- RESUMO
- DEDICATÓRIA
- INTRODUÇÃO
- POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
- PRIMEIRA PARTE – O SOL NIETZSCHIANO
- Introdução
- CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO TRÁGICO
- O Nascimento da Tragédia
- O Eterno Retorno e a inocência
- Da imortalidade dos deuses: Apolo e Dionísio
- Sócrates
- Dionísio e o crucificado
- Da alegria e do Amor Fati
- Do niilismo
- A morte de Deus, uma interpretação histórica
- Zaratustra
- Do homem superior e da superação
- O trágico por excelência
- CAPÍTULO 2 A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO
- Pensamento, consciência e linguagem
- Linguagem, sentimento e moral
- Conhecimento e idéia
- Eu penso, eu quero
- Verdade e aparência
- As palavras e as idéias
- Uma bela doidice
- Um ato de autoridade
- A razão na filosofia
- CAPÍTULO 3 -A MORTE DE DEUS -
- Antecedentes
- Nietzsche e a morte de Deus
- A morte de Deus e o super-homem
- Duas alternativas
- O espírito de gravidade
- A morte do homem
- A permanência do vício antigo
- A morte da divindade
- Introdução
- CAPÍTULO 1 - O PROJETO ARQUEOLÓGICO
- Enraizamento na epistemologia
- O primeiro momento
- Uma arqueologia do olhar
- Uma arqueologia da ciências humanas
- Uma arqueologia do saber
- A démarche de Michel Foucault
- CAPÍTULO 2 - O PROJETO GENEALÓGICO
- O poder
- Genealogia e história
- CAPÍTULO 3 - MORTO DEUS, DE COMO PENSAR
- A marca da Modernidade
- O ser da filosofia moderna
- A Modernidade
- Ontologia de nós mesmos
- O trabalho filosófico
- TERCEIRA PARTE - A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM
- Introdução
- CAPÍTULO 1 - A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA
- Doença mental e personalidade
- A experiência trágica
- CAPÍTULO 2 -LINGUAGEM E LITERATURA
- Nietzsche, Freud, Marx
- O século XVI como referência
- Uma tarefa infinita
- A região perigosa
- Da natureza dos signos
- O visível e o dizível
- O ser da linguagem
- A conjunção linguagem, conhecimento e morte
- CAPÍTULO 3 - DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
- Da morte de Deus
- Da morte do homem
- CONCLUSÃO
- BIBLIOGRAFIA
- Foucault
- Sobre Foucault
- Nietzsche
- Sobre Nietzsche
- Outros
- NOTAS
Continued from: A morte de deus e a morte do homem no pensamento de Nietzsche e de Michel Foucault
PRIMEIRA PARTE – O SOL NIETZSCHIANO
Introdução
Falar sobre o pensamento de Nietzsche para depois falar
dos pontos de Foucault e do Nietzsche ligado a Foucault, eis o nosso roteiro,
no qual as temáticas da morte de Deus e da morte do homem aparecem de forma
capital. Dentro deste todo, esta parte funciona como uma preparação, em que nos
preocuparemos em fazer surgir o “sol nietzschiano” que iluminará todo o exame
posterior. Aqui, estaremos particularmente interessados em três temas de
Nietzsche, a saber: o pensamento trágico, a crítica à consciência, à linguagem
e à razão, e a morte de Deus.
Façamos, pois, uma incursão no pensamento deste alemão
8Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900), o filósofo-filólogo criador de
Zaratustra e de outros tantos livros e textos de filosofia, criador, a bem
dizer, de uma nova atitude diante da vida, de uma nova filosofia, sem deixar,
contudo, de demolir umas tantas outras, razão pela qual passava também por
aquele que filosofava com o martelo.
Busquemos interpretar Nietzsche, penetrando por seu mundo
ainda que de uma maneira provisória, para fazer surgir “o sol da grande
pesquisa nietzschiana” ¾ assim o escrevera
Foucault! ¾, eis o trabalho neste início.
CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO TRÁGICO
O Nascimento da Tragédia
Em 1871, quando Nietzsche tinha 27 anos de idade e já
dois de professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, aparece o
seu primeiro livro: O Nascimento da Tragédia[6]. Desde então constitui-se a
definição da natureza do trágico em tema central da filosofia de Nietzsche,
tema este que irá relacionar-se intimamente com todos os demais, inclusive com
o da morte de Deus, conforme iremos ver.
Reveste-se, pois, de muita importância o nosso ponto de
partida ¾ interpretar o trágico em Nietzsche ¾ porque será no fenômeno do trágico que este percebe a natureza da
realidade. Nele, o tema estético adquire condição de princípio fundamental. A
arte, a poesia trágica, torna-se a chave do mundo. Nietzsche serve-se de
categorias estéticas para formular a sua visão de mundo e isso confere ao Nascimento
da Tragédia uma natureza toda particular em que o fenômeno da arte é
colocado no centro. Para Nietzsche, só com os olhos da arte consegue o pensador
mergulhar o seu olhar no coração do mundo, e é a arte trágica, a tragédia
antiga, que possui este olhar penetrante.
Estaremos, assim, nos situando em um mundo de um pensador
intuitivo, cujos pensamentos, colocados e afirmados, adquirem uma espécie de
confirmação exatamente através da intensidade luminosa que depois projetam nas
coisas. Nietzsche permanece alheio à especulação e seu pensamento brota de uma
experiência fundamentalmente poética. Assim, ao penetrarmos neste tema com
características tão particulares, nada mais conveniente do que nos deixarmos
envolver pela poesia, uma bela poesia: a da descoberta do maravilhoso fenômeno
do dionisíaco.
O mito
Para chegarmos ao pensamento trágico da forma como
pretendemos, nada mais interessante do que lembrarmos da lenda grega antiga de
Ariadne e Dionísio, lenda a que Nietzsche recorreu com grande inspiração.[7]
Diz a lenda que Ariadne, filha de Minos e Pasífae, vendo
o belo herói Teseu encerrado no labirinto para ser devorado pelo Minotauro,
concebeu por ele tão violento amor que não hesitou em salvá-lo. Deu-lhe um
novelo de linha com o qual, desenrolando-o à medida que avançava, logrou sair
das inúmeras voltas do labirinto depois de haver matado o monstro. Teseu fugiu
da ilha de Creta com sua libertadora e a desposou, mas logo depois a abandonou
na ilha de Naxos. Dionísio, que por ali passava, veio então consolá-la da
infidelidade de Teseu, apaixonando-se pela infeliz princesa. Fez-lhe presente
de uma bela coroa de ouro e pedrarias, obra-prima de Vulcano, casando-se com
ela. Mas Ariadne era mortal, contrariamente a Dionísio que era imortal, o deus
da embriaguez e do desembaraço. Assim, diz também a lenda que, após a morte de
Ariadne, sua coroa foi lançada aos céus em sua lembrança,[8] tendo as pedras
da coroa de Ariadne se convertido em belas estrelas do céu.
Dionísio e Ariadne, sua noiva; Dionísio e Ariadne, sua
amada; Donísio e a vida-mulher, seu sofrimento; Donísio e a vida, como
tragédia. Eis aí, no mito, uma dualidade que caracteriza o pensamento trágico:
a do homem e da vida, esta em toda sua dimensão inclusive a do sofrimento,
sofrimento este proporcionado pela paixão que é viver.
Mas o que há de tão particular e de tão interessante
nessa história? É que Dionísio a afirma sempre, mesmo em face da mais cruel
dor. Pois, quem mais, além de Dionísio, poderia ter lançado aos céus a coroa
de Ariadne? ¾ uma coroa para ser contemplada por todos
aqueles que se sensibilizam pela beleza da vida e a eternidade das estrelas.
O Eterno Retorno e a inocência
A eternidade das estrelas ¾ é com ela que Dionísio afirma a sua paixão, um episódio que deseja que
retorne eternamente, o seu caso de amor com Ariadne, o seu caso de amor com a
Vida.
O que acontece, acontece para sempre, fica acontecido e
nada mais pode mudar. É nesse sentido que o acontecido retorna sempre. Retorna
pelo simples fato de ter acontecido para a eternidade. Uma coisa é de uma certa
maneira e não de outra porque aconteceu ser daquela maneira e não de outra. É
nesse sentido que se dá o eterno retorno do acontecido. Uma outra maneira de
conceber isso seria admitir uma condição cosmológica caracterizada por uma uma
infinitude do tempo associada a uma finitude das possibilidades no plano do
existente. Mas, mais do que concepção do tempo como infinito, de que não há
origem nem fim dos tempos, mais do que condição face à finitude das
possibilidades, pode-se pensar que o retorno líquido e certo do acontecido, do
feito, da ação, dá-se porque o que está feito está feito e não está mais por
fazer. É assim que o feito influi decisivamente sobre a eternidade, e esta
inclui o passado, o presente e o futuro.[9]
Interessante é observar que esta concepção acarreta uma
importante dimensão ética da doutrina do eterno retorno: a importância da nossa
ação, no sentido de que “todos aqueles que agem amem a sua ação infinitamente,
mesmo que ela não mereça ser amada”[10]. Uma ética calcada nessa compreensão é uma
ética que leva à afirmação do feito, da ação.[11]
E o feito, o acontecido, dá-se na Vida. A Vida é tudo e é
bela. A Vida é para ser amada. ¾ Por isso, nunca
negá-la-ei, a Vida, mesmo em face da maior dor. Sempre afirmarei a Vida, este é
o pensamento trágico. Sempre afirmarei Ariadne, meu amor, este é o pensamento
de Dionísio, um pensamento inocente.
Inocente é a vida para Dionísio. Inocente é o múltiplo
jogo da vida, da força, da vontade. A existência é um jogo e, como tal, pura
sensação, fenômeno estético. A existência flui, é devir, é afirmação pura. Não
existe um ser para além do devir, não existe um uno para além do múltiplo. O
múltiplo é a manifestação inseparável, a metamorfose essencial. O múltiplo e o
devir são a grande constância. Assim, o múltiplo é afirmação do uno; o devir, a
afirmação do ser.
Retornar é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no
devir. Ser é devir. Tudo o que é devém. Tudo o que devém é. Será, pois, o
eterno retorno lei do próprio devir, como justiça e como ser.
E não terá sido assim que a enunciaram, a serpente e a
águia, para Zaratustra, de uma forma inconseqüente, tornando “modinha de
realejo” para seu dono a doutrina do eterno retorno, sem que este, mesmo assim,
deixasse de amá-los?
Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo
refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é
refeito; eternamente se constrói a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo
volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em
cada instante começa o ser; em torno de todo “aqui” rola a bola “acolá”. O meio
está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.[12]
Por que deixar de amá-los, Zaratustra a seus animais, se
a existência nada tem de responsável nem mesmo de culpável? Dar à
irresponsabilidade um sentido positivo, tornar-se independente do louvor e da
censura, do presente e do passado, do bem e do mal, este é o dom também de
Dionísio, numa existência de jogador-artista-criança: o jogador abandona-se
temporariamente à vida e temporariamente fixa seu olhar sobre ela; o artista
coloca-se temporariamente na sua obra, sobre sua obra; e a criança brinca,
retira-se do jogo e retorna; brinca como brinca Dionísio com as pedras da coroa
de Ariadne lançadas no firmamento, ou seja, afirmadas para sempre em seu acaso.
Haverá aí, nesta maneira de ver o mundo, possibilidade de se admitir um Deus? ¾ um Deus que morre?
Da imortalidade dos deuses: Apolo e Dionísio
Dionísio era imortal. Os deuses gregos antigos eram todos
imortais. Por que haveriam os gregos de admitir um deus mortal, se os deuses
eram aquilo que eles próprios eram, uma vontade de ser … eternamente? E,
sendo os deuses como os homens, tinham as imperfeições e as virtudes destes;
além de disputarem e litigarem entre si e serem passíveis de perdas e danos,
freqüentemente se imiscuíam nas questões dos homens e tomavam partido das suas
paixões. E os homens se sentiam favorecidos ou desfavorecidos pelos deuses. Se
uma pessoa errava, era porque um deus a havia cegado; se outra matava, era
porque um deus a havia para tal fortalecido ou capacitado; se alguém era bem
sucedido, era porque um deus fora seu amigo.
Entre os gregos antigos, os homens pareciam querer a
vida daquela maneira transcorrendo eternamente, como para com os seus deuses.
Esses deuses morreram? Sim, morreram. “Morreram de rir ao escutar um Deus dizer
que era o único”[13], escreveu Nietzsche.
Dentre os deuses do Olimpo havia Apolo, o deus da bela
figura. Foibos Apolon; o nome procede da raiz fós, “luz” e do
substantivo bíou, “vida”, Luz da Vida. Apolo não era só o deus do sol,
mas o próprio sol. É o mais radioso dos Imortais. Vivifica todos os seres mas
igualmente queima e desseca tudo; deus fecundo e purificador é, da mesma forma,
o deus destruidor dos exércitos, sempre vitorioso, o deus da morte súbita.
Grande curador e médico, é pai de Esculápio, o deus da Medicina. Apolo
proporciona calma às agitações do espírito e dá paz. Apolo é o deus da harmonia
e da música apaziguante e da inspiração poética. Comanda as Musas, é deus das
profecias, inspira as Sibilas e Pitonisas em Delos, Tênedos, Claros, Pátara,
Cumas, sobre o monte Palatino e ainda em muitos outros lugares menos
importantes. Consultavam-no ao fundar toda nova colônia, ou ao decretar leis
importantes. Apolo estava presente em todos os atos da vida pública.
Dionísio, por sua vez, o deus de Nisa ¾ Baco, para os romanos ¾ era o deus do
vinho, filho de Júpiter e Semele. Criado pelas Horas e pelas Ninfas longe do
Olimpo e da ciumenta Juno, no monte Nisa, instruíram-no Sileno e as Musas. Ao
crescer, empreendeu a conquista da Índia e do território compreendido entre a
Índia e a Grécia. Consta que passou pelo Egito. Acompanhado de um grande
cortejo de homens e mulheres, armados com o tirso, batendo em tambores e
seguido pelas Ninfas, pelos Sátiros e pelo próprio deus Pã, deus dos pastores,
dos rebanhos, e das florestas, marchava Dionísio à frente do cortejo como um
vencedor triunfante. Submeteu ao seu império todos os povos, ensinando-lhes a
cultura da vinha e o fabrico do vinho. Representam-no às vezes com chifres e
mesmo sob a forma de um touro, símbolo da força que o vinho pode dar ao homem.
Mais comumente é representado como um belo jovem de faces coradas, coroado de
vinha ou de hera, com os longos cabelos anelados caídos sobre os ombros. Não
raro figuram-no sentado num carro puxado por tigres, leões e panteras. A ele
imolavam o bode, sendo também a ele consagradas a pantera e a pega, ave
européia semelhante ao corvo; entre os vegetais , a hera, o pinheiro e o
carvalho. Consta que o culto de Dionísio foi introduzido na Grécia por Orfeu.
De Dionísio contam-se muitas façanhas. Aos habitantes do Egito ensinou a
agricultura e a arte de extrair o mel. Seus apelidos são inúmeros: Liber, “Livre”,
porque o vinho desembaraça o espírito; Évio, o que solta o grito evoé, grito
festivo com que se o evocava; Niseu, da cidade mítica de Nisa; Lieu, o
quebra-cuidados; Leneu, o deus do lagar; Nictélio, o noturno, já que suas
festas eram celebradas à noite; Brômio, o que faz ruídos. O nome Baco deriva de
uma palavra grega que significa “gritar”, alusão aos gritos frenéticos das
Bacantes e dos bêbados. Em Atenas, suas festas, as Dionisíacas, celebravam-se
oficialmente com grande pompa e esplendor. Consistiam as principais cerimônias
numa majestosa procissão na qual se levavam tirsos, vasos cheios de vinho,
coroas de pâmpanos, ramos e guirlandas de árvores e cepas de vinha. Virgens
chamadas Canéforas, as que conduzem cestos, soltavam, de açafates enfeitados, serpentes
domesticadas. No cortejo figuravam homens fantasiados de Silenos, de Pãs e de
Sátiros. Em Roma, celebravam-se as festas em honra de Baco, as Liberálias.[14]
Apolo e Dionísio, Dionísio e Apolo. Neles reside uma
outra dualidade que caracteriza o pensamento trágico. Em Apolo, a divinização
do princípio de individuação e de construção da aparência, da imagem plástica
que triunfa sobre o sofrimento do indivíduo pela glória radiosa que dele se
rodeia e assim apaga a dor. Em Dionísio, o regresso à unidade primitiva, uma
abolição do indivíduo e uma inserção no grande naufrágio e no ser original.
Dionísio reproduz a contradição como a dor da individuação, resolvendo-a num
prazer superior, fazendo-a participar da superabundância do ser único ou do
querer universal.
Apolo e Dionísio não se opõem como os termos de uma
con-tradição, mas como dois modos antitéticos de a resolver. Apolo,
mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dionísio, imediatamente, na
reprodução, no símbolo musical da vontade.
Assim, a tragédia é esta aliança admirável e precária
dominada por Dionísio. Na tragédia, Dionísio é o fundo trágico; o tema trágico
reside nos sofrimentos de Dionísio, sofrimentos de individuação mas
reabsorvidos no prazer de ser original. E o espectador trágico é o coro, coro
de vozes a cantar e a compor o palco da arte dramática grega antiga, o coro que
tem Dionísio como senhor e amo mas que se distende ao projetar para fora de si
um mundo de imagens apolíneas. A arte dramática em que consistia a Tragédia Grega
é a representação do fenômeno dionisíaco sob uma forma e num mundo apolíneo.[15]
Sócrates
Eis que na vida dos gregos haveria de existir Sócrates, o
novo opositor a Dionísio. Não é Apolo que se opõe ao trágico ou através de quem
o trágico morre, mas Sócrates, e este não é apolíneo nem dionisíaco, mas
teórico. Enquanto os instintos eram força afirmativa e criadora para os homens
produtivos de outrora, e a consciência era força crítica e negativa, em
Sócrates ocorre uma inversão: nele, é a consciência que se torna criativa e os
instintos, negativos. Sócrates torna-se o primeiro grande gênio da decadência
porque opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia, postula a vida como algo
que deve ser julgado, justificado, resgatado pela idéia. O que ele nos pede é que
sintamos a vida como que esmagada sob o peso do negativo e, assim, indigna de
ser desejada por si mesma, experienciada por si mesma. Sócrates, dessa forma,
marca o início do pensamento lucubrativo racional. Sócrates pensa deveras
racionalmente e dessa maneira se contorce em explicações fazendo uso da
palavra ou incentivando os seus próximos a assim procederem. A partir desse
momento, a partir do momento em que o homem passa a pensar dessa forma,
introduz-se nas coisas o bacilo da vingança.
Mas Sócrates, sendo como foi, parece não ter amado a
vida. Eis que nesse sentido ele se denuncia justo no momento de morrer, segundo
escreve seu discípulo Platão.[16] Eis que Sócrates, no momento de morrer,
depois de haver justificado aos amigos pesarosos o seu ato de não fugir e de
não reagir à condenação de beber cicuta, já tendo-a bebido e já sentindo o
torpor provocado pelo veneno, pede que se ofereça um galo a Esculápio por
aquele episódio. Sócrates estava querendo, com o galo, recompensar o deus da
cura pois, enfim, sentia-se curado. Curado da vida. Para Sócrates, vida é
doença, vida é mal que se cura com a morte. Eis Sócrates, o primeiro
racionalista.
Sócrates é o homem teórico, opositor do homem trágico. E
como homem teórico, Sócrates opunha o mundo das idéias ao mundo das aparências,
o mundo racional ao mundo da arte, o além-da-vida à vida.[17] E não terá sido
ali, no além-da-vida, que o homem do Ocidente passou a habitar depois de
Sócrates? Não foi ali que colocou o seu novo Deus?
Dionísio e o crucificado
À antítese Dionísio e Apolo, e à complementaridade
Dionísio e Ariadne, e à oposição Dionísio e Sócrates, substitui-se aqui a mais
significativa oposição: Dionísio e o Crucificado, Dionísio e Cristo, Dionísio e
o cristianismo.
Cristo, filho de Deus, Deus sob a forma de Homem que
morre na cruz para nos salvar; um deus mortal, eis aí o crucificado, um Deus
que redime os pecados do mundo, eis aí Cristo, Cristo Homem, Cristo Deus, Deus
Morto.
Tanto em Dionísio quanto em Cristo o mártir é o mesmo, a
paixão é a mesma, é o mesmo fenômeno que se dá, mas são dois os sentidos. Num,
a vida não tem justificação porque é essencialmente justa. No outro, a vida é
algo que deve ser justificado porque não é justa em sua essência. Dionísio
afirma a dor de viver e aceita a vida sem culpa, nele há uma exteriorização da
dor, afirmação de vida, uma embriaguez que é pura atividade, laceração,
transavaliação, renascimento, redespertar para a vida. No Cristianismo, a vida
é culpada na medida em que faz sofrer, a vida deve ser resgatada de sua
injustiça e salva pelo próprio sofrimento que causa, nele há uma
interiorização, negação, entorpecimento, convulsão, crucificação,
transubstanciação, ressurreição para a morte, com ele estão os que sofrem de um
empobrecimento de vida. Para Dionísio, a vida é santa por si própria e motivo
de afirmação, uma pura diferença afirmativa. Para o Cristianismo, a vida é o
caminho da santidade, reconciliação, negação dialética. Para o Cristianismo, a
vida é tristeza, má consciência; para Dionísio, alegria.
Da alegria e do Amor Fati
Alegria… E por que não lembrar aqui desses alegres e
brasileiros versos de nosso poetinha maior? ¾ e, deveras trágico.
É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe,
é assim como a luz no coração ¾ cantava o poeta ¾ mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, é
preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não … ¾ completava ele.[18]
Será necessário o gênio do pluralismo, o esforço e o
poder das metamorfoses, para fazer de tudo um objeto de afirmação. Eis aí a
essência do trágico: uma afirmação múltipla e pluralista, afirmação mesmo da
tristeza de viver, negatividade essa que se transmuta em positividade no canto
do poeta. Mas, poder-se-á tomar tudo o que existe por objeto de afirmação, quer
dizer, de alegria? Para tal, será necessário encontrar em cada coisa os meios
particulares pelos quais ela é afirmada, pelos quais deixa de ser negativa.
Assim, o que define o trágico é a alegria que resulta do múltiplo, a alegria
plural, que se afirma também na dor e na tristeza. Amor Fati, amor aos
múltiplos fatos do mundo.
Mas, deve-se cuidar de um aspecto importante: de que,
antes de aceitar dizendo sim a tudo indiscriminadamente, trata-se de afirmar:
afirmar a vida. Trata-se de um afirmar-aceitando-a, tanto quanto um
aceitar-afirmando-a. O dizer sim a tudo indiscriminadamente não é afirmar a
vida, isso é próprio do burro que zurra dizendo sim.
Mas mastigar e digerir qualquer coisa ¾ isso é próprio de porcos! Dizer sempre I-a ¾ aprendeu isto somente o burro e quem tem o seu espírito![19]
Muitas vezes, repetidas vezes, precisamos dizer um não,
um rotundo não, para afirmar a vida ¾ e como isso é difícil…
A forma estética assim designada é que o trágico é
alegria, lógica da afirmação múltipla que é própria do artista, do criador, do
criador de valores; e que implica também numa ética. Sonho anti-dialético e
anti-religioso. Sonho heróico. E o herói é alegre, o herói é leve e diáfano, o
herói dança, o herói joga, como Dionísio-herói que conduz ao céu Ariadne; as
pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas e sua constelação nasce como de um
lance de dados. Jogar é afirmar o acaso, é aceitar o lance de dados. Afirmar o
acaso é ser capaz de dar ao lance de dados, qualquer que seja o seu resultado,
um sentido positivo, alegre.
Um sentido positivo, alegre e afirmativo do acaso, um
exemplo que Nietzsche amava deveras, é assim como o canta a bela Carmen, la
Carmencita, flor de acácia entre os lábios, ao responder com estes
franceses versos aos jovens da praça que imploravam por seu amor e que
perguntavam se ela um dia os amaria.
Quand je vous
aimerai?
Ma foi, je ne sais pas.
Peut-être jamais, peut-être demain,
mais pas aujourd’hui, c’est certain.(…)
L’amour est enfant de Bohême,
il n’a jamais, jamais connu de loi;si tu ne m’aimes
pas, je t’aime;si je t’aime, preds
garde à toi!(…)
Prends garde à toi![20]
Do niilismo
O problema comum entre a ideologia cristã e o pensamento
trágico é o sentido da existência. Eis aí o problema supremo da filosofia, que
pode ser enunciado de outra forma: justiça. O que é a justiça? Será a justiça
obra de Deus? Mas que Deus? Deus morreu.
Nesta longa história, a do sentido da existência,
serviu-se do sofrimento como um meio para provar a injustiça da existência e ao
mesmo tempo para lhe encontrar uma justificação superior e divina. A existência
é culpada na medida em que sofre; mas porque sofre, expia e é resgatada. Mas é
Dionísio quem permite ver a armadilha que aí se esconde: fazer da existência um
fenômeno moral e religioso. O que está no fundo de tudo isso é uma maneira
sutil de depreciá-la, de torná-la passível de um juízo moral e sobretudo juízo
de Deus. A existência, aqui entendida como a vida, é um valor em si; ela não
pode ser julgada!
Nihil é uma palavra latina que
significa nada, coisa nenhuma. Dela deriva a palavra niilismo, que significa
aquilo que baseia-se sobre o nada, que valoriza o nada. Sim, porque em tudo
existe um valor, sendo o valor último, o valor dos valores, a própria vida.
Valorizar o nada, aquilo que é próprio do niilismo, significa não valorizar a
vida. E valorizar o nada está muito próximo do nada de valor.
Mas, o que é valorizar o nada? Significa não valorizar o
tudo, que é a vida. Assim, niilismo é valorizar o que está fora da vida. Niilismo
significa que os mais altos valores se depreciam, falta a meta, falta a
resposta ao porquê. O niilismo radical é a convicção da mais absoluta
insustentabilidade da existência.
Os que têm a vida como injusta, triste, pesada, grave; os
que não sabem dançar, cantar, poetar, e que vivem só a teorizar, a
racionalizar, a calcular; os da lógica fria e excludente em que A é igual a A e
o que não for A estará excluído; os que têm medo da vida e de sua lógica plural
do A, do B, do C, do D, e de todas as demais letras e signos do mundo,
podendo-se com eles montar toda e qualquer equação pois a vida assim o
permite; os que têm nojo da vida; os covardes; os que não amam a vida como ela
é; a esses só resta valorizar o que não está na vida, ou seja, valorizar o nada.
São os trasmundanos, os que vivem em busca dos trasmundos, para quem este mundo
não é digno e afigura-se como “obra de um Deus sofredor e atormentado”[21]; são os que
vivem a enfiar a cabeça na “areia das coisas celestes”, quando esta é para ser
trazida erguida e livre como cabeça terrena capaz de “criar o sentido da
terra”. Mas o que esperar de quem não ama a vida? Vingança. Vingança contra a
vida.
Por todo lado onde se procuraram responsabilidades, ou
seja, exigir de alguém uma resposta, foi o instinto de vingança que as
procurou. O instinto de vingança apoderou-se de tal maneira da humanidade, no
decorrer dos séculos, que toda a metafísica, a psicologia, a história e
sobretudo a moral dele ficaram impregnadas.
E eis que o niilismo apresenta aspectos, gradações.
Primeiro, o de um niilismo negativo, momento da consciência judaica e cristã.
Aqui, a idéia de Deus exprime a vontade de nada, a depreciação da vida. O
centro de gravidade da vida é colocado não na vida, mas no além, no nada.
Depois, o de um niilismo reativo, momento da consciência européia, o do homem
que mata Deus e se coloca, com culpa, em seu lugar. Finalmente, o de um
niilismo passivo, momento da consciência búdica. Aqui, trata-se de toda e
qualquer supressão da vontade. Não se trata mais de uma vontade de nada mas de
um nada de vontade.[22]
A morte de Deus, uma interpretação histórica
Segundo a história, é o Velho Deus Judaico que deixa o
Filho morrer, isto é, mata-O. Para quê? Para torná-lO independente de Si
próprio e do povo judaico. Em outras palavras, o povo judaico, ou melhor, a
consciência judaica mata Deus na pessoa do Filho e assim inventa um Novo Deus,
um Deus Universal que irá conquistar Roma e destronar os deuses gregos. A
consciência judaica, no Filho, inventa um Deus de amor que sofre com o ódio em
vez de encontrar no ódio as premissas e o seu princípio. Trata-se de um Deus,
na figura do Filho, independente das próprias premissas judaicas. Assim, o
judeu, ao matar Deus, encontrou o meio de fazer do seu Deus um Deus Para Todos,
um Deus Verdadeiramente Cosmopolita, e que irá vencer os deuses de Roma. Eis,
pois, que a Judéia vence Roma.
Assim, é o Velho Deus Judaico que verdadeiramente morre
nessa história. E o Filho refaz um Deus. No lugar do Pai do Antigo Testamento
que nos metia medo, agora está o Filho que exige apenas que Nele creiamos e que
O amemos, como Ele nos ama. Além disso, pede que nos tornemos reativos para
evitar o ódio.[23]
Na medida em que a vida reativa se estabelece, um
estranho resultado ocorre: somos nós culpados! Matamos Deus e nos colocamos em
seu lugar! A vontade de nada não tolera sequer Deus. Impede-o de ressuscitar,
senta-se sobre a tampa do túmulo e grita: sou Deus! Eis aí o homem-deus, não
mais o Deus-Homem, o homem europeu, o homem ocidental moderno e contemporâneo.
Eis aí o homem culpado por natureza, culpado em tudo. Eis que essa culpa se
interiorizou de tal modo em nós que nos sentimos culpados por viver. Não é
assim que nos fazem sentir desde criança?
Quanto a Cristo, o Jesus de Nazaré, este teria sido um
budista. O seu tipo pessoal, a “boa nova” que ele trazia apontava para a
supressão do pecado, vale dizer, a supressão da vontade, a ausência do
ressentimento e do espírito de vingança, a recusa de qualquer guerra, a
revelação de um reino do coração, e sobretudo a aceitação da morte. Jesus teria
sido um Buda num terreno pouco hindu. Jesus era dócil e doce, fornecia uma
nobreza ao niilismo passivo, ao nada de vontade, quando os homens de sua terra
estavam no niilismo negativo (vontade de nada), e quando já se alcançava o
niilismo reativo (culpa, má consciência, ressentimento).[24]
Terá sido trágica a morte de Cristo? Agora pode-se
compreender que não, segundo o sentido aqui dado ao trágico. Sobretudo porque
esta morte não aponta para a afirmação da alegria do Múltiplo; pelo contrário,
aponta para a negação pela tristeza do Mesmo.
Mas, quem mais poderá ser portador do pensamento trágico,
além de Dionísio?
Zaratustra
Zaratustra, que depois de gozar por dez anos do espírito
de solidão na montanha, falando ao sol, diz que, assim como a abelha satura-se
do mel juntado em demasia, aborreceu-se de sua sabedoria, e precisa de mãos
que para ele se estendam. Resolve, assim, descer da montanha[25] para ensinar
aos homem o além-do-homem ¾ o Übermensch ¾, o super-homem.
O homem é algo que deve ser superado ¾ dizia ele para os homens da cidade. Que fizestes para superá-lo? ¾ perguntava. O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem
¾ uma corda sobre um abismo. Perigosa
travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e
parar. O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode
ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles que não
sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam ¾ dizia ele.[26]
Vontade de sucumbir, eis a morte do homem.
Do homem superior e da superação
Zaratustra vê o homem superior sob dois aspectos:
simultaneamente como representante das forças reativas e de seu triunfo, e
representante da atividade genérica e do seu produto. É, pois, o homem
superior, a imagem pela qual o homem reativo se apresenta como superior, e se
deifica. É a imagem na qual aparece o produto da cultura. E o homem reativo, o
mais ignóbil dos homens, representa o niilismo reativo, momento da consciência
européia e que é também nossa consciência ocidental contemporânea. Nele está o
homem da grande lassidão, o profeta dos últimos dos homens que quer a morte mas
como uma extensão passiva, em um nada querer. Nele está a má consciência, o
falsário, o expiador do espírito, o demônio da melancolia que fabrica o seu
sofrimento para excitar a piedade, para espalhar o contágio. Nele está a
moralidade de costumes e nele, o produto da cultura enquanto ciência, o querer
a certeza e o apoderar-se da ciência e da cultura. Nele está o homem do mais
frio de todos os monstros frios: o Estado. Nele está o produto da cultura como
religião, mas nele, também, aquele que percorreu toda a espécie, dos ricos aos
pobres, procurando o reino dos céus e a felicidade na terra como recompensa,
mas também como produto da atividade humana, genérica e cultural.[27]
Será o homem essencialmente reativo? Como compreender o
devir histórico do homem da cultura, esse que nós somos? Terá sido o triunfo
das forças reativas essencial no homem e na história? Será o ressentimento, a
má consciência constituintes da humanidade do homem e o niilismo o conceito a
priori da história universal?
Vencer o niilismo, libertar o pensamento da má
consciência e do ressentimento significa superar o homem, destruir o homem. Mas
o que constitui o homem é um devir de forças em geral; não as forças reativas
em particular, mas o devir-reativo de todas as forças. É, pois, na sua essência
que o homem é dito a doença da pele da terra. Nesse sentido, há uma saúde
acerca da qual o genealogista-filósofo pressupõe um devir-doente. Pois existem
de fato forças ativas no homem, mas que constituem apenas o alimento de um
devir reativo. Assim é que Roma foi invertida pela Judéia, e a Renascença pela
Reforma. Está, pois, nos homens superiores o caráter ativo. Mas eles são
naturezas falhadas; são algo falso, pois seu projeto, em vez de formar um
devir-ativo, alimenta o devir inverso, o devir-reativo.
E Zaratustra fala em transmutar valores, converter a
negação em afirmação. Nunca a reação se tornará ação sem esta conversão mais
profunda: é necessário que em primeiro lugar a negação se torne poder de
afirmar. Assim, as condições que tornariam viável o projeto do homem superior
são condições que lhe mudariam a natureza: a afirmação dionisíaca, não a
atividade genérica do homem. O elemento da afirmação constitui o elemento do
sobre-humano. O elemento da afirmação é o que falta ao homem, mesmo e sobretudo
ao homem superior, pois há coisas que este homem não sabe fazer: rir, jogar e
dançar. Rir é afirmar a vida e, na vida, até o sofrimento. Jogar é afirmar o
acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é afirmar o devir e, do devir, o ser.
Mas, como vencer o niilismo? Como mudar o próprio
elemento dos valores, como colocar a afirmação no lugar da negação? O niilismo,
se vencido, será por si mesmo. Será, assim, a transmutação de valores que vence
o niilismo, a única forma completa e acabada do próprio niilismo.
Tardiamente é que temos a coragem de confessar o que sabemos
verdadeiramente. Que até o presente eu tenha sido fundamentalmente niilista,
foi há bem pouco tempo que confessei a mim mesmo[28]
Nietzsche viveu o niilismo em si mesmo e a experiência da
transmutação de valores o fez tornar-se o que é. Nietzsche viveu esta morte em
si mesmo, é o que ele nos diz. Morte para um passado doente e renascimento para
um estado de grande saúde.
O trágico por excelência
A morte do homem é uma passagem daquele que quer
sucumbir, sucumbir para o além-do-homem. Nesse sentido é que esse é um pensamento
trágico por excelência. Trágico porque afirmativo. Afirmativo do riso, do jogo
e da dança dos homens. Dionísio assim o confirma e Zaratustra assim o disse. Ou
melhor: Nietzsche-Zaratustra assim o disse. Ou melhor: Nietzsche, o filósofo
das marteladas.
Ao concluirmos estas considerações sobre o trágico, uma
indagação veio-nos à mente: haverá filosofia mais bela? Ao que, imediatamente,
uma outra nos surgiu como que a ampliar a constatação: haverá maneira de se
admirar uma filosofia que não pela sua beleza?
Admirar uma filosofia pela sua beleza talvez constitua-se
na única maneira que nos resta, depois da morte de Deus, de chegarmos à
filosofia. Amar a sabedoria tendo-a por linguagem bela e vã, linguagem de um
sujeito que se entrega e se dissolve no mundo. Não será isso que o maravilhoso
fenômeno do dionisíaco inspira a quem a ele se deu? Não terá sido a isso que
Foucault sensibilizou-se ao ler Nietzsche, antes de tudo, e ao voltar-se, desde
o início de sua obra, para a loucura trágica dos homens, a loucura que é
viver? E a preocupar-se com a história do Ocidente como história da repressão
ao trágico?