– Crês, talvez, – obtemperou Cícero, – que te interrogo sobre
direito?
Metelo Nepote, disputando contra ele, repetiu-lhe várias vezes:
– Cícero, quem é teu pai?
– Graças à tua mãe, – redarguiu Cícero, – ficas mais embaraçado
do que eu para responder a semelhante pergunta.
Ora, a mãe de Nepote não possuía boa reputação. Quanto a
Nepote, era de caráter leviano: enquanto foi tribuno, abandonou, de
repente, suas funções para ir encontrar Pompeu na Síria. Depois,
retornou a Roma, mais loucamente ainda. Quando morreu Filagro, seu
preceptor, ele, fez-lhe um magnífico enterro e colocou sobre seu
túmulo um corvo de mármore.
– Não podias fazer melhor, – comentou Cícero, pois teu preceptor
te ensinou mais a voar do que a falar.
Marco Ápio, havendo dito, no exórdio de um discurso, que o
amigo que ele defendia o tinha conjurado a trazer à causa exatidão,
raciocínio e boa fé, disse Cícero:
– Como tens o coração tão duro para nada fazeres de tudo quanto
te pediu teu amigo?
XXVII. Sem dúvida, é uma das qualidades do orador saber lançar, contra
inimigos ou contra a parte adversa, brocardos amargos e mordazes.
Cícero, porém, que os prodigalizava ao acaso, unicamente para fazer rir,
tornou-se odiado, por isso, de uma porção de gente. Citarei alguns
exemplos. Marco Aquílio tinha dois dos seus genros banidos. Cícero
lhe chamava Adrasto 37. Lúcio Cota, que amava com vigor o vinho,
era censor, quando Cícero se candidatou ao consulado. Tendo sentido
sede no dia da eleição, Cícero, de pé, entre os amigos que o rodeavam,
falou:
– Fazeis bem em ter medo que o censor se volte contra mim ao me
ver bebendo água.
Encontrando-se na rua com Voconio, que levava três filhas em
sua companhia, todas extremamente feias, gritou em voz alta:
– Esse homem ficou pai a despeito de Febo!
38
Marco Gélio, que passava por ter nascido em condição servil,
certa vez lia cartas diante do Senado, com uma voz muito forte e muito
clara.
– Não vos maravilheis, – bradou Cícero, – pois ele outrora foi apregoador.
Fausto, filho de Sila, o que havia possuído em Roma a autoridade
soberana e havia levado à proscrição grande número de cidadãos,
tendo dissipado a maior parte da sua fortuna e encontrando-se cheio
de dívidas, anunciou a cessão de todos os seus bens aos seus
credores.
– Prefiro os seus anúncios, – disse Cícero, – aos do seu pai.
XXVIII. Atraiu, assim, muitos ódios. Quanto à inimizade que lhe
votaram Clódio e seus partidários, eis aqui o motivo que a gerou.
Clódio, jovem romano de nobre nascimento, mas insolente e
audacioso, amava Pompéia, mulher de César. Certa vez, introduziu-se
secretamente na casa de César, disfarçado em músico, pois as mulheres
aí celebravam um sacrifício misterioso do qual são excluídos os
homens. Não havia um só homem na casa, mas Clódio, adolescente
ainda, e completamente imberbe, esperou que pudesse se misturar com
as mulheres até chegar ao pé de Pompéia, sem ser reconhecido. Tendo
entrado de noite em uma casa assim tão grande, perdeu-se. E
caminhava de um lado para outro, quando foi encontrado por uma das
escravas de Aurélia, mãe de César, que lhe perguntou seu nome.
Forçado a responder, disse que procurava uma das aias de Pompéia
chamada Abra. Reconhecendo a escrava que tal voz não era uma voz
feminina, chamou aos gritos as mulheres: estas fecharam as portas,
revistaram tudo e encontraram Clódio no quarto da moça com a qual
entrara. O ruído que causou esse acontecimento obrigou César a
repudiar Pompéia e a intentar contra Clódio um processo por
impiedade.
XXIX. Cícero era amigo de Clódio e, no processo de Catilina, Clódio o
auxiliara com grande dedicação e havia sido como uma espécie de
guarda da sua pessoa. Clódio, em resposta
à
acusação, asseverou que
naquele dia não se encontrava em Roma, estivera no campo, bem longe
da cidade. Mas Cícero depôs dizendo que Clódio tinha ido naquele dia
à sua casa tratar de um negócio, o que era verdade. De resto, Cícero
prestou esse depoimento menos para atestar a verdade do que para
curar as suspeitas de Terência, sua mulher. Terência odiava Clódio,
por causa de sua irmã Clódia, que ela supunha ter querido desposar
Cícero e se servir, para negociar esse casamento, de um certo Túlio,
íntimo amigo e familiar de Cícero. Túlio ia todos os dias à casa de
Clódia e lhe fazia assiduamente a corte, sendo a casa de Clódia vizinha
da de
Cícero. Terência suspeitava, pois, dos seus desígnios. Era, aliás, uma
mulher de um caráter complicado. E, como dominasse Cícero, animou-o
a pôr-se em oposição a Clódio e a depor contra ele. Vários cidadãos
distintos depuseram também contra Clódio e o acusaram de perjuro, de
ter cometido gatunices, de ter corrompido o povo a peso de dinheiro e
de haver seduzido várias mulheres. Lúcido levou escravas que
atestaram haver Clódio mantido comércio incestuoso com a mais jovem
das suas irmãs, sendo ela mulher de Lúculo. Era crença geral, aliás, que
Clódio havia desonrado suas duas outras irmãs, das quais uma,
Terência 39, havia desposado Márcio Rex e a outra, Clódia, Metelo Celer.
Davam a Clódia o apelido de Quadrantaria, porque um dos seus
amantes lhe enviava, numa bolsa, pequenas moedas de cobre, em lugar
de moedas de prata. Ora, os romanos chamam quadrans à menor das
suas moedas de cobre. O que mais difamou Clódio em Roma foi o
incesto com Clódia. Entretanto, o povo não se mostrou satisfeito com
os que se haviam ligado contra Clódio, na carga dos seus depoimentos.
Os juízes temeram que se usasse de violência e guarneceram o tribunal
de gente armada. Quase todos, ao escreverem a sua opinião nos
caderninhos, só traçavam letras confusas 40. Pareceu, contudo, que
os votos absolutórios estavam em maioria. Correu o boato de que os
juízes haviam sido corrompido a peso de dinheiro. Também Catulo, ao
encontrá-los assim, falou:
– Tivestes razão de pedir guardas para vossa segurança, com
medo de que arrebatassem o vosso dinheiro.
Clódio vangloriou-se com Cícero de que o seu testemunho não
havia merecido a fé dos juízes.
– Ao contrário, – respondeu Cícero, – vinte e cinco deles
acreditaram em mim, e este é o número dos que te condenaram; e trinta
não te quiseram crer, e estes só te absolveram depois de terem
recebido o teu dinheiro.
César, chamado como testemunha contra Clódio, negou-se a
depor.
– Minha mulher, – asseverou, – não cometeu adultério. Eu a
repudiei porque a mulher de César deve estar isenta não somente das
ações vergonhosas, mas ainda de toda e qualquer suspeita.
XXX. Clódio escapou a esse perigo e, nomeado tribuno do povo,
começou logo a perseguir Cícero. Opôs-lhe tantos embaraços quantos
lhe foi possível e levantou contra ele toda espécie de gente. Por meio
de leis populares, ganhou o favor da multidão e conseguiu outorgar a
cada um dos dois cônsules províncias consideráveis: Pison teve a
Macedônia e Gabínio a Síria. Fazia passar medidas políticas com a
ajuda de uma multidão de indigentes e tinha sempre ao pé da sua
pessoa um contingente de escravos armados. Dos três homens que
gozavam, então, de mais autoridade em Roma, Crasso era o inimigo
declarado de Cícero; Pompeu fazia valer seu prestígio com um e com
outro; e César estava a ponto de partir para a Gália com o seu exército.
Cícero procurou insinuar-se junto a César, se bem que César nunca
tivesse sido seu amigo e o houvesse considerado suspeito desde a
conspiração de Catilina. Rogou-lhe, pois, que o levasse consigo, na
qualidade de seu lugar-tenente. César aceitou o seu pedido e Clódio,
vendo que Cícero ia escapar ao seu poder de tribuno, aparentou querer
reconciliar-se com ele. Era de Terência, dizia ele de quem se queixava
quase que unicamente; quanto a Cícero, não falava mais dele senão
com as palavras mais doces e mais honestas. Afirmava que não lhe
queria mal absolutamente e não alimentava contra ele nenhum rancor.
Não lhe fazia senão leves censuras e, assim mesmo, num tom todo
amigável. Conseguiu, dessa forma, dissipar todos os receios de Cícero,
que agradeceu a César a nomeação de lugar-tenente e voltou a se
ocupar com a gestão dos negócios públicos.
César, ofendido com essa atitude, apoiou Clódio nos
seus desejos e apartou completamente de Cícero o espírito de Pompeu
e declarou, diante do povo, que Cícero lhe parecia haver ferido a justiça
e as leis, fazendo executar Lêntulo e Cetego sem nenhuma formalidade
legal. Era, sob esse aspecto, que intentava a acusação contra Cícero e
era a respeito desse fato que o intimava a responder. Cícero, para
conjurar o perigo e escapar à perseguição dos seus inimigos, tomou a
toga de luto, deixou crescer os cabelos e a barba e saiu por toda parte a
suplicar ao povo o voto em seu favor. Clódio saiu no seu encalço,
seguido de um grupo de homens violentos e audaciosos, que troçaram
de Cícero pela sua mudança de traje e pelo seu ar abatido. Fizeram-lhe
mil ultrajes, chegando mesmo ao ponto de lhe atirarem lama e pedras,
com o fim de impedir que fizesse as suas solicitações ao povo.
XXXI. Entretanto, a
ordem equestre quase toda tomou luto, como Cícero, e mais de vinte mil
jovens o acompanharam, de cabelos crescidos, solicitando, com ele o
favor do povo. O Senado reuniu-se para decretar que o povo mudasse
de trajes, como num luto público. Os cônsules, porém, se opuseram a
esse decreto, e Clódio, foi sitiar o lugar do conselho com seus
homens armados, e maior parte dos senadores saiu soltando fortes
gritos e rasgando suas togas. Mas, esse triste espetáculo não inspirava
nem compaixão nem vergonha na alma dos inimigos de Cícero. Era
necessário que Cícero se exilasse ou que decidisse pelas armas a sua
querela com Clódio. Cícero pediu ajuda de Pompeu, que se afastara
propositadamente e se encontrava no campo, na sua casa de Alba.
Cícero lhe enviou primeiramente Pison, seu genro, depois foi ele
próprio. Prevenido da sua chegada, Pompeu não quis o encontro.
Estava envergonhado da sua conduta para com um homem que se
havia empenhado por ele em tão grandes lutas e lhe tinha prestado tão
notáveis serviços políticos. Mas Pompeu era genro de César. Sacrificou
às exigências de seu sogro uma velhíssima amizade e saiu da sua casa
por uma porta dos fundos. Evitou, assim, a entrevista.
Cícero, sentindo-se traído por Pompeu e abandonado de todo
mundo, recorreu aos cônsules. Gabínio sempre se mostrou seu
desafeto, mas Pison falou com mansidão e o aconselhou a retirar-se, a
ceder por algum tempo aos impulsos de Clódio, a suportar
pacientemente esse revés da fortuna e se considerar ainda, pela
segunda vez, o salvador da sua pátria agitada, a esse tempo, por
sedições funestas. Cícero procurou seus amigos para orientar-se nesse
sentido. Lúculo foi de opinião que ele ficasse, assegurando-lhe que
triunfaria dos seus inimigos. Os outros, porém, o aconselharam a que
se exilasse voluntariamente por algum tempo, crentes como estavam de
que o povo, uma vez satisfeito dos furores e das loucuras de Clódio,
não tardaria a lastimá-lo. Cícero aceitou este último alvitre. Possuía,
desde muito tempo, em sua casa, uma estátua de Minerva, que ele
cultuava com especial devoção. Tomou-a e a levou ao Capitólio 41, onde
consagrou-lhe esta inscrição: A Minerva, protetora de Roma. Depois,
fez-se acompanhar de alguns amigos, saiu da cidade por volta da meia-noite e seguiu por terra a estrada de Lucânia, procurando o rumo da
Sicília.
XXXII.
Assim que se espalhou a notícia da fuga de Cícero, Clódio baixou
contra ele um decreto de banimento, e mandou afixar uma ordem em
que era proibido dar-lhe água e fogo, e recebê-lo em casa a uma
distância de quinhentas milhas da Itália. O respeito, porém, que Cícero
infundia foi bastante para que esta última medida fosse desprezada.
Por toda parte, teve ele uma acolhida solícita e era acompanhado com
demonstração da mais viva consideração. Somente em Hiponium,
cidade da Lucânia, chamada hoje Vibone, o siciliano Víbio, a quem
Cícero havia dado várias provas de amizade, e que tinha sido, durante
o seu consulado, o intendente dos operários, não o recebeu em sua
casa e lhe pediu que se retirasse da sua terra. E Caio Virgílio, pretor da
Sicília, que devia grandes obrigações a Cícero, escreveu-lhe,
pedindolhe que não fosse à Sicília. Lacerado com essa ingratidão,
seguiu para Brindis, onde embarcou para Dirráquium, levando vento
favorável. Como, porém, durante o dia, soprasse um vento contrário,
Cícero aportou de novo à Itália. Imediatamente retomou a rota
marítima; e, ao chegar a Dirráquium, quase prestes a desembarcar,
registrou-se, afirma-se, um tremor de terra e ao mesmo tempo um súbito
refluxo das aguas. Os áugures conjeturaram sobre esse prodígio,
assegurando que o seu exílio não seria de longa duração; que essas
espécies de sinais pressagiavam uma mudança favorável.
Em Dirráquium, ele foi visitado por uma multidão que lhe
testemunhou vivo interesse, e as cidades gregas disputavam entre si
qual prestaria a Cícero maiores homenagens. Ninguém, porém,
conseguiu insuflar-lhe coragem nem dissipar-lhe a tristeza. Semelhante
a um amante infeliz, voltava, sem cessar, os seus olhares para a Itália.
Humilhado, abatido pelo seu infortúnio, mostrou várias vezes
fraqueza e pusilanimidade, o que não se podia esperar de um homem
que passara a sua vida mergulhado no estudo. Assim, por mais de uma
vez, pedira aos seus amigos que não lhe chamassem orador, mas
filósofo.
– Eu me acho ligado à filosofia, – costumava dizer, – como ao fim
de todas as minhas ações, e a eloqüência não é para mim senão o
instrumento da minha política.
A opinião não tem senão o poder bastante para apagar da nossa
alma as impressões da razão, como uma tintura que não penetrou
profundamente, e os homens de Estado, à força de lidar com o povo,
acabam por se impregnar das paixões vulgares, a menos que velem por
si próprios com uma atenção ininterrupta. É preciso estar,
exteriormente, em contacto com os negócios, mas não com as paixões
que determinam os negócios.
XXXIII. Clódio, depois de ter banido Cícero, incendiou as suas casas de
campo e a sua habitação em Roma, em cujo local mandou edificar o
templo da Liberdade. Pôs em leilão os seus bens e todos os dias os
fazia apregoar, sem que se
apresentasse um só comprador. Tornando-se, pelas suas violências,
temível a todos os nobres, pois dispunha do povo, que ele deixava
abandonar-se a todos os excessos da licença e da audácia, ameaçou
levantar-se contra Pompeu e censurou algumas medidas que tomara
quando no comando dos exércitos. Pompeu, cuja reputação era alvo
de ataques, lamentou-se de haver abandonado Cícero. E mudou de
idéia. Ligou-se com seus amigos para conseguir a volta do orador.
Clódio resistiu a esses esforços, mas o Senado decretou que ficaria
suspensa a ação de todos os negócios públicos, até que fosse
decretada a volta de Cícero. Sob o consulado de Lêntulo, a sedição
avançara tanto, que houve tribunos do povo feridos em praça pública.
Quinto, irmão de Cícero, foi abandonado como morto entre muitos
outros. A lembrança desses excessos começou a sossegar o povo; e o
tribuno Ânio Milon foi o primeiro a arrastar Clódio à barra do tribunal,
para responder por violências cometidas. A maioria do povo e dos
habitantes das cidades vizinhas se aliou a Pompeu que, seguro de tal
ajuda, expulsou Clódio da praça pública
e convocou os cidadãos para nova eleição. Jamais, afirma-se, decreto
algum foi baixado pelo povo com tanta unanimidade. O Senado
rivalizou em zelo com o povo e deliberou que se enviassem
agradecimentos a todas as cidades que haviam acolhido Cícero no seu
exílio e que a sua casa de Roma, com as suas habitações de campo
incendiadas por Clódio, fossem reconstruídas a expensas do tesouro
público.