“O que é metafísica”, porta de entrada ao
pensamento de Martin Heidegger
Ricardo Ernesto Rose Jornalista e Licenciado em
Filosofia
A obra de Martin Heidegger desenvolve-se em um contexto de
reformulação da filosofia, especificamente da metafísica. Esta já vinha
sofrendo críticas com o positivismo (na realidade desde a crítica kantiana), a
filosofia de Nietzsche e a fenomenologia, entre outras correntes de pensamento.
A própria evolução das ciências – principalmente da física teórica – também
exerceu uma influência sobre o desenvolvimento da filosofia entre o final do
século XIX e início do século XX. Freud, na psicologia, Max Planck e Einstein,
na física, reformularam a visão de nós mesmos e do mundo. É nesse contexto que
se desenvolve a formação acadêmica e a práxis filosófica de Heidegger.
Bastante influenciado pela religião – especialmente o catolicismo – no início
de sua carreira universitária, escreve sua tese de habilitação ao ensino
universitário sobre Duns Scotus, em 1916 (“A doutrina das categorias e do
significado em Duns Scotus”).
O grande problema na filosofia de Heidegger é a questão do ser.
Escreve Heidegger no primeiro capítulo de sua obra máxima “Ser e tempo”: “E não
é só isso: no solo da arrancada grega para interpretar o ser formou-se um dogma
que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do ser, como lhe
sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais vazio.
Como tal, resiste a toda a tentativa de definição”. (Heidegger, 2009, p. 37).
O texto “Que é metafísica” é uma aula inaugural dada na
Universidade de Friburgo em 1929, onde Heidegger assumiria uma cátedra de
professor regular. O público desta palestra era constituído pelo corpo docente
e discente daquela universidade. Por esta época, Heidegger já havia lançado
“Ser e tempo” (1927) obra que havia provocado uma série de mal entendidos,
entre grande parte do público leitor de filosofia. Segundo muitos, “Heidegger
era promotor do niilismo, da filosofia do sentimento, da angústia e da
covardia, do irracionalismo que combatia a validez da lógica" (conforme
Ernildo Stein no Prefácio a “Que é metafísica”, 1989, p. 28).
Consciente de que seu público na palestra é formado em grande
parte por cientistas e estudantes de ciências (mais entusiastas ainda que seus
mestres!), e que este tipo de crítica à sua obra está pairando no ar, Heidegger
decide fazer uma analítica da existência científica, e a partir dela responder
à pergunta sobre o que é metafísica. O filósofo, no entanto, não tenta definir
o que é metafísica.
A sua preleção “Que é metafísica”, Heidegger já inicia afirmando à
sua audiência que não falará sobre metafísica. Iniciando sua apresentação,
tenta definir o universo de atuação da atividade científica. Heidegger escreve:
“Se quisermos apoderar-nos expressamente da existência científica, assim
esclarecida, então devemos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o próprio ente
– e nada mais.
Aquilo de onde
todo o comportamento recebe sua orientação é o próprio ente – e além dele nada.
Aquilo com que a
discussão investigadora acontece na irrupção é o próprio ente – e além dele
nada.” (ibidem, p. 37). Conclui sua argumentação dizendo que a ciência nada
quer saber do nada, que rejeita o nada, o qual para ela não existe.
Mais à frente, Heidegger afirma que “o nada é a negação da
totalidade do ente, o absolutamente não-ente” (Ibidem, p. 37). Continuando sua
preleção, o filósofo diz que é através do tédio que se manifesta o ente, e da
angústia é que se apresenta o nada. A argumentação seguinte é que somente na
angústia do nada é que surge a compreensão do fato de que “o ente é” e não
“nada”. O ser-aí do homem encontra-se assim “suspenso dentro do nada”. Esta
questão, a pergunta pelo nada, é tão importante para Heidegger, porque
compreende a totalidade da metafísica. Além disso, “a questão do nada põe a nós
mesmos – que perguntamos – em questão. Ela é uma questão metafísica” (Ibidem,
p. 44). Ao final de sua palestra, Heidegger praticamente sintetiza o programa
de sua filosofia, nas seguintes palavras: “A filosofia somente se põe em
movimento por um peculiar salto da própria existência nas suas possibilidades
fundamentais do ser-aí, em sua totalidade. Para este salto são decisivos:
primeiro, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos
ídolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e
por último, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que
constantemente retorne à questão fundamental da metafísica que domina o próprio
nada: por que existe afinal ente e não antes Nada?” (Ibidem p. 44).
Para discorrer sobre as objeções feitas à obra de Heidegger e às
respostas dadas por este, era necessária uma curta introdução ao tema da obra
“Que é metafísica”, como dissemos no tópico anterior. O posfácio à “Que é
metafísica” foi escrito pelo próprio filósofo em 1943, como tentativa de
esclarecer como é preciso ler e compreender o texto. Portanto, o posfácio, pelo
fato de ter sido escrito quatorze anos depois da preleção original, e tentar
explicar aos leitores o que o autor pretendia dizer com o texto original,
mostra que a obra “Que é metafísica” tinha uma importância excepcional para o
próprio Heidegger. Tanto assim, que ele mesmo pede que o leitor o considere (o
posfácio) um “prefácio mais originário”.
Heidegger inicia o posfácio falando das interpretações que o
pensar sobre a metafísica suscita. O filósofo está ciente de que seu texto (a
preleção inicial, “Que é metafísica”) levantou muitas dificuldades de
compreensão e muitas questões, mas enfatiza a necessidade de se perguntar. As
dificuldades do texto, escreve Heidegger, são de duas espécies: “Umas surgem
dos enigmas que se ocultam no âmbito do que aqui é pensado. As outras se
originam da incapacidade e também, muitas vezes, da má vontade para pensar.”
(Ibidem, p. 48). O autor resume as “objeções e falsas opiniões” sobre a obra em
questão, em três pontos principais:
- “1 – a preleção
transforma o “nada” em único objeto da metafísica. Entretanto, porque o nada é
absolutamente nadificante, leva este pensamento à opinião de que tudo é nada,
de tal maneira que não vale a pena, quer viver, quer morrer. Uma “filosofia do
nada” é um acabado niilismo” (Ibidem, p.48). Com referência a este ponto,
responde Heidegger que se trata de uma opinião apressada, superficial, que
transforma o conceito de nada em absoluto nadificador, igualando-o ao que não
tem substância. Contrariamente a esta posição, devemos tentar experimentar no
nada a “amplidão daquilo que garante a todo o ente (a possibilidade de) de
ser”. - “2 – a preleção eleva a disposição de humor isolada e ainda por
cima deprimente, a angústia, ao privilégio de única disposição de humor
fundamental. Entretanto, porque a angústia é o estado de ânimo do “medroso” e
covarde, renega este pensamento a confiante atitude de coragem. Uma filosofia
da angústia paralisa a vontade para ação;” (Ibidem, p.48). Em relação a esta
crítica, Heidegger argumenta que neste caso a angústia não é um sentimento de
medo ou temor. Ao contrário, trata-se de uma disposição de realizar o supremo
apelo do homem; descobrir que o ente é. Com isto, nesta disposição para a
angústia, o homem atinge a misteriosa possibilidade da experiência do ser. - “3 – a preleção
toma posição contra a “lógica”. Entretanto, porque o entendimento contém os
padrões de todo o cálculo e ordem, este pensamento transfere o juízo sobre a
verdade para a aleatória disposição de humor. Uma “filosofia do puro
sentimento” põe em perigo o pensamento “exato” e a segurança do agir.” (Ibidem,
p.48). Com relação a esta crítica, Heidegger afirma que seu pensamento não se
limita a apenas a lógica matemática, baseada apenas em raciocínios de somar dos
cálculos. Não se trata apenas de pensamentos de cálculo “com o ente sobre o
ente”, mas do pensamento que se “dissipa no ser pela verdade do ser” (Ibidem,
p.50).
Ao final do posfácio, Heidegger adiciona ao seu texto um ponto de
vista que ainda não havia aparecido do texto original do “Que é metafísica”,
associando a visão do filósofo à visão do poeta. “O pensador diz o ser. O poeta
nomeia o sagrado.” Esta afirmação – caso constasse da apresentação feita na
universidade de Freiburgo – provavelmente teria trazido mais críticas ainda,
dizendo que além de ser niilista, angustiante e ilógico, a análise de Heidegger
seria também por demais literária, longe do rigorismo filosófico convencional.
A obra “Que é
metafísica”, embora curta, contém o cerne do pensamento de Heidegger, pelo
menos no que se refere ao problema do ser e da função da metafísica. O próprio
autor deve ter considerado a preleção um documento básico em sua obra, já que
vários anos depois ainda se preocupou em escrever um posfácio ao trabalho. O
estudo deste curto mas difícil texto pode ser considerado a porta de entrada
para o restante da obra de Heidegger.
Bibliografia
- ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 p. FLEISCHER, Margot.
Org. Filósofos do século XX. São Leopoldo. Editora Unisinos: 2006, 334
p. - HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis.
Editora Vozes: 2009, 598 p. HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. Col. Os
pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1989, 241 p. REALE, Giovanni; ANTISERI,
Dario, História da Filosofia – Vol III. São Paulo. Paulus Editora: 1990,
1.113 p.
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