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SEGUNDA PARTE – MICHEL
FOUCAULT, CRÍTICO DA RACIONALIDADE MODERNA

Introdução

A partir deste ponto, queremos repassar sobre a obra de
Michel Foucault para dar conta de que este, nitidamente influenciado pela
leitura interpretativa de Nietzsche, concentra-se numa crítica à modernidade,
assim como Nietzsche o fizera. Nietzsche, como vimos, vale-se da oposição do
pensamento trágico ao pensamento racional, da crítica à consciência e à
linguagem, bem como da constatação da morte de Deus e da morte do homem, para
pôr em questão a própria racionalidade moderna encarnada no último homem.
Foucault, num esforço para confirmar Nietzsche, desenvolve um trabalho original
em que parte do estudo das condições de possibilidade dos saberes do homem,
condições essas constituídas por regiões obscuras porém afins à ciência e, a
bem dizer, à racionalidade. A respeito desse trabalho, observa
Vera Portocarrero,

a
delimitação dos objetos tratados por Foucault (…) podemos compreender como
uma insurreição contra os poderes da “normalização” (…) Seu objetivo é saber
através de que jogos de verdade o homem se constitui historicamente como
experiência, quando se pensa a si mesmo, ao se perceber como louco, ao se olhar
como doente, ao se refletir como ser vivo que fala e que trabalha, ao se julgar
criminoso. Apesar de essencialmente histórica, sua abordagem é, conforme ele
mesmo frisa, filosófica e não deve ser confundida com a de um historiador[72]

Foucault desenvolveu um trabalho, como ele mesmo o
conceituou, que é um éthos, um caminho filosófico de crítica àquilo que
nós somos. Uma crítica ao último homem que nós somos? ¾ cabe pensar, reportando-nos a Nietzsche, este homem sem Deus, este
homem só com sua racionalidade. E este caminho de crítica foucaultiana é, a uma
vez, análise histórica dos limites que nos são postos, e indagação de uma
superação possível, num anseio, como o de Nietzsche, pela superação do homem.
Ocorre que a atitude filosófica de Foucault traduz-se em um rico trabalho de
pesquisa que comporta estudos diversos que convergem para o que ele chamava de
uma pesquisa arqueológica e para uma pesquisa genealógica, como
veremos a seguir.

Todavia, e isto queremos reafirmar, por todo o trabalho
de Foucault é possível perceber como que um desejo permanente: o de confirmar
Nietzsche, indo além, mesmo, do filósofo da morte de Deus e da morte do homem.

Particularmente na França, terra de grandes anseios e
inquietações, Nietzsche foi muito utilizado. Segundo Le Rider[73], muito embora
desde o início assim não tivesse sido, o pensamento do alemão Friedrich Wilhelm
Nietzsche (1844-1900) findou por ter na França grande acolhida. No começo, no
tempo de O Nascimento da Tragédia (1872), a França, evidentemente, nada
conhecia de Nietzsche. A época apresentava-se dominada pela guerra de 1870
entre França e Alemanha e o jovem Nietzsche, futuro admirador de Baudelaire e
de Carmen de Bizet, era então um patriota cheio de desconfiança com
relação à França moderna, e francamente hostil aos socialistas e aos
republicanos franceses.

A primeira fase de introdução de Nietzsche na França deu-se
no período de 1890 a 1933. Segundo Le Rider, essa fase “parece marcada por
afinidades intelectuais algumas vezes não percebidas ou não confessadas entre
os leitores franceses e o filósofo alemão”. Ressalta que, nessa época, os
franceses pareciam particularmente sensíveis a tudo que, vindo de Nietzsche,
tocava na questão da “alma alemã” e de sua expressão literária e especulativa.
Segundo Le Rider, “os franceses dessa época se regalavam com a verve anti-alemã
de Nietzsche e de sua estética anti-wagneriana, reconhecendo-se freqüentemente
em sua crítica toda baudelairiana da modernidade ou na pureza e elegância de
seus escritos polêmicos e de seus aforismos”.

Mas, observa Le Rider, eis que nos anos 20 e 30 Nietzsche
já não é mais novidade, situando-se entre os clássicos do pensamento alemão.
Assim é que, em 1932, Albert Camus, ainda estudante de dezenove anos em Argel,
demonstra conhecer Nietzsche parafraseando O Nascimento da Tragédia e,
em particular, a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco no seu Ensaio
sobre a música
.

No fim dos anos trinta e durante os anos da Segunda
Guerra Mundial produz-se um segundo momento francês de Nietzsche que tem por
principal representante Georges Bataille. Le Rider observa que esse momento é,
todavia, rapidamente ultrapassado pelo terceiro momento francês de Nietzsche
que começa nos anos sessenta, particularmente no colóquio de Royaumont de julho
de 1964, dedicado a Nietzsche. Esse colóquio conta, dentre outros, com Pierre
Klossowski e Gilles Deleuze e também com Michel Foucault que apresenta trabalho
intitulado Nietzsche, Freud e Marx. Na base da discussão de Foucault
está a questão da linguagem.

Um filósofo interessado em psicologia, eis como, no
início da década de 50, era definido o perfil do professor procurado pela universidade
de Lille. Será Michel Foucault quem irá preencher os requisitos do cargo,
nomeado assistente de psicologia em outubro de 1952. Segundo nos indica Eribon[74], o novo professor dará suas
aulas na faculdade de letras onde “ensina psicologia e sua história, explicando
teorias, passando em revista autores, falando de psicopatologia, das Gestalt,
dos testes de Rorschach, etc, (…) demora-se sobre Freud, (…) demora-se
também no estudo da ‘psiquiatria existencial’ e nos trabalhos de Kuhn e
Biswanger (…) e conclui suas exposições anuais lembrando os fisiologistas
soviéticos que trabalham na linha de Pavlov”.[75]

Antes de ser nomeado para Lille, Foucault já lecionava
psicologia na École Normale Supérieure. Eribon observa que seu curso era
muito bem acolhido e muito procurado, sendo que as pessoas a ele acorriam como
se fossem a um espetáculo. É dessa época o livro Maladie mentale et
personalité
(Doença mental e personalidade).

Um filósofo interessado em psicologia? ¾ bem
mais do que isso parece revelar-se Foucault. Seu trabalho revela um interesse
que transcende a própria ciência, pois vê nela uma forma essencial de
crueldade.

Eribon, em sua pesquisa biográfica, observa que Foucault
veio a interessar-se por Nietzsche no início dos anos 50, época em que fazia parte
do Partido Comunista[76].
Sobre essa época, em entrevistas posteriores, Foucault observou que o seu
sentimento era de perceber como intolerável um futuro profissional do tipo
burguês e de decepção com relação à sociedade da qual fazia parte, a sociedade francesa
que “admitira o nazismo, que se prostituíra com ele, e depois passara em bloco
para De Gaulle”[77]

Eribon sugere que Foucault teria se interessado por
Nietzsche “afastando-se das formas tradicionais da filosofia que a seu ver o
hegelianismo e a fenomenologia representavam”. A esse respeito, cita uma
entrevista dada por Foucault em 1978 em que a certa altura responde:

Para
muitos de nós, jovens intelectuais, o interesse por Nietzsche ou por Bataille
não representava uma forma de se afastar do marxismo ou do comunismo. Ao
contrário, era a única via de comunicação e de passagem para o que
acreditávamos dever esperar do comunismo. Essa exigência de recusa total do
mundo em que devíamos viver evidentemente não era satisfeita pela filosofia
hegeliana. Por outro lado, procurávamos outras vias intelectuais para chegar
justamente lá, onde parecia que ganhava corpo ou existia uma coisa muito
diferente: quer dizer, o comunismo. Foi assim que, sem bem conhecer Marx,
recusando o hegelianismo, sentindo-me mal com os limites do existencialismo,
decidi aderir ao partido comunista. Estávamos em 1950: nessa época ser
“comunista nietzschiano”! Uma coisa no limite do vivível e, se quiser, talvez
um pouco ridícula: eu sabia disso.[78]

De qualquer forma, é considerando testemunhas da época
que Eribon aponta o ano de 1953 como aquele em que Nietzsche assume influência
determinante sobre Foucault. Nietzsche, o louco.

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