LITERATURA E HISTÓRIA
Côn.
José Geraldo Vidigal de Carvalho, da Academia Mineira de Letras – Cadeira 12
Introdução
Um aspecto fundamental no que tange o texto literário é a relação
que há entre o escritor e o leitor. Este deseja sempre penetrar o pensamento
do autor. Sem leis estritas no que tange à crítica histórica o romance permite
ao escritor escolher, ordenar e se expressar com certa independência. Isto é
tolerável no que diz respeito à ficção.
Quando se trata de um texto histórico as normas rígidas da análise
interna e externa dos documentos e a realidade dos fatos necessitam ser
respeitadas. Entra em jogo a literatura para oferecer ao historiador todos os
recursos atinentes à comunicação objetiva e à beleza de uma redação escorreita.
Aí se une o útil das lições dos atos humanos do passado e o prazer da leitura
referta de dons estéticos. É preciso, de fato, guardar sempre o culto pela
forma com que se escreve, mas sem jamais obliterar a importância fundamental do
conteúdo e seu significado.
Com efeito, além de acontecimentos marcantes e feitos expressivos de
célebres personagens cumpre se apresente alguma reflexão sobre o sentido de
tudo que é exposto num bom vernáculo.
Saber é conhecer as coisas pelas suas causas. É preciso apreciar as
ações humanas e captar o que moveu uma atividade para o bem ou para o mal,
segundo critérios de juízo bem fundamentados. É preciso refletir para bem
escrever.
Navegar por entre os motivos, as opiniões e as paixões humanas
supõem acurado tino. Apresentar tudo isto numa linguagem nobre que honre a
língua pátria é possuir talento literário apurado e um civismo acendrado.
Ir à essência das coisas
Gustavo Flaubert que marcou a literatura francesa pela profundidade
de suas análises psicológicas, seu senso de realidade, sua lucidez sobre o
comportamento social, e pela força de seu estilo, assim se expressou: «Je me
suis toujours efforcé d’aller dans l’âme des choses»1.
O historiador não fica bloqueado na região do imaginário, pois
alicerçado nas evidências registradas nos documentos ou numa sólida tradição
oral pode penetrar nas ilusões que se apossam dos espíritos e nas surpresas que
jorram dos corações de seres racionais emotivos.
Aí o campo é vastíssimo e o leque se abre quanto heroísmos
admiráveis ou covardias abomináveis, não sendo menos fascinante o jogo político
subjacente aos contextos históricos.
Adite-se a argúcia do literato que leva o leitor amante da História
a, por si mesmo, tirar conclusões a partir do que lhe é trazido à inteligência
e à imaginação.
É uma arte redigir um texto que leva à reflexão, mesmo porque
qualquer redação não pode ser um ponto de chegada, mas, sim, de partida para
outras elucubrações.
Muito se queixa hoje em dia da pobreza de certos escritos vazios de
pensamentos e de mensagens construtivas e enriquecedoras. São nuvens que não
fazem jorrar a chuva benéfica da verdadeira cultura.
Flaubert com razão declarou: “Si le lecteur ne tire pas d’un
livre la moralité qui doit s’y trouver, c’est que le lecteur est un imbécile,
ou que le livre est faux au point de vue de l’exactitude”2.
Sócrates falou da parturição das idéias e o bom escritor deve ser um
obstetra do espírito, dando à luz um novo modo de pensar e de agir. Saint-Real
recriminou os que não levam a raciocinar, “dado que a reflexão não enriquece
tanto a memória, mas sim a forma do julgamento”. 3
É preciso, de fato, a quem se vale da literatura fazer jorrar raios
de luz sobre o leitor, enriquecendo-o com o pábulo de um saber iluminador.
Não se pode viver de quimeras. A admiração excitada visa oferecer
algo mais a quem se entregou a determinada leitura. Ao novo conhecimento se
alia a influência no modo de ser do leitor através da imitação das boas ações
ou pela revisão pessoal de vida ante as conseqüências funestas do erro.
Não se trata de manipular os fatos numa atitude ideológica, numa
visão meramente utilitarista, mas fazer da história um referencial cultural de
alto valor intelectual e vivencial.
Interesse pelo romance histórico
No caso do romance histórico, gênero dos livros mais vendidos, se
pode explicar este fenômeno comercial junto sobretudo do público jovem pela
vocação intimista e racional da juventude. Isto atesta um enorme interesse e
necessidade de saber por parte de uma mocidade sequiosa de instrução.
Os grandes acontecimentos históricos do século passado, por exemplo,
os quais restam na sua maior parte ainda um enigma, revivem sob a pena de
escritores criteriosos contribuindo para lançar sobre esta época um olhar mais
penetrante e inteligente.
São obras que pretendem reescrever o passado longe de todas as
formas de propaganda ou na exaltação de certas figuras que, no seu tempo, foram
apresentados como semi-deuses.
É lógico que este tipo de literatura se situa entre o limiar da
ficção e da realidade.
Cumpre então que se conscientize ser tal romancista não um copista
ou estenografo escrupuloso da realidade, nem um expert da ciência histórica que
quer reabrir uma questão ou reconstruir, mais ou menos fielmente, um
determinado fato ou retratar com exatidão certo personagem.
De plano se diga que tal gênero literário oferece pistas e suscita
interesse para ulteriores pesquisas da parte dos leitores.
O romancista não é senão um sonhador que se cola à realidade, a qual
está presa a pequenos e grandes dramas, visando fazer uma ponderação por vezes
epidérmica sobre a sociedade e as paixões que se desenvolvem no seu seio.
É que as crises pessoais intensas que ajudam a interpretar o sentido
das tragédias coletivas se sobrepõem a uma postura histórica dentro dos moldes
científicos desta ciência. Isto, porém, não quer dizer que a união da ficção
com a história obsta que se levantem questões importantes às quais,
posteriormente, podem ser exploradas pelo historiador. Aliás, o modo como o
romancista trata eventos e pessoas já oferece um indício a ser avaliado e que
demonstra o estado de espírito de sua época.
Trata-se de uma obra com duas chaves de leitura: de um lado o
aspecto simbólico do conto e de outro a redescrição de uma realidade histórica.
Daí o mérito de notáveis romancistas.
Não é simples fazer corresponder ao mesmo tempo a exigência de
transmitir o que se deu e apresentar os fatos recontados em dimensões
simbólicas e transcendentes.
O risco seria dar lugar uma ênfase exagerada, incontrolável e
perversa ou ao histórico ou ao criativo.
Por outro lado se deve levar em conta também a problemática do
leitor que precisa se esforçar para controlar as emoções diante da
racionalidade.
Eis porque face à realidade contemporânea, o literato deve sempre se
colocar empaticamente no lugar de quem vai ler para tentar evitar o possível
desvio de interpretação. Tarefa árdua, mas louvável.
É preciso permitir ao leitor que se lhe venham à mente idéias não
deturpadas, mas serenas e progressivas para ampliar seu conhecimento.
O que se pede do romancista não é neutralidade, mas prudência para
que se evitem falsidades condenáveis.
O ideal é um romance objetivo no qual a verdade e o testemunho
dinâmico reatulizem as experiências em função de um projeto cultural inovador e
não iconoclasta, ou seja, que demonstre desrespeito pelas tradições, ou, então,
deturpador dos fatos.
O ideal é um literato sensível à cultura e ao real papel
desempenhado por aqueles que entraram na história. Isto significa entender a
literatura no sentido mais amplo. Não como um fim em si mesmo, mas como meio
para entrar em relação com a realidade social.
Conclusão
Deste modo, a literatura, que entra tantas vezes em contacto com o
que há de negativo, de trágico nas grandes experiências históricas, não somente
pode pinçar informações sobre a sociedade, mas, sobretudo é capaz de
compreender o ser humano.
É lógico que a literatura não tem, evidentemente, o direito nem a
competência de recriar acontecimentos. Colocando-se, porém, na posição do
leitor ela o ajuda pelo viés da palavra, do raciocínio e da sugestão, a
encontrar explicações possíveis, favorecendo assim a interação entre a dimensão
individual e a pesquisa histórica.
Nesta perspectiva, o romancista oferece informações e sensibiliza
para grandes valores da humanidade, transmitindo em termos concretos, pessoais
e únicos, as inquietações e as contradições de uma época. Pode ir até além do
que falam os livros de história escritos na ótica dos dominadores, dando voz
aos que foram obrigados a um silêncio imposto pelos donos do poder.
Esta é uma missão da literatura apresentar o mundo na sua
totalidade, independentemente de uma manipulação espúria dos que se julgam
proprietários da verdade.
Deste modo a literatura impede que certos temas rolem
definitivamente para as praias do esquecimento.
É sempre bom recuperar o sentido de um passado que influencia o
presente. Isto faz entrar em contacto com as motivações que determinaram
projetos, alguns até criminosos e brutais e que se apresentaram como solução
num determinado momento. Isto não para suscitar indignação ou para pedir
indulgência, mas para desanuviar uma memória histórica contaminada pelas
injunções temporais.
Sob este aspecto o romancista suscita debates proveitosos entre
historiadores e intelectuais em geral.
Cumpre se tenha sempre em mente que a liberdade de expressão é um
direito e a procura da verdade um dever e a isto a literatura não pode nem deve
escapar para não manchar sua sublimidade.
Notas
____________________
1 – CORRESPONDENCE DE FLAUBERT
A SAND – Paris, vers le 31 décembre
1875.
2 – Idem, ibidem – Paris, 6 février 1876.
3 – Saint – Real, De L`Usage de l `Histoire, 1671, Presses
de LÙniversi´te de Lille III, 1980, p.6
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