de fazer uma
observação: Gramsci ao escrever Americanismo e Fordismo não conhecia os
Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx, recuperados apenas da década de
30 do século XX. Pode haver então a acusação de anacronismo sobre nós, mas esta
é injustificável: o trabalho alienado também aparece em trabalhos posteriores
de Marx (conhecidos por Gramsci), como O Capital: o próprio fetichismo é uma
forma de alienação.



     Para o fordismo ganhar vida, premissas
externas à fábrica também são necessárias, os métodos de trabalho que a
racionalização fordista exige também depende da ontologia dos trabalhadores:
estes têm de conservar um estado físico e psicológico que não embargue o
processo produtivo, têm de fazer do uso dos salários para manterem-se em
condições de trabalho. As políticas de regulamentação ontológica dos
trabalhadores, por parte do Estado, expressam e assumem o fordismo como
política de toda a sociedade; o fordismo ganha extensão, prolonga-se da
fábrica às casas dos trabalhadores, às ruas, à jurisdição (proibicionismo nos
EUA)…, sendo além de um modo de acumulação, um modo de dominação. Agora o
título que Gramsci dá ao seu texto pode ser explicado: o “americanismo” é um
instrumento para a existência do “fordismo”, é a regulamentação racional da
sociedade, dentro e fora da fábrica, no âmbito público e no privado. O
americanismo não é somente um método de trabalho, é também um modo de vida
físico e psicológico, é uma política estatal correspondente à produção
fordizada e ao ethos (fordizado) da sociedade, é o que dá vida a uma revolução
passiva no seio da sociedade. Essa revolução passiva – o fordismo – é o que
passa a ser o modo mais eficiente para se acumular capital, é a racionalização
que ganha vida nos diversos âmbitos da realidade para potencializar a
acumulação de capital, ultrapassando os velhos moldes e materializando o avanço
das forças produtivas em oposição às tradições do passado.



     Gramsci ainda aponta mais um efeito
importante: na sociedade, passa a existir um descompasso entre a moral dos
trabalhadores (apregoada também pela Psicanálise, um dos instrumentos de
coerção moral e de paliativo aos problemas do trabalho fordizado) e a dos
estratos mais altos da população: aqueles vivem uma coerção moral no sentido de
estabelecer um “puritanismo”, estes têm uma permissividade maior. O descompasso
pode inclusive cristalizar os grupos sociais em um sentido moral, os
trabalhadores tem sua moral e os estratos mais altos tem outra; ambas se
excluem e são válidas apenas dentro do seu estrato social peculiar.



     Vê-se que as máquinas e os trabalhadores são,
ambos, componentes de uma força produtiva, o fordismo. As máquinas formam um
todo orgânico com os trabalhadores, ambos têm de estar articulados e em
perfeito funcionamento para o bem-estar da produção racionalizada. O fordismo,
de fato, vê o todo da produção de modo organicista; assim, há as doenças que
devem ser combatidas, a saber: alcoolismo, concupiscência, resistências
sindicais…


ESTUDO DO
PROBLEMA 6: O SENTIDO DOS ALTOS SALÁRIOS


     “(…) A indústria Ford exige uma discriminação,
uma qualificação, nos seus operários, que as outras indústrias ainda não
requerem,
um tipo de qualificação de novo gênero, uma forma de consumo de força de
trabalho
e uma quantidade de força consumada no próprio tempo médio, que são mais pesadas
e extenuantes do que noutras, e que o salário não chega a compensar todos os
operários, não consegue reconstituir nas condições dadas de sociedade.”
15



     Por essa passagem é possível mostrar o porquê dos
altos salários pagos por Ford, a questão decorrente é a seguinte: o trabalhador
da Ford deve ser o modelo de trabalhador moderno? A resposta de Gramsci é:
somente
se mudar-se as condições sociais e os hábitos individuais. Como? Existindo um
“teor de vida adequado aos novos métodos de produção e de trabalho”
16


e uma autodisciplina dos trabalhadores, isto é, um americanismo. O fordismo,
para Gramsci, não é um tipo-ideal aplicável à Europa, é algo, por excelência,
americano. Já dissemos que o fordismo depende de um instrumento, o americanismo;
este, encontra resistências fora dos EUA. Quando categorias do fordismo são
incorporadas por outros países, ocorre uma adaptação dialética: um país tem
seus “fatos sociais”
17


americanizados
e, concomitantemente, o americanismo adapta-se aos “fatos sociais” locais.



     Voltando aos altos salários, eles também
discernem os trabalhadores em matizes: os que estão qualificados e adaptados
para a atividade na indústria fordizada, recebem os altos salários para
manterem-se nessas condições; os que não estão em tais condições estão
excluídos de atividades remuneradas com os altos salários. Com efeito, os altos
salários estão reservados a uma aristocracia operária e não a todos os
trabalhadores; essa é a contradição existente na realidade que denuncia o cunho
ideológico dos altos salários. E há, ainda, outro dado do capitalismo que
limita e corroe os altos salários: trata-se do desemprego que, na época de
Gramsci, assumia uma proporção veemente.


ESTUDO DO PROBLEMA 7
: O FORDISMO COMO PALIATIVO À LEI TENDENCIAL DA QUEDA DA TAXA DE LUCRO


     Depois de O Capital de Karl Marx, em especial o livro
III, sabe-se que há uma tendência inerente ao capitalismo que embute cada vez
menos capital variável na mercadoria e, em contrapartida, cada vez mais capital
fixo: “(…) Dada uma quantidade determinada de capital social médio, digamos
um capital de 100, a porção que se configura em meios de trabalho é cada vez
maior, e a que se configura em trabalho vivo, é cada vez menor. Uma vez que
a massa global de trabalho vivo adicionada aos meios de produção decresce em
relação ao valor desses meios de produção, o trabalho não-pago e a parte que
o representa, do valor, também diminuem em relação ao valor de todo o capital
adiantado. Em outras palavras, parte alíquota cada vez menor de todo o capital
desembolsado se transforma em trabalho vivo, e a totalidade desse capital suga
portanto, relativamente à magnitude, quantidade cada vez menor de trabalho
excedente,
embora ao mesmo tempo possa aumentar a parte não-paga em relação à parte paga
pelo trabalho aplicado.”
18



     Não pretendemos, aqui, aprofundarmo-nos no que é
a lei tendencial da taxa de lucro, tomemos apenas seu caráter geral que permite
discorrer sobre o assunto no texto de Gramsci. Para este, o fordismo aparece
como um paliativo para se enfrentar a lei acima.



     Tal paliativo, porém, tem seus limites; escrevendo
sobre os altos salários Gramsci diz: “(…) Mas logo que se tenham generalizado
e difundido os novos métodos de trabalho e de produção, logo que se tenha criado
universalmente o novo tipo de operário, e logo, que se tenha aperfeiçoado o
aparelho de produção material, o turnover excessivo será automaticamente
limitado
por um extenso desemprego e desaparecerão os altos salários. Na realidade, a
indústria americana de altos salários explora ainda um monopólio conquistado
pelas iniciativas tomadas relativas a novos métodos; aos lucros de monopólio
correspondem salários de monopólio.”

19
Quando os novos métodos generalizararem-se, porém, a lei tendencial da taxa
do lucro volta vencer a batalha contra os economistas e administradores de
empresas.
Este é o principal argumento usado por Gramsci para dizer que o fordismo tem
seu limite como enfrentamento da lei; aliás, o argumento é muito lacônico, mas
de uma importância muito grande no texto, já que o problema da relação do
fordismo
com a lei tendencial da queda da taxa de lucro não compõem uma parte ou um
capítulo
em especial.


    Vimos o quão importante foi este texto de
Gramsci para a história do marxismo: os marxistas mostravam-se receosos em
considerar aspectos superestruturais da sociedade na análise da mesma. Gramsci,
porém, mostrou esta possibilidade sem contradizer o marxismo: o americanismo
aparece como instrumento do fordismo, como um modo de vida adequado ao
fordismo. Porém, o fordismo não decorre de modo unilateral do americanismo;
como vimos, ele foi possível, nos EUA, em função da racionalidade demográfica,
da ausência das arraigadas tradições medievais, da possibilidade dos altos
salários e dos benefícios sociais, do deslocamento do eixo hegemônico da
economia para a indústria e do bloqueio do sindicalismo.



     O fordismo ganha vida a partir de dentro e de
fora da fábrica, como foi possível ver na crítica de Gramsci a Trotski. Seu
instrumento é o americansimo, mas este não apareceu arbitrariamente nas
“mentalidades”, tem raízes na vida material da sociedade. Destarte, há um jogo
dialético: americanismo e fordismo, fordismo e americanismo; mas sempre
obedecendo a corrente de pensamento a que Gramsci está filiado, o materialismo
histórico. Tanto o americanismo como o fordismo decorrem de uma realidade
material e, já existindo, o primeiro é instrumento para a vida do segundo, este
a materialização do primeiro na produção.



     Outro aspecto que enfatizamos aqui é título de
nosso trabalho, chegamos a ele pela própria letra do Gramsci – como mostra a
nota 8 de nosso trabalho. As condições preliminares ao fordismo e a
racionalidade da produção potencializaram uma importante virada do processo
produtivo dos EUA, o deslocamento do eixo produtivo para a indústria. É nela, e
por ela, que a sociedade americana estabeleceu sua primazia: o eixo da
sociedade é ela e para ela, a hegemonia nasce na (e da) fábrica.


NOTAS




  1. Gramsci, Antonio. “Americanismo e fordismo” in Obras
    escolhidas. Tradução de Manuel Cruz, São Paulo: Martins Fontes, 1° edição, 1978,
    p. 311.
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  2. Op. cit., p. 311.
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  3. Op. cit., p. 311.
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  4. Op. cit., pp. 311-312.
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  5. Op. cit., p. 313. 
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  6. Op. cit., p. 312.
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  7. Op. cit., p. 313.
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  8. Op. cit., p. 316.
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  9. Op. cit., p. 322.
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  10. Op. cit., p. 316
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  11. Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
    Tradução de Szmrecsányi, M. Irene de Q. F. e Szmrecsányi, Tomás J.M. K., São
    Paulo: Editora Pioneira, 13° edição, 1999, p. 132.
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  12. Rousseau, Jean-Jacques. “Discurso sobre a origem
    e os fundamentos da desigualdade entre os homens” in Os Pensadores. Tradução
    de Lourdes Santos Machado, São Paulo: Abril Cultural, 2° edição, 1978, p. 241.
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  13. Gramsci, Antonio. “Americanismo e Fordismo” in Obras
    escolhidas. Tradução de Manuel Cruz, São Paulo: Martins Fontes, 1° edição, 1978,
    p. 324.
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  14. Op. cit., p. 328.
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  15. Op. cit., p. 334.
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  16. Op. cit., p. 334
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  17. Durkheim, Émile. “As regras do método sociológico”
    in Os pensadores. Tradução de Moura, Carlos Alberto Ribeiro; Cary, Luz; Esteves,
    Margarida Garrido Esteves e Esteves, J. Vasconcelos, São Paulo: Abril Cultural,
    1978, p. 87.
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  18. Marx, Karl. O Capital – Livro III: O processo global
    da produção capitalista. Tradução de Reginaldo Sant’Anna, Rio de Janeiro:
    Editora
    Bertrand Brasil, 6° edição, 1991, pp. 246-247.
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  19. Gramsci, Antonio. “Americanismo e fordismo” in Obras
    escolhidas. Tradução de Manuel Cruz, São Paulo: Martins Fontes, 1° edição, 1978,
    p. 333.
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  • Gramsci, Antonio. “Americanismo e fordismo” in Obras escolhidas. Tradução de
    Manuel Cruz, São Paulo: Martins Fontes, 1° edição, 1978.


  • Mello, Alex Fiuza de. “O sentido gramsciano de ‘americanismo e fordismo’ no
    contexto do desenvolvimento mundial do capitalismo” in Mundialização e política
    em Gramsci. São Paulo: Cortez, 1996.

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