Leonid Andréyev – Biografia e obra O GRANDE “SLAM”

LEONID ANDREIEV

(1871 — 1919)

Leonid Andreiev
LEÔNIDAS NIKHOLAIEVITCH ANDRÉIEV

Poucos anos depois do aparecimento de Gorki, entre 1895 e 1900, apareceu nos meios literários russos um contista, que logo chamou a atenção do público. Era LEÔNIDAS NIKHOLAIEVITCH ANDRÉIEV, nascido^ em Orei em 1871, de família burguesa, formado em Direito pela Universidade de São Petersburgo e mesmo tendo exercido a profissão de advogado, acabou abandonando essa carreira pela literatura. Viveu parte da sua existência na Alemanha e na Finlândia, onde faleceu.

Personagem bastante complexo sob o ponto-de-vista psicológico e artístico, Andrêiev foi um fiel intérprete da própria época em que viveu e dotado de bastante originalidade.

Escreveu: "O abismo", seu primeiro e retumbante êxito (1902) seguido de "O pensamento", "O governador", "O riso vermelho", etc. "O rei fome", que escreveu mais tarde, obteve tal êxito que, num só dia, vendeu os 18.000 exemplares impressos dessa obra. Sua obra é vasta, tendo se espraiado pelo teatro, onde é considerado um artista de valor pela sua produção. O escritor é mesmo apontado como um dos renovadores modernos da cena. Seu "Diário de Satanaz" foi publicado apôs a morte.

Exilado voluntário na Finlândia depois da revolução russa com a qual não concordou, aí faleceu, vítima de um envenenamento, intencional ou talvez acidental (o escritor já havia tentado contra a vida em outros tempos) deixando uma obra digna de estudo e reconhecimento, filiada à corrente realístico-simbolista que no-seu tempo dominou a ficção russa.

O GRANDE “SLAM”

Jogavam três vezes por semana: às terças, quintas e sábados. O domingo seria excelente para esse efeito, mas tinham de aproveitá-lo para certas distrações ou. deveres acidentais, como ir ao teatro ou fazer uma visita. Daí, ser considerado o dia mais estúpido de todos. Entretanto, quando estavam no campo, aproveitavam também o domingo para o jogo. Os parceiros eram estes: o corpulento e irritável Maslenikov e Jacó Ivanovitch. Esta combinação fora estabelecida seis anos antes e Eufrásia Vasilievna insistira sempre por que se mantivesse assim; se jogasse contra o irmão, o caso não ofereceria o mínimo interesse nem para ela nem para êle, visto que os lucros de um se equilibrariam com os prejuízos do outro. Embora nenhum necessitasse de dinheiro, ela não compreendia que se pegasse nas cartas só pelo prazer de jogar, e a verdade é que se sentia deliciada quando eram eles que ganhavam. Esses proventos guardávamos ela numa caixa especial e afiguravam-se-lhe mais preciosos e importantes do que as somas graúdas com que pagava a renda da casa e as suas despesas domésticas.

Encontravam-se os quatro na residência de Procópio Vasilievitch, que morava num andar amplo e confortável sozinho com a irmã (sem falar no gato branco, que estava sempre dormindo em cima duma poltrona). Desta maneira, tinham a certeza de não serem incomodados por mais ninguém e de obterem o sossego essencial para a sua ocupação. O dono da casa era viúvo: perdera a mulher no segundo ano de casado e estivera dois meses, depois disso, num hospital de doenças nervosas. Eufrásia conservava-se solteira, embora tivesse namorado um estudante, durante algum tempo. Ninguém sabia — e ela esquecera-se já — qual o motivo por que não houvera casamento; todavia, quando da festa anual em benefício dos estudantes pobres, nunca deixara de enviar à respectiva comissão, a quantia de cem rublos acompanhada dum bilhete em que assinava Um anônimo. Era a mais nova dos quatro jogadores: tinha quarenta e três anos.

O mais velho de todos, Maslenikov, aborreceu-se, a princípio com aquele arranjo dos parceiros, pois via-se obrigado, dessa forma, a jogar sempre com Jacó Ivanovitch; ou melhor, a renunciar ao seu sonho do grande "slam" sem trunfo. Sob todos os ângulos bem se podia dizer que esses dois homens não se coadunavam nada um com o outro. Jacó Ivanovitch era um velhinho seco, silencioso e solene, que até em pleno verão usava sobretudo e meias de lã. Chegava sempre às oito horas (nem um minuto antes nem um minuto depois) e pegava logo no lápis; muito largo num dos dedos, movia-se-lhe o anel, onde brilhava um diamante enorme. O que nele havia de mais detestável, na opinião do seu parceiro, era o fato de nunca se comprometer a nada mais importante do que quatro vazas, mesmo que tivesse boa mão e a vitória estivesse garantida. Aconteceu uma vez, que Jacó Ivanovitch começou com o seu processo cauteloso \e Maslenikov, irritado, atirou as cartas em cima da mesa; o velhote, muito sossegadamente, apanhou-as e foi marcando os pontos necessários para fazer as quatro vazas. (1)

— Desiste do grande "slam"? bradou Nicolau Demetrievitch (era este o nome e o patronímico de Mas-enikov).

— Nunca vou além disto, replicou, secamente, o interpelado. E acrescentou à guisa de explicação: —> Nunca se sabe o que pode suceder.

Nicolau Demetrievitch jamais conseguiu convencê-lo. O jogo deste era sempre ousado, mas, como tinha pouca sorte, perdia, sem, no entanto, desesperar, pensando desforrar-se, invariavelmente, na próxima partida. Com o decorrer do tempo, foram-se habituando, um ao outro, e deixaram de fazer recíprocas observações. Nicolau Demetrievitch arriscava-se, como de costume; Jacó Ivanovitch tomava nota das vazas perdidas e mantinha o seu nistema.

Assim se entretinham no verão e no inverno,na primavera e no outono. O mundo continuava a sua existência, ora alegre ora triste e seguia o seu curso através do espaço entre gargalhadas e gemidos, alegrias e sofrimentos. Destas ocorrências da vida alheia Nicolau Demetrievitch trazia, às vezes, até junto dos outros, um eco do que se passava lá fora: Em certas ocasiões, fazia esperar os amigos: chegava atrasado, quando estes jáestavam sentados à mesa, com as cartas abertas em leque sobre o pano verde.

Maslenikov, de faces coradas, irradiando a frescura do ar livre, tomava, às pressas, o seu lugar em frente a Nicolau Ivanovich e, desculpando-se, dizia:

— Que porção de gente pelas ruas! Todos num vaivém sem destino.. .

Eufrásia Vasilievna considerava seu dever de dona de casa não prestar grande atenção às singularidades dos convidados. Limitava-se a responder, enquanto o velhote seco, solene e silencioso preparava o lápis, e o irmão dava alguns retoques no serviço de chá:

— O tempo deve estar bonito. Mas … não seria melhor começarmos?

E começavam. A sala pomposa permanecia calma, todos os sons morriam nos pesados reposteiros e na espessura dos tapetes e dos estofos. Sobre o tapete se perdiam, sem ruído, os passos da criada, ao distribuir as xícaras de chá muito forte; mal se lhe ouvia o rumor da saia engomada ou o riscar do lápis de Jacó Ivanovitch ou algum suspiro de Nicolau Demetrievich. A chávena deste ficava numa mesa à parte, com um chá mais fraco, que êle bebia sempre pelo pires.

No inverno, Maslenikov observava que a temperatura, de manhã, fora muito fria e que, nesse momento, estava mais agradável. No verão não era raro dizer:

— Vi muita gente a caminho do campo, com suas cestas…

Eufrásia acolhia essas frases com benevolência. Se jogavam na varanda, nos meses de calor, era seu hábito perguntar (embora nem uma nuvem toldasse o firmamento) :

— Parece-lhe que vai chover? O velhote seco pegava nas cartas, com solenidade, e,

conforme o que lhe vinha ter à mão, assim se convencia, mais ou menos, da frivolidade incorrigível do parceiro. Certo dia, Maslenikov alarmou extraordinariamente o grupo. Por mais de uma vez se referiu ao caso Dreyfus, chegando a declarar:

— Aquilo vai de mal a pior.

Daí a pouco riu-se e observou que a sentença injusta seria, decerto, anulada. Por fim, exibiu um jornal e leu um artigo, ainda sobre o mesmo assunto.

— Já acabou? inquiriu Jacó Ivanovitch, escandalizado. Mas o outro não ouviu e continuou na leitura. Desta maneira, Maslenikov conduziu os amigos, nessa ocasião, a discutirem o caso, originando-se rápida disputa. Eufrásia Vasilievna recusava-se a aceitar as formalidades do processo e queria que o condenado fosse, sem mais nem menos, absolvido. Jacó Ivanovitch e o irmão dela afirmavam que se tornaria necessário proceder, primeiro, a certas exigências legais, antes de conceder a absolvição. O velhote seco, porém, recaiu em si (foi o primeiro a lembrar-se do jogo) e indagou:

— Não acham que é tempo de começar? Prepararam-se para jogar e, dissesse o que dissesse Maslenikov a respeito de Dreyfus, não encontrou da parte dos outros senão silêncio obstinado.

Assim se entretinham no verão e no inverno, na primavera e no outono. Uma vez ou outra havia um incidente engraçado, como naquela partida em que o irmão de Eufrásia se esqueceu do que a parceira havia marcado e não fêz a vaza, quando a coisa estava de antemão assegurada. Nicolau Demetrievitch riu com vontade e. exagerou o valor do prejuízo sofrido.

Quando Eufrásia Vasilievna tinha muito bom jogo, produzia-se no grupo uma grande excitação. Ela própria ficava corada, desnorteava-se, não sabia onde pôr as. cartas e olhava suplicante para o irmão que se conservava calado. Os outros dois, com a mais cavalheiresca das simpatias pela sua fragilidade feminina, animavam-na com sorrisos condescendentes, enquanto esperavam impa-cintemente o resultado. Mas, em geral, quando jogavam, permaneciam sérios, pensativos. Para eles, as cartas haviam de há muito perdido o seu aspecto de simples coisas: adquiriam personalidade e independência, tenham, por assim dizer, vida própria. Uns gostavam duns naipes, outros, de outros; estes davam sorte, aqueles não; dir-se-ia que as cartas fugiam ao domínio dos jogadores, subtraindo-se ao desejo deles, tornando-se livres, insubmissas; era como se possuíssem gostos, preferências e caprichos. Jacó Ivanovitch recebia, quase sempre, copas, e a Eufrásia Vasilievna cabiam espadas, coisa que ela detestava. Noutros momentos, julgar-se-ia que os naipes se divertiam à custa dos jogadores; a Nicolau Demetrie-vitch não calhava nenhum deles em especial; as cartas na. mão deste homem, eram como hóspedes de passagem num hotel, iam e vinham com indiferença… Durante uma semana, por exemplo, só lhe acertavam duques e ternos, que lhe apareciam com ar insolente e motejador. Nicolau Demetrievitch estava convencido de que nunca faria o grande "slam" pelo fato de as cartas desconfiarem da sua ambição e lhe virem parar às mãos já com o propósito firme de o desiludirem. Debalde licitava êle no leilão inicial; elas percebiam-lhe o estratagema e, quando Maslenikov verificava o jogo, dir-se-ia, por exemplo, que três seis lhe sorriam e que o rei de espadas, que eles haviam trazido na sua companhia, lhe piscava, malicioso, o olho.

Eufrásia Vasilievna não aprofundava tanto a qualidade misteriosa das cartas. Jacó Ivanovitch que desde há muito tempo compusera a sua atitude grave e filosófica, jamais se surpreendia ou se encolerizava; revestira contra a sorte aziaga, aquela armadura que era a sua norma: nunca ir além de quatro vazas. Era só, pois, Nicolau Demetrievitch quem se preocupava e afligia com o caráter caprichoso, com a inconsequência irônica das cartas. Quando estava deitado na cama, ainda voltava a pensar no seu ambicionado grande "slam" sem trunfo e achava a coisa fácil e possível; um ás, depois de um rei, depois outro ás… Mas quando cheio de esperança, se sentava a jogar na noite seguinte, os malditos seis lhe surgiam mais uma vez, arreganhando os dentes. Havia nisso algo de fatal e enigmático. Pouco a pouco, o grande "slam" sem trunfo foi-se tornando o sonho máximo de Nicolau Demetrievitch.

Outros acontecimentos se produziram, que nada tinham que ver com as cartas. O corpulento gato branca de Eufrásia Vasilievna morreu de velho e foi, com permissão do senhorio, enterrado no quintal do prédio, Nicolau Demetrievitch mais uma vez desapareceu, agora por duas semanas inteiras; não contente com isso, ausentou-se por outra semana ainda, e ninguém sabia que pensar de semelhante coisa nem que resolução tomar, uma vez que o "vint" com três pessoas era contrário aos hábitos daqueles jogadores e considerado sem graça. Quando Maslenikov reapareceu, notaram-lhe no rosto (outrora corado, tão em contraste com o tom grisalho do cabelo) certa palidez quej um pouco de magreza mais fazia ressaltar. Declarou que o filho mais velho fora preso por qualquer coisa e conduzido para S. Petersburgo. Os outros ficaram surpreendidos, pois ignoravam que Maslenikov tivesse filhos; com certeza, êle, alguma vez, devera ter aludido ao fato, mas a verdade é que os amigos já se havia mesquecido. Pouco depois, ausentou-se de novo esse homem incorrigível, faltando num sábado, que era o dia em que jogavam mais; em seguida, souberam, também com espanto que Nicolau Demetrievitch sofria, desde longa data, do coração, e que, nesse tal sábado, ficara retido em casa por motivo dum ataque cardíaco.

Sentaram-se, finalmente, os quatro, dispostos a recomeçar as partidas; o próprio Maslenikov, antes tão cheio de interrupções inoportunas, agora raras vezes conversava. Só se ouvia o fru-fru das saias da criada, enquanto na sala pomposa as cartas macias iam escorregando entre os dedos e vivendo sua existência repleta de silêncio e de mistério, em absoluto alheia à vida dos que jogavam com elas. Para Nicolau Demetrievitch continuavam a ser esquivas, senão maliciosa e trocista; dir-se-ia residir algo de fatalista no baralho.

Numa quinta-feira, 26 de novembro, produziu-se, enfim, uma alteração extraordinária nas cartas. Mal havia começado o jogo, e já Nicolau Demetrievitch obtinha a seqüência, fazendo não só as vazas prometidas, mas, ainda, um pequeno "slam", quando Jacó Ivanovitch exibiu um ás com que o parceiro não contava. Depois, durante certo tempo, foram aparecendo os seis do costume, mas, dum momento em diante, vieram naipes com-pletós, como se cada um deles estivesse ansioso de tomar parte, por sua vez, na alegria de Maslenikov. Assim cumpriu êle, jogo após jogo, as vazas prometidas, com grande pasmo dos outros, até do próprio Jacó Ivanovitch. A excitação de Nicolau Demetrievitch comunicou-se aos amigos; as cartas deslizavam-lhe rápidas, nos dedos gordos e suados, cujos nós tinham rugas salientes.

— Você, hoje, está com sorte, observou, com ar grave, o irmão de Eufrásia Vasilievna. Não acreditava, no entanto, na duração daquela súbita reviravolta. Por experiência própria sabia que o desastre não havia de tardar.

A dona da casa, por seu lado, regozijava-se com o fato de Maslenikov ter boas cartas, ao menos uma vez na vida. E como seu irmão formulasse suas dúvidas, ela fingiu cuspir de lado, a fim de conjurar a profecia.

Durante momentos, o jogo pareceu incerto. As mãos de Nicolau Demetrievitch foram para uns duques, que se mostraram com ar culposo; depois, com celeridade, surgiram ases, damas e reis. O afortunado mal tinha tempo de reunir as cartas e de falar. Quando era êle a dá-las, enganava-se, com freqüência. A felicidade bafejava-o; no entanto, o parceiro mantinha-se prudente. O espanto deste último, dera lugar à descrença naquela inesperada alteração da sorte e mais de uma vez lembrou a Maslenikov a sua norma fixa de não ir além das quatro vazas.

Nicolau Demetrievitch estava, agora, corado e anelante. O outro irritava-o. De maneira que, sem hesitar, começou a fazer promessas audaciosas, convencido de que teria as cartas todas de que necessitava.

Chegou a vez de ser Procópio Vasilievitch a distribui-las. Maslenikov verificou as suas, sentiu um baque no coração e a cabeça girar-lhe à roda. Ante os olhos passou-lhe uma nuvem. Tinha, na mão, copas e paus desde ás a dez, e ainda o ás e o rei de ouros. Se tirasse o ás de espadas, ficaria apto a fazer o grande "slam" sem trunfo.

— Duas sem trunfo, começou êle, dominando, a custo, a perturbação da voz.

— Três espadas, replicou Eufrásia Vasilievna que estava também excitadíssima, pois tinha quase todas as «spadas, incluindo o rei.

— Quatro copas, prometeu secamente Jacó Ivanovitch.

Nicolau Demetrievitch declarou, a seguir, um pequeno "slam" mas Eufrásia, fora de si, não quis renunciar, e, embora soubesse muito bem que não tinha probabilidades, falou logo em grande "slam" de espadas. Maslenikov hesitou nus segundos e, depois, em tom que se afigurou a todos vitorioso (mas que era só para iludir a desconfiança) pronunciou, devagar:

— Grande "slam" sem trunfo!

Nicolau Demetrievitch ia fazer o seu grande "slam" sem trunfo! Todos olharam assombrados, e o irmão da dona da casa exclamou: "Oh!"

Então, Maslenikov estendeu a mão para o baralho, mas esta tremeu e derrubou uma vela. Eufrásia apanhou-a e êle, por instantes, ficou hirto, imóvel, com as cartas em cima da mesa. De repente ergueu as mãos e tombou lentamente para o lado esquerdo. Na queda, arrastou consigo uma mesinha onde estava o pires de chá.

Quando o médico chegou, disse que Nicolau Demetrievitch morrera de síncope cardíaca e, para consolar os outros, acrescentou que o infeliz não devia ter sofrido nada. Deitaram o morto num divã, na mesma sala em que tinham estado a jogar, e cobriram-no com um lençol. O cadáver apresentava aspecto aterrador. Dobrado para um lado, um dos pés ficara descoberto, e parecia não lhe pertencer: era como se fosse de outra pessoa; na sola da bota preta, quase nova, tinha aderido um pedaço de folha de estanho, dessas com que se embrulham chocolates. A mesa do jogo conservava-se como a haviam deixado, com as cartas espalhadas e voltadas para baixo. Só as de Nicolau Demetrievitch é que estavam em monte, tal qual êle as tinha posto.

Jacó Ivanovitch começou a andar de cá para lá, na sala, em passos miúdos e incertos, fazendo o possível para não olhar o defunto nem pisar o chão fora do tapete, com receio de fazer barulho. Ao aproximar-se, numa das vezes, da mesa de jogo, pegou cuidadosamente nas cartas do seu falecido parceiro, examinou-as e colocou-as, outra vez, no mesmo lugar. Depois, verificou o baralho e encontrou logo o ás de espadas, a própria carta de que Nicolau Demetrievitch precisava para o seu grande "slam". Jacó Ivanovitch deu mais alguns passos no tapete e, depois, foi para a sala contígua. Abotoou o sobretudo até o pescoço e derramou algumas lágrimas de comiseração pelo pobre morto. Fechando os olhos, procurou recordar-se de como era a cara de Maslenikov, nos seus dias de bom humor, quando ria satisfeito pelas vitórias alcançadas. Comoveu-o, em especial a lembrança daquele desejo insatisfeito do grande "slam" sem trunfo, e pôs-se a recapitular as várias cenas dessa noite, desde a vaza de ouros que o parceiro fizera, até esse fluxo contínuo de cartas boas, que lhe apreceram, aliás, pre-nunciadoras de mau desfecho. Agora, Nicolau Deme-trievitch não era deste mundo; morrera precisamente quando ia fazer um grande "slam".

Então, uma idéia terrível na sua simplicidade, fez estremecer o corpo seco de Jacó Ivanovitch e obrigou-o a pular na cadeira. Perscrutou; em volta de si, como se o pensamento não lhe tivesse vindo do próprio cérebro, mas houvesse sido inspirado por outrem, e disse em voz alta: "Mas, afinal, êle não chegou a saber que o ás estava no baralho e que o grande "slam" era coisa garantida. E já não pode sabê-lo!"

E só nesse momento é que Jacó Ivanovitch se compenetrou do que significava, realmente, não existir. Compreendeu o que era a morte e a coisa apareceu-lhe horrível. Nunca poder chegar a saber! Ainda que fosse, agora, gritar ao ouvido de Maslenikov e meter-lhe as cartas pelos olhos adentro, nem assim este perceberia nada, porque estava morto! Mais um pequeno gesto, mais um segundo de vida, e Nicolau Demetrievitch teria visto o ás e sabido que tinha, de fato, o grande "slam". Mas sucedera aquela desgraça sem remédio, e o jogador não conhecera a sua sorte, não soubera quanto fora afortunado, nunca mais o saberia!

— Nunca, nunca… — repetiu Jacó Ivanovitch, soletrando a palavra, a fim de aprender melhor o significado.

A palavra existia, sim, e tinha significação, mas era tão estranha e tão amarga, que Jacó Ivanovitch se deixou cair, outra vez, numa cadeira e recomeçou a chorar. Lastimava o seu amigo por haver morrido na ignorância e lastimava-se a si mesmo e aos outros pela possibilidade

em que estavam de lhes poder suceder coisa análoga. Enquanto chorava o morto, ia imaginando que estava a jogar com êle, fazendo vaza após vaza até treze e calculando quanto deviam ter ganho, coisa que Maslenikov ignoraria também por toda a eternidade! Foi a primeira e única vez em que Jacó Ivanovitch pôs de parte a sua norma das quatro vazas apenas; e, em pensamento, jogou um grande "slam" sem trunfo, em honra do seu amigo.

— E você Jacó Ivanovitch? perguntou Eufrásia Vasilievna, entrando ali. Afundou-se numa poltrona ao lado dele e rompeu em pranto. — Que horrível que isto é!

Olharam-se mutuamente e choraram em surdina, lembrando-se de que na sala ao lado, sobre o divã, jazia o cadáver dum homem, corpo frio, pesado e silencioso.

— Mandou prevenir a família? inquiriu Jacó Ivanovitch, assoando-se com violência.

— Sim. Meu irmão e Anuska já partiram; mas não sei se encontrarão a casa, porque não temos o endereço.

— Não morava na mesma do ano passado?

— Não, tinha-se mudado. Diz Anuska que êle costumava mandar o carro seguir para qualquer parte da Avenida Novenski.

— Talvez descubram, através da polícia, volveu o velhote seco, para consolar. Creio que era casado; não era?

Eufrásia Vasilievna esgazeou os olhos para Jacó Ivanovitch e não respondeu. A êle, afigurou-se que nesse olhar se refletia o seu próprio pensamento, certa idéia que lhe ocorrera nesse instante. Tornou a assoar-se, meteu o lenço no bolso cio sobretudo, e indagou, com ar apreensivo:

— Onde arranjaremos, agora, um quarto jogador? Mas, Eufrásia Vasilievna, absorvida em pensamentos de outra natureza, relacionados com a sua qualidade de dona de casa, não ouviu o que êle dissera. Depois de Curtos momentos, inquiriu,-por sua vez:

— E você, Jacó Ivanovitch, ainda mora no mesmo lugar ?

(Tradução revista de Cabral do Nascimento apud Obras-Primas do Conto Russo).

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