- RESUMO
- DEDICATÓRIA
- INTRODUÇÃO
- POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
- PRIMEIRA PARTE - O SOL NIETZSCHIANO
- Introdução
- CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO TRÁGICO
- O Nascimento da Tragédia
- O Eterno Retorno e a inocência
- Da imortalidade dos deuses: Apolo e Dionísio
- Sócrates
- Dionísio e o crucificado
- Da alegria e do Amor Fati
- Do niilismo
- A morte de Deus, uma interpretação histórica
- Zaratustra
- Do homem superior e da superação
- O trágico por excelência
- CAPÍTULO 2 A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO
- Pensamento, consciência e linguagem
- Linguagem, sentimento e moral
- Conhecimento e idéia
- Eu penso, eu quero
- Verdade e aparência
- As palavras e as idéias
- Uma bela doidice
- Um ato de autoridade
- A razão na filosofia
- CAPÍTULO 3 -A MORTE DE DEUS -
- Antecedentes
- Nietzsche e a morte de Deus
- A morte de Deus e o super-homem
- Duas alternativas
- O espírito de gravidade
- A morte do homem
- A permanência do vício antigo
- A morte da divindade
- Introdução
- CAPÍTULO 1 - O PROJETO ARQUEOLÓGICO
- Enraizamento na epistemologia
- O primeiro momento
- Uma arqueologia do olhar
- Uma arqueologia da ciências humanas
- Uma arqueologia do saber
- A démarche de Michel Foucault
- CAPÍTULO 2 - O PROJETO GENEALÓGICO
- O poder
- Genealogia e história
- CAPÍTULO 3 - MORTO DEUS, DE COMO PENSAR
- A marca da Modernidade
- O ser da filosofia moderna
- A Modernidade
- Ontologia de nós mesmos
- O trabalho filosófico
- TERCEIRA PARTE - A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM
- Introdução
- CAPÍTULO 1 - A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA
- Doença mental e personalidade
- A experiência trágica
- CAPÍTULO 2 -LINGUAGEM E LITERATURA
- Nietzsche, Freud, Marx
- O século XVI como referência
- Uma tarefa infinita
- A região perigosa
- Da natureza dos signos
- O visível e o dizível
- O ser da linguagem
- A conjunção linguagem, conhecimento e morte
- CAPÍTULO 3 - DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
- Da morte de Deus
- Da morte do homem
- CONCLUSÃO
- BIBLIOGRAFIA
- Foucault
- Sobre Foucault
- Nietzsche
- Sobre Nietzsche
- Outros
- NOTAS
CAPÍTULO 2 A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO
Nietzsche, por sua crítica ¾ crítica de filólogo e, como tal, de grande intimidade com as palavras e
seu poder de sedução ¾, é aqui visitado
no sentido de buscarmos um encadeamento e prepararmos uma compreensão do
Foucault, leitor de Nietzsche, em sua concepção da linguagem e, por essa via,
do conceito da supressão do sujeito ou, como queiram, da morte do homem.
Pensamento, consciência e linguagem
Voltado para o problema da consciência, ou mais
exatamente da consciência de si, Nietzsche observa que o mesmo só se apresenta
a nós quando compreendemos em que medida poderíamos dispensá-la, ou seja,
passar sem isso que chamamos consciência.[29] Pois, segundo nota, podemos muito bem
pensar, sentir, querer, lembrar, agir sem que tenhamos consciência disso. A
rigor, a vida inteira poderia decorrer sem que se visse no espelho da
consciência. Dessa forma, Nietzsche pergunta: “para que servirá a consciência
se para tudo que é essencial é supérflua?”[30] E, já como resposta, observa que a força
da consciência sempre lhe pareceu estar em relação com a faculdade de
comunicação e com a necessidade de comunicação de um indivíduo. A
consciência, assim, ter-se-ia desenvolvido tão-somente sob a pressão da
necessidade de comunicação, consistindo, em suma, numa rede homem-homem. Para
reforçar sua tese, observa que foi apenas enquanto tal que a consciência se viu
forçada a desenvolver-se. Consciência e comunicação desenvolveram-se
par-e-passo. O homem solitário e o animal de rapina poderiam dispensá-la.
Teria sido então pela terrível conseqüência de uma
necessidade que dominou longamente o homem ¾ pois este era o animal que corria mais perigos, tinha necessidade de
ajuda e proteção, tinha necessidade de seus semelhantes (necessitava exprimir
seus anseios, seus alarmes e seus socorros) ¾ que desenvolveu-se nele a “consciência”, pois precisava “saber” o que
lhe faltava, saber qual era sua disposição de espírito e o que pensava.
Para Nietzsche, o homem, como qualquer ser vivo, pensa
ininterruptamente mas não o sabe; o pensamento que se torna consciente é apenas
a menor parte, a parte pior e mais superficial ¾ pois esse pensamento só é consciente quando se efetua com palavras, em
signos de comunicação.
Palavras e signos de comunicação, eis a base da
linguagem, expressão da “consciência” do homem; o homem diz, fala, expressa
sob a forma de signos aquilo que lhe é consciente. Curiosamente, não é só a
linguagem assim constituída que serve de intermediária entre os homens, mas
também o olhar, a pressão, o gesto.
Mas a consciência das impressões de nossos sentidos, a
faculdade de podê-los fixar e determinar, aumentaram na medida em que crescia a
necessidade de comunicá-los aos outros através de signos. É, pois, o homem, ao
mesmo tempo inventor de signos e aquele que toma consciência de si mesmo e do
mundo; e isso se dá de modo cada vez mais agudo: animal social, o homem aprende
a tornar-se consciente de si mesmo.
Isso posto, torna-se perfeitamente plausível admitir que
a consciência não faz propriamente parte da existência individual do homem, mas
sim do que nele provém da natureza da comunidade e do rebanho e que,
conseqüentemente, não é desenvolvida de modo sutil senão relativamente à sua
utilidade para essa mesma comunidade e rebanho. A linguagem do homem é, assim, do
e para o rebanho, não propriamente a linguagem de si. “A
linguagem e os preconceitos em que se assenta colocam múltiplos obstáculos ao
aprofundamento dos fenômenos internos e dos instintos”.[31] É que isso que
lhe provém de fora acresce-se ao seu próprio pensamento pelo caráter próprio da
consciência, pelo que Nietzsche chama de “gênio da espécie” que o comanda e é retransmitido
na perspectiva sempre do rebanho. Isso ocorre de forma que, apesar de todos os
nossos atos serem no fundo incomparavelmente pessoais, únicos, desde que os
transcrevemos na consciência não mais parece que assim seja… É que
essa natureza da consciência quer que o mundo do qual podemos ter consciência
seja apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado e
vulgarizado, que, conseqüentemente, tudo que se torna consciência seja chão,
pequeno, generalização, signo, marca do rebanho. Dessa forma, assim que o
pensamento se torna consciência, produz-se uma grande corrupção fundamental,
uma falsificação, um achatamento, uma vulgarização, um empobrecimento desse
pensamento.
E esse pensamento, tornado consciência, torna-se palavra,
o instrumento de nossa comunicação. Ocorre que
Não nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas
vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se
quisessem. É que lhes falta a palavra. Quando temos palavras para algo, também
já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que
parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo.
Com a fala já se vulgariza o falante. ¾ De uma moral para surdos-mudos e outros filósofos.[32]
Linguagem, sentimento e moral
A linguagem por meio de signos é, pois, para Nietzsche,
uma via de comunicação pobre, restrita.
A linguagem não nos foi dada para comunicar nossos sentimentos,
percebe-se esse fato ao verificar que todos os homens simples têm vergonha de
procurar as palavras para suas emoções mais profundas: eles só as deixam
transparecer por meio de seus atos, enrubescendo ao ver que os outros lhes
percebem os motivos. Entre os poetas, a quem geralmente a divindade nega esse
pudor, nota-se, todavia, entre os mais nobres, um certo laconismo na linguagem
do sentimento, deixando transparecer algum embaraço: ao passo que os
verdadeiros sacerdotes do sentimento são freqüentemente, na vida prática, os
mais sem-vergonha.[33]
Para Nietzsche, a linguagem insiste e “continua a falar
em oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações”, muito
“embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de modo insuperável
a ‘nossa carne e nosso sangue’ chegue a nos distorcer as palavras na boca”. Não
será, pois, a “moral” que nos faz dizer o que ela quer, e não o que queremos?
Por acaso falamos o que queremos e o que sentimos? Se não, quem fala? Quem é o
“sujeito” desse falar? O que, por mim, fala?
Conhecimento e idéia
Referindo-se à questão do conhecimento, Nietzsche observa
que não dispomos propriamente de órgãos para o mesmo, para a “verdade”. Nós
simplesmente “sabemos” (ou pelo menos acreditamos saber, nós nos figuramos) até
o ponto em que pode ser útil ao rebanho humano, à espécie, sendo que mesmo a
“utilidade” não é afinal de contas mais que uma crença, produto da imaginação e
talvez essa “estupidez nefasta que um dia nos fará morrer”.
Para Nietzsche, o que está por trás do desejo de
conhecimento é o desejo de descobrir entre as coisas estranhas, inabituais,
incertas, algo que não nos inquiete mais ¾ será, pois, o medo, enquanto instinto, que nos leva a conhecer.[34]
Referindo-se às filosofias do idealismo[35], observa que
considerar o mundo como “conhecido” assim que nos conduza à “idéia” é ter na
“idéia” algo conhecido, habitual, algo do qual se tem muito menos medo. É que
as filosofias da “idéia” acreditam que aquilo que é conhecido pode ser mais
facilmente reconhecido que aquilo que é estranho ¾ trata-se de partir do “mundo interior” e dos “fatos da consciência”,
pois lá está o mundo que conhecemos. Conhecemos? Para Nietzsche, estamos aqui
diante de um grande equívoco, pois o que é tido por conhecido é o mais habitual
e o habitual é aquilo que há de mais difícil de reconhecer como problema, como
coisa desconhecida. O habitual é nossa interioridade, essa que é objeto da
psicologia e da crítica dos elementos da consciência enquanto ciência. O fato
da grande superioridade das chamadas “ciências naturais” (biologia, física,
química, etc…) em relação às ciências voltadas para nossa interioridade
(ciências humanas) consiste no fato de que aquelas tomam por objeto elementos
estranhos, ou seja, exteriores, ou ainda, não habituais. Essa superioridade
serve para demonstrar a dificuldade de conhecer o que é mais habitual, ou seja,
o interior.
Eu penso, eu quero
Quanto às crenças nas certezas imediatas como o “eu
penso” ou ainda o “eu quero”[36], Nietzsche observa que trata-se de pura
ingenuidade. Para ele, “certeza imediata”, “coisa-em-si” envolve uma contradictio
in adjeto [37] . Devemos nos livrar da sedução das
pala-vras, sugere ele. Pois, no caso de “eu penso”, como pode haver cer-teza
imediata? Onde está a fundamentação de que sou eu que pensa? Por que deve haver
necessariamente um algo que pensa? Por que pensar é atividade e efeito de um
ser que é pensado como causa? Existe um “Eu”? O que é pensar? Qual a diferença
entre pensar, sentir e querer?
Nietzsche conclui que a afirmação “eu penso” pressupõe uma comparação
com outros estados que de mim conheço para determinar o que é. Devido a essa
referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, este saber “eu penso” não
tem para mim, de todo modo, nenhuma “certeza” imediata. A rigor, para mim,
nenhum saber é imediatamente certo. Em mim, se algum saber há, ele terá sido
tão mediatizado por outros saberes, será tão fluido e instável, que a rigor
nunca poderei chamá-lo de “certo” e muito menos de “imediato”. No lugar dessa
“certeza imediata”, deparamo-nos com uma série de questões de metafísica;
questões de consciência para o intelecto, que são: de onde retiro o conceito de
pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de
um “Eu”, e até mesmo de um “Eu” como causa, e por fim de um “Eu” como causa de
pensamentos? Como posso dizer “eu penso” se um pensamento vem quando “ele” quer
e não quando “eu” quero? Assim, parece ser um falseamento da realidade efetiva
dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. O que ocorre aí é uma interpretação
do processo (pensar) e não o processo mesmo. O equívoco, segundo Nietzsche,
está em concluir pelo hábito gramatical de que “pensar é uma atividade, toda
atividade requer um agente, logo… “[38]
Verdade e aparência
Para Nietzsche, o caráter errôneo do mundo onde
acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode
apreender. Assim, não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais
valor do que a aparência.[39] A esse respeito, Nietzsche observa que se
quisesse abolir por inteiro o mundo “aparente”, também da “verdade” não
restaria nada. Nada nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre
“verdadeiro” e “falso”. Para Nietzsche, basta a suposição de graus de
aparência, e como que sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais
escuras ¾ diferentes valores, para usar a linguagem
dos pintores. Nesse sentido, ele nos pergunta: por que não poderia o mundo que nos
concerne ser uma ficção? Mas a ficção não requer um autor? Por quê? Esse
“requer” também não pertenceria à ficção? Por que não usar de alguma ironia com
relação ao sujeito, como em relação ao predicado e ao objeto? Por que o
filósofo não poderia erguer-se acima da credulidade da gramática? E Nietzsche
ironiza, lembrando que aprendemos a língua, a gramática ¾ e as ficções nela incorporadas ¾ com as babás, governantas e preceptoras (como era comum no seu tempo),
de modo que o filosofar tradicional estaria preso à “fé das governantas”. E,
mesmo pedindo todo o respeito àquelas respeitáveis profissionais, incita-nos a
abjurarmos dessa fé. Antigamente acreditava-se na “alma”[40], observa
Nietzsche, assim como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical:
dizia-se que “eu” penso é condição; “penso” é predicado e condicionado ¾ pensar é uma atividade para a qual um sujeito tem que ser
pensado como causa. Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de
admiração, enxergar uma saída nessa teia. E então Nietzsche pergunta se não
seria verdadeiro fazer o contrário: admitir o “penso” como condição e o “eu”
como condicionado ¾ o “eu” seria uma
síntese feita pelo próprio pensar.
As palavras e as idéias
Nietzsche salienta que a observação inexata que nos é
habitual tende a nos fazer tomar grupos de fenômenos como unidades e chamá-los
de fatos (ou acontecimentos). Ocorre também que entre um e outro fato
costuma-se representar um espaço vazio. Tendemos a isolar cada acontecimento ou
fato do mundo e vê-los de per-se. Mas, na realidade, o conjunto de
nossas atividades e de nosso conhecimento não é uma série de fatos com espaços
intermediários vazios, mas um fluxo contínuo, um devir. Nietzsche
exemplifica repudiando a crença no livre arbítrio que, para ele, é incompatível
com a concepção de um fluxo contínuo, homogêneo, comum, indivisível, porque
supõe que toda ação particular é isolada e indivisível; trata-se aqui de um atomismo
no domínio do querer e do saber, escreve. ¾ Da mesma forma que nós compreendemos inexatamente os caracteres,
fazemos o mesmo com os acontecimentos: nós falamos de caracteres idênticos, e
de fatos idênticos: entretanto, não existe nem um nem outro. E não seria demais
acrescentar que tudo é diverso no mundo, o mundo é constituído por
singularidades e diferenças.
Mas nós mesmos tendemos a isolar não somente o fato
particular mas também a eles agregamos os grupos de pretendidos fatos idênticos
(e a eles damos nomes, como por exemplo bondade, maldade, piedade, inveja,
etc…) São, porém, a palavra e a idéia o que, para Nietzsche, nos fazem crer
nesse isolamento de grupos de ações. Exemplificamos isso da seguinte maneira:
ao falarmos “cadeira”, atribuímos a essa palavra uma idéia que trazemos
conosco, idéia essa que ambiciona abarcar todas as cadeiras que existem; a
partir daí, julgamos deter a “verdade” do que é “cadeira”. Ledo engano,
Nietzsche nos diria a esse respeito, pois, a rigor, não existem duas cadeiras
iguais no mundo… Segundo ele, as palavras nos servem não somente para
designarmos as coisas ¾ ela nos fazem crer
que originariamente, por elas, nos assenhoreamos da “verdade”. Verdade? Mas que
verdade, se tudo é aparência? Mesmo as cadeiras da mais padronizada produção,
se repararmos bem, se nos aparecem cada uma de um jeito. Mesmo se tomarmos uma
única, se olharmos bem, veremos que muda de aparência de instante a instante. É
que estão sujeitas à ação do tempo, ou melhor, são, como todas as coisas, puro
devir.
As palavras e as idéias nos induzem, pois, a representar
constantemente as coisas como mais simples do que são, separadas umas das
outras, indivisíveis, tendo cada uma existência em si e por si. Assim é que
Nietzsche vai considerar que existe, oculta na linguagem, uma mitologia ¾ uma mitologia filosófica que a cada instante reaparece: a crença nos
fatos idênticos e nos fatos isolados. E será na linguagem que essa crença vai
encontrar um apóstolo e um advogado perpétuo.[41]
Perigo da linguagem para a liberdade do espírito ¾ cada palavra é uma presunção.[42]
Uma bela doidice
Mas será Zaratustra quem, ao cabo de sete dias sem comer
nem beber, convalescente, dirá essas belas e inspiradas palavras sobre a
linguagem para seus animais que o conclamavam a sair da caverna e ir ao
encontro do mundo:
Ó meus animais, continuais a tagarelar assim e deixai que vos escute.
Traz-me tamanho conforto ouvir-vos tagarelar; onde se tagarela, já o mundo é
ali, para mim, como um jardim. Como é agradável que existam palavras e sons;
não são, palavras e sons, arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente
separadas? Toda alma tem o seu mundo, diferentes dos outros; para toda alma,
qualquer outra alma é um trasmundo. É entre as mais semelhantes que mente
melhor a aparência; pois a brecha menor é a mais difícil de transpor. Para mim ¾ como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior! Mas esqueçamos
isso a cada palavra; como é agradável que o esqueçamos! Não foram as coisas
presenteadas com nomes e sons, para que o homem se recreie com elas? Falar é
uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas. Quão grata é
toda a fala e toda a mentira dos sons! Com sons dança o nosso amor com
coloridos arco-íris.[43]
Aqui, vemos Nietzsche colocar na boca de seu personagem,
Zaratustra, toda uma concepção do que é falar. Falar é uma bela doidice,
escreve ele. Falar é tagarelar, é dançar sobre todas as coisas, e essas coisas
estão em mim, fazem parte do meu mundo. Assim, não existe exterior, ou melhor:
exterior e interior são uma coisa só, constituem um mundo! E cada indivíduo tem
seu mundo, havendo entre os mais semelhantes a maior diferença. As minhas
palavras para as minhas coisas, esse é o meu mundo; as tuas palavras para as
tuas coisas, este é o teu mundo ¾ e como são diversos! Não há um mundo igual ao outro, muito embora
esqueçamos disso a cada palavra proferida, observa Nietzsche.
Um ato de autoridade
Mas, como se cunham os nomes e as palavras? Quem o faz?
Cunhar nomes para os valores é obra de quem cria valores ¾ que lhes importa a utilidade do rebanho! Este é um ato de autoridade.
Exemplificando, ao buscar a fonte do conceito “bom”, Nietzsche foi observar que
“foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e
pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja,
de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo,
vulgar, plebeu”.[44] Assim, para Nietzsche,
O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos
conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores:
eles dizem ‘isso é isto’, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como
que apropriando-se assim das coisas.[45]
Pesquisando sob o ponto de vista etimológico as
designações para a palavra “bom” cunhadas pelas diversas línguas, Nietzsche
descobre que todas elas remetem à mesma transformação conceitual ¾ que em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o
conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom” no sentido
de “espiritualmente nobre”, “aristocrático”, de “espiritualmente bem-nascido”,
“espiritualmente privilegiado”: um desenvolvimento que sempre corre paralelo
àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, transmutar-se finalmente em ruim.[46]
Assim, Nietzsche constata que, nas palavras e raízes que
designam o “bom”, “transparece ainda com freqüência a nuance cardeal pela qual
os nobres se sentiam homens de categoria superior”. São os “ricos”, “os
possuidores”, e também segundo um traço típico de caráter, “os verazes”. A
palavra criada para este fim pelos gregos antigos é esqlos (ésthlós), que significa segundo sua raiz, alguém que é, que tem
realidade, que é real, verdadeiro, nobre ¾ para diferenciar do homem comum, mentiroso.
Associar a linguagem ao poder dos senhores é, para
Nietzsche, associar as palavras ao poder de criação de valores, atributo dos
nobres, aqui entendidos como os de espírito superabundante, os ricos de
espírito. Quanto ao fraco, ao ressentido moralista, a este, já que não detém o
poder da criação, resta a distorção. Diante da linguagem, o que faz é
subvertê-la, torcê-la, inverter a equação de valores aristocrática
(bom=nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses). E assim o fazem, dizendo que os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos
são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os
únicos abençoados, que unicamente para eles há bem-aventurança ¾ mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os
maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também
eternamente os desventurados, malditos e danados![47]
Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que
primeiro e espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, é
o que acontece com o fraco ressentido. Esse, mirando-se no outro, diz: tu és
mau, logo eu sou bom. Assim, é “o ‘homem manso’, o incuravelmente medíocre e
insosso”,[48] é esse que faz crer como “verdade” que “o
sentido de toda cultura é amansar o homem, reduzí-lo a um animal manso e
civilizado, doméstico.”[49]
As ovelhas têm rancor das aves de rapina, Nietzsche
observa. Assim, elas dizem: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos
possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha ¾ este não deveria ser bom?” No que, as aves de rapina, em tom
zombeteiro, dirão para si: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo
contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”.
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um
querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se
expresse como força. Um quantum de força eqüivale a um mesmo quantum de
impulso, vontade, atividade ¾ melhor, nada mais
é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução
da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrificaram), a
qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um
‘sujeito’, é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo distingue o
corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome
corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões
da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse
livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não
existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção
acrescentada à ação ¾ a ação é tudo. [50]
A razão na filosofia
Sócrates, o pensador da Antigüidade, mestre de muitos
outros inclusive de Platão: Nietzsche observa que o mesmo fascinava, pois
parecia ser médico, um salvador. Mas nele havia um erro: a sua crença na
racionalidade a todo preço; Sócrates foi um mal-entendido; a inteira
“moral-da-melhoria”, também a cristã, foi um mal-entendido.
A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara,
fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos
era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença ¾ e de modo nenhum um caminho de retorno à “virtude”, à “saúde”, à
“felicidade”…Ter de combater os instintos ¾ eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica,
felicidade é igual a instinto. ¾ [51]
Para Nietzsche, hoje, na exata medida em que o preconceito
da razão nos coage a pôr unidade, identidade, duração, substância, causa,
coisidade, ser, vemo-nos enredados no erro, necessitados ao erro. Nesse
sentido, aqui temos a nossa linguagem como constante advogado.
Deixemos, por fim, nosso filósofo-filólogo
Nietzsche-Zaratustra falar longamente sobre a linguagem por esse texto de
Crepúsculo dos Ídolos que se segue ¾ ele é de muita beleza e resume e atinge a nossa questão central: a
morte de Deus.
A linguagem pertence, por sua origem, ao tempo da mais rudimentar forma
de psicologia: entramos em um grosseiro fetichismo, quando trazemos à
consciência as pressuposições fundamentais da metafísica da linguagem, ou, dito
em alemão, da razão. Essa vê por toda parte agente e ato: essa acredita em
vontade como causa em geral; essa acredita no “eu”, no eu como ser, no eu como
substância, e projeta a crença na substância-eu sobre todas as coisas ¾ somente com isso cria o conceito “coisa”… O ser é por toda parte
pensado-junto, introduzido sub-repticiamente; somente da concepção “eu” se
segue, como derivado, o conceito “ser”… No início está a grande fatalidade do
erro, de que a vontade é algo que faz efeito ¾ de que a vontade é uma faculdade… Hoje sabemos que é meramente uma
palavra… Muito mais tarde, em um mundo mil vezes mais esclarecido, a
segurança, a certeza subjetiva na manipulação das categorias da razão, chegou,
com surpresa, à consciência dos filósofos: concluíram que elas não poderiam
provir da empiria ¾ a empiria inteira,
mesmo, está em contradição com elas. De onde então provêm? ¾ E nas Índias como na Grécia se fez o igual equívoco: “É preciso que já
alguma vez tenhamos habitado um mundo superior (¾ em lugar de: um mundo inferior, o que teria sido a verdade!), é preciso
que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!…” De fato, nada até agora teve
uma mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser, tal como foi, por
exemplo, formulado pelos eleatas[52]: pois esse erro tem a seu favor cada
palavra, cada proposição que nós falamos! ¾ Até mesmo os adversários dos eleatas sucumbiram à sedução de seu
conceito-de-ser: Demócrito entre outros, quando inventou seu átomo… A “razão”
na linguagem: oh, que velha, enganadora personagem feminina! Temo que não nos
desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática…[53]
Eis a morte de Deus: desvencilharmo-nos dessa fé na
gramática, penetrarmos no ser da linguagem e indagarmos sobre um outro sentido
deste ser. Conforme iremos ver nos capítulos que se seguem, esta parece ser a
preocupação de Foucault.