Vida de Licurgo, por Plutarco – Vidas Paralelas

SUMÁRIO
DA VIDA DE LICURGO

I. Diversidade de opiniões sobre o tempo em que
Licurgo viveu. II. Sua origem. III. Sobe
ao trono da Lacedemônia e em seguida torna-se tutor do rei Carilau, seu
sobrinho. IV. Viagens. VII. Regresso. VIII. Vai a Delfos. IX. Leis que dá à
Lacedemônia. Criação do Senado. XI. Autoridade dos éforos. XII. Partilha das terras. XIII. Abolição
da moeda de ouro e de prata. Estabelecimento da moeda de ferro. XV. Ordenança das refeições públicas. Descontentamento dos ricos sobre essa
ordenança. XVI. Alcandro fura a Licurgo um olho e se torna
seu amigo. XVII. Leis e vantagens das refeições públicas. XXIII. Regulamento para as construções. XXIV. Ordenança
militar. XXV. Casamentos das mulheres, educação das
filhas. XXXII. Educação dos moços. XXXIX. Réplicas prontas e vivas dos Lacedemônios e de Licurgo. XLIII.
Divertimentos, canções. XLV. Música. XLVL Ornamentação nos dias de batalha. LI.
Vida militar. LII. Exclusão das artes mecânicas, que são abandonadas aos
Hilotas. LIII. Nenhum processo. Regozijos contínuos. LIV. O deus Riso
reverenciado por Licurgo. LV. Leis para a eleição dos senadores- LVI.
Regulamentos para os funerais, para o luto. LVII. Para as viagens a países
estrangeiros e para os estrangeiros. LVIII. Observação sobre as leis de
Licurgo. LX. Faz os Lacedemônios jurarem a observação e parte para Delfos LXI. Suas leis estão em vigor durante cinco séculos. LXII. Corrupção das leis, desde
que o rei Agis introduziu o ouro e a prata. LXIII. Vantagens das leis
lacedemônias. LXVI. Honras divinas prestadas a Licurgo após sua morte.

Cerca
do ano 884 antes de Jesus Cristo;

LICURGO
por Plutarco
Capítulo de Vidas Paralelas

Tradução brasileira de Aristides da Silva Lobo conforme a edição francesa de 1818. Notas de Brotier, Vauvilliere e Clavier.

Fonte: Ed. Das Américas.

Nada absolutamente se poderia dizer de
Licurgo, que estabeleceu as leis dos Lacedemônios, em que não haja sempre alguma diversidade entre
os historiadores, pois que, tanto de sua raça e do seu afastamento do país,
como de sua morte e mesmo das leis e da forma de governo que instituiu, quase
todos escreveram diferentemente. Mas, menos ainda do que em qualquer outra
coisa se acordam eles sobre o tempo no qual viveu: porque uns, entre os quais o
filósofo Aristóteles, querem que ele tenha sido do tempo de ífito e que este o
tenha ajudado a ordenar a suspensão de armas que se guarda durante a festa dos
jogos olímpicos: em testemunho do que alegam a placa de cobre (1) lançada nos
ditos jogos, sobre a qual está ainda hoje gravado o nome de Licurgo. Ao
contrário, os que contam os tempos pela sucessão dos reis da Lacedemônia, como
fazem Eratóstenes e Apolodoro, o colocam muitos anos antes da primeira
olimpíada (2); e Timeu suspeita que haja dois desse nome em diversos tempos, mas que,
tendo sido um mais renomeado do que o outro, atribuíram-lhe os feitos de ambos, e que o mais antigo não
tenha existido muito tempo depois de Homero; e ainda há os que querem dizer que
ele o viu. Xenofonte mesmo nos dá bem que pensar seja ele muito antigo, quando
diz que foi do tempo dos Heráclidas, isto é, dos próximos descendentes de
Hércules; pois não é verossímil que tenha querido referir-se indiferentemente
aos descendentes de Hércules, porque os últimos reis de Esparta foram tanto de
sua raça quanto os primeiros; assim, deve ter~se referido àqueles que foram,
sem interregno, do tempo mesmo de Hércules. Todavia, ainda que haja tanta
diversidade entre os historiadores, não deixaremos por isso de recolher e pôr
por escrito o que sobre ele se acha nas antigas histórias, elegendo as coisas
em que houver menos contradição ou que tiverem mais graves e mais aprovados
testemunhos.

(1)             Disco
usado nos jogos de arremesso.
(2)             A primeira Olimpíada remonta o ano 776 antes de Jesus Cristo.    

I. Pois
logo de início o poeta Simônides
diz que seu pai foi chamado Prítanis, não Êunomo; e a maior parte escreve de
outro modo a genealogia tanto do próprio Licurgo como de Êunomo, dizendo que
Pátrocles, filho de Aristodemo, gerou Sous, de Sous nasceu Euritião, do qual
Prítanis foi filho, de Prítanis nasceu Êunomo, de Êunomo Polidectes, que ele
teve de sua primeira mulher, e de sua segunda, cujo nome era Dianasse, nasceu
Licurgo; "todavia," Eutíquides, que é outro historiador, o põe sexto em uma linha direta após Poíidectes e undécimo após Hércules. Mas, entre
todos os seus antepassados, o mais famoso foi Sous, do tempo em que os da
cidade de Esparta subjugaram os Hilotas, que fizeram escravos, e aumentaram e
alargaram várias terras que conquistaram aos Árcades. E dizem que, estando ele
próprio um dia muito estreitamente assediado pelos Clitórios, em lugar áspero
onde não havia água, mandou oferecer-lhes a entrega de todas as terras que
conquistassem, desde que ele e toda a sua companhia bebessem numa fonte assaz
próxima dali. Os Clitórios concordaram e o acordo foi assim jurado entre eles.
Fêz pois reunir seus homens e declarou-lhes que, se houvesse algum deles que
quisesse abster-se de beber, ele lhe cederia e daria a realeza: não houve em
toda a tropa quem pudesse deixar de fazê-lo de tal maneira estavam premidos
pela sede; antes beberam todos cientemente, exceto ele, que foi o último a
descer e não fêz outra coisa senão apenas refrescar-se e molhar-se um pouco por
fora, em presença dos próprios inimigos, sem beber sequer uma gota: de modo que
não quis depois entregar as terras, como prometera, alegando que nem todos
tinham bebido.

II. Mas,
ainda que por seus feitos tenha sido muito estimado, o fato é que sua casa não foi chamada por seu nome,
antes pelo de seu filho Euritião, pois era denominada a casa dos Euritiônides:
o que se explica por haver sido seu filho Euritião o, primeiro que desejando agradar e contentar o povo,
relaxou um pouco o duro e absoluto poder dos reis. Essa indulgência deu mais tarde origem a uma desordem e
grande dissolução, que durou longamente na cidade de Esparta, porquanto o povo,
sentindo a rédea frouxa, tornou-se audacioso; e, por isso, alguns dos reis
sucessores foram odiados de morte, por haverem querido manter à força a antiga
autoridade sobre o povo; os outros, para ganharem as boas graças da plebe, ou
porque não se sentissem bastante fortes, foram constrangidos a dissimular. O
que de tal modo aumentou a audácia e a insolência do povo que o próprio pai de
Licurgo, que era rei, foi morto em consequência: pois, querendo um dia apartar
alguns que se engalfinhavam, recebeu um golpe de faca de cozinha, do que
morreu, deixando o reino ao filho primogénito, Polidectes, o qual morreu logo
depois sem herdeiros; de maneira que todos estimavam que Licurgo devia ser rei,
como também o foi, até que se conheceu que a mulher de seu irmão tinha ficado
grávida: logo que ele o percebeu, declarou que o reino pertencia ao filho que
nascesse, se fosse homem; e depois administrou o reino como tutor do rei
somente. Os Lacedemônios chamam Pródicos aos tutores de seus réis que ficam
órfãos em tenra idade. Mas a viúva de seu irmão mandou dizer-lhe que, se ele
prometesse desposá-la quando fosse rei, ela trataria de abortar para perder o
fruto que tinha no ventre. Licurgo ficou horrorizado com a perversidade e má índole
dessa mulher, mas não rejeitou em palavras a oferta que lhe fazia, fingindo
mesmo que ficara satisfeito e a aceitava; mas lhe mandou dizer que. não era
necessário, por meio de beberagens ou medicinas, desimpedir-se antes do tempo,
porque, assim procedendo, poderia prejudicar e pôr em perigo a si mesma, mas
era preciso somente ter paciência até dar à luz: pois então ele encontraria
meio de se desfazer da criança que nascesse.

III. Assim
entreteve com tal linguagem aquela mulher, até ao tempo do parto, e, logo que percebeu que ela
estava prestes a dar à luz, enviou guardas para assistirem ao transe, aos quais
recomendou que, se nascesse uma filha, a deixassem entre as mãos das mulheres,
e, se fosse filho, o levassem incontinenti a qualquer lugar onde ele se
encontrasse e fosse qual fosse o negócio que tivesse. Assim aconteceu que ela
deu à luz um filho, mais ou menos à hora do jantar, quando ele estava à mesa
com os, oficiais da cidade, e entraram seus servidores na sala e lhe
apresentaram o menino, que ele tomou nos braços, dizendo aos assistentes: «Eis
um rei que nos acaba de nascer, senhores Espartanos.» Dizendo essas palavras,
deitou-o no lugar do rei e deu-lhe o nome de Carilau, que equivale a dizer
alegria do povo, porque viu todos os assistentes muito alegres, louvando e abençoando
sua magnânima probidade e justiça. Dessa forma, embora não tendo sido rei senão
durante somente oito meses ao todo, era tão reverenciado
c estimado como homem de bem pelos cidadãos que havia mais os que lhe obedeciam voluntariamente por sua virtude
do que porque ele fosse tutor do. rei, e não porque tivesse autoridade real nas
mãos; todavia, alguns havia que o invejavam e tratavam de impedir-lhe o
crescimento quando era jovem, mesmo os parentes, amigos e aliados da mãe do
rei, a qual estimavam ter sido desprezada e desonrada por ele; de maneira que
um irmão dela, chamado; Leônidas, entrando um dia audaciosamente a proferir
grosseiras palavras contra ele, não hesitou em lhe dizer: «Bem sei que por um
destes dias serás com certeza rei», querendo torná-lo suspeito e preveni-lo por
essa caluniosa presunção, a fim de que, se acaso o pequeno rei viesse a falecer
em idade pupilar, acreditassem que ele o tinha feito morrer secretamente. A própria
mãe ia também espalhando semelhantes rumores, os quais por fim o desgostaram
tanto, com o medo que o dominava pela incerteza do futuro, que resolveu
abandonar o país, para evitar com sua ausência a suspeita que pudessem ter
sobre ele; e assim foi errando pelo mundo, até que o sobrinho gerou um filho
que o sucederia no reino.

IV. Tendo
pois partido com tal intenção,
dirigiu-se primeiramente a Cândia, onde observou e considerou diligentemente a
forma de viver e governar a coisa pública que era ali seguida, visitando e
conferenciando com os homens de bem e mais conceituados do lugar. Assim
encontrou algumas leis que
lhe pareceram boas e delas fez um extrato, com a deliberação de levá-las para seu país e delas servir-se no
futuro; também achou outra de que não íèz conta. Ora havia entre outros
um personagem considerado prudente e muito entendido em matéria de estado e de
governo, e se chamava Tales (3): ao qual Licurgo fez tantas súplicas, também
pela amizade contraída com ele, que o persuadiu a seguir para Esparta. Esse
Tales tinha fama de ser poeta lírico e dessa arte usava o título; mas, de fato,
ele fazia tudo o que poderiam fazer os melhores e mais suficientes governadores
e reformadores do mundo, pois todos os seus trabalhos eram belas canções nas
quais pregava e admoestava o povo a viver sob a obediência das íeis, em união
e concórdia uns com os outros, sendo as palavras acompanhadas de cantos, gestos
e acentos plenos de doçura e gravidade, que secretamente edulcoravam os
corações endurecidos dos ouvintes e os induziam a amar as coisas honestas,
desviando-os das sedições, inimizades e divisões então reinantes; de tal
maneira que se pode dizer ter sido ele quem preparou para Licurgo a via pela
qual este mais tarde conduziu e encaminhou os Lacedemõnios à razão.

(3)   Tales,
poeta lírico é bem diferente de
Tales, um dos lete Sábios da Grécia,
nascido duzentos anos depois de Licurgo.

V. Ao
partir de Cândia, seguiu para a
Ásia, querendo, como dizem, pela comparação da maneira de viver e da polícia
dos Candíotas (então austera e estreita) com as superfluidades e delícias Jônicas, considerar a diferença que
havia entre os respectivos costumes e governos: nem mais nem menos que um
médico que, para melhor conhecer os corpos sãos e nítidos, os comparasse aos
gastos e tarados. É verossímil que ali tenha ele visto pela primeira vez a
poesia de Homero entre as mãos dos herdeiros e sucessores de Cleófilo (4); e,
achando nela o fruto da instrução política, não menor que o prazer da ficção
poética, copiou-a diligentemente e reuniu-a num corpo para levá-la à Grécia.
Verdade é que havia já alguma notícia da poesia de Homero entre os Gregos, mas
era muito pouco: alguns particulares, aqui e acolá, possuíam dela peças
descosidas, sem ordem nem sequência alguma e foi Licurgo quem mais a fez vir à
luz nas mãos dos homens.

VI. Dizem
os Egípcios que ele esteve também
em seu país e que, tendo achado entre outras ordenanças aquela, singular, de
que os homens de guerra são ali em tudo e por tudo separados do resto do povo,
transportou-a para Esparta, onde, pondo à parte os mercadores, artesãos e gente
de ofício, estabeleceu uma coisa pública verdadeiramente nobre, nítida e
gentil. Os historiadores do Egito, e ainda alguns Gregos, assim o dizem. Mas,
quanto ao mais, que ele tenha estado na África e na Espanha, e até nas índias,
para ali ter comunicação com os sábios do
país que se chamam ginosofistas,
eu não sei de ninguém que o tenha escrito, senão Aristóteles, filho de Hiparco
(5).

(4)   
É preciso ler Creófilo, segundo Estrabão, liv. XIVr página 946. C.
(5)   Acrescente-se, conforme ao
grego, de Esparta. C.

VII. Mas
os Lacedemônios o lamentaram
muito quando partiu e, por várias vezes, mandaram pedir que voltasse, estimando
que seus reis não tinham senão a honra e o nome de reis tão-somente, sem outra
qualidade que o fizesse aparecer acima do popular comum; e que ele, ao
contrário, nascerá para comandar, tendo por natureza a graça e a eficácia de
atrair os homens a voluntariamente lhe obedecerem; e os próprios reis não se
desgostavam com sua volta, porque esperavam que sua presença refreasse e
contivesse um pouco o povo, que não seria tão insolente para com eles. Eis
porque, reportando-se a essa opinião e afeição de cada um para com ele, logo
que chegou, pôs-se a remodelar todo o governo da coisa pública e mudar
inteiramente toda a polícia, estimando que fazer somente algumas leis é ordenanças
particulares não serviria de nada, do mesmo modo que a um corpo inteiramente
gasto e cheio de toda sorte de moléstias, nada aproveitaria prescrever-se
alguma ligeira medicina que não lhe desse ordem de purgar, resolver e consumir
primeiramente lodos os maus humores, para depois lhe dar nova forma e regra de
vida.

VIII. Tendo
pois tomado essa resolução em seu
entendimento, seguiu antes de toda obra para a cidade de Delfos, onde, após haver sacrificado a Apolo, perguntou-lhe dos seus
negócios e obteve aquele tão renomeado oráculo pelo qual a profetisa Pítia lhe
chama Amado dos deuses, e deus antes que homem; e, em suma, quanto ao pedido da
graça de poder estabelecer boas leis no país, ela lhe respondeu que Apolo lha
outorgaria e que ele ordenaria a melhor e mais perfeita forma de coisa pública
que existiu em todo o mundo. Essa resposta encorajou-o ainda mais, de maneira
que começou a descobrir-se a alguns dos principais da cidade e a pedir-lhes e
exortá-los secretamente a ajudá-lo, dirigindo-se primeiramente aos que sabia
serem seus amigos aos poucos e conquistando sempre alguns outros, que se
juntavam à sua empresa. Depois, quando a oportunidade chegou, mandou buscar na
praça, certa manhã, trinta dos primeiros homens da cidade, armados, para
amedrontarem e conterem aqueles que tivessem vontade de opor-se ao que se havia
proposto fazer. O historiador Hermipo cita vinte dos mais aparentes; mas aquele
dentre todos os outros que mais o assistiu em todas as coisas, e mais o ajudou
a estabelecer suas leis, foi o chamado Aritmíadas. Ora, ao começar o.
movimento, o rei Carilau, pensando que fosse uma conjuração contra sua pessoa,
ficou tão apavorado que se refugiou no templo de Juno sobrenomeado Calcieco,
isto é, templo de bronze; todavia, depois, quando se lhe deu a conhecer a
verdade, ele se assegurou, saiu do templo e favoreceu a empresa, sendo homem de boa e doce natureza, como
testemunha o que Arquelau, que era na mesma época outro rei da Lacedemònia, respondeu a alguns que
em sua presença o louvavam, dizendo que era boa pessoa: «E como (6) não seria
bom, disse ele, quando não saberia ser mau nem para os próprios maus?»

IX. Houve, nessa modificação do estado promovida por Licurgo, muitas novidades,
mas a primeira e maior foi a instituição do Senado, o qual, misturado com o
poder dos reis e igualado a eles quanto à autoridade nas coisas de
consequência, foi, como diz Platão, um contrapeso salutar no corpo universal da
coisa pública: a qual antes estava sempre em abalo, pendendo ora para a
tirania, quando os reis tinham demasiado poder, ora para a confusão popular,
quando o povo comum vinha usurpar aí autoridade demais. E Licurgo pôs entre
ambos esse conselho dos senadores, que foi como forte barreira mantendo as duas
extremidades em igual balança e dando pé firme e seguro ao estado da coisa
pública, porque os vinte e oito senadores que formavam o corpo do Senado se
enfileiravam às vezes ao lado dos reis, tanto quanto necessário para resistir à
temeridade popular e, também, ao contrário, fortificavam às vezes a parte do
povo contra a dos reis, para impedir que estes usurpassem um poder tirânico. E diz Aristóteles que ele estabeleceu esse número
de vinte e oito senadores porque, dos trinta que inicialmente haviam
empreendido remodelar o governo com ele, houve dois que por medo abandonaram a
empresa; todavia Esfero escreve que, desde o começo, nunca houve mais de vinte
e oito que participassem da conspiração. E porventura teria ele também
considerado que era um número completo, visto como se compõe de sete
multiplicado por quatro, sendo alem disso o primeiro número perfeito, depois do
seis, que iguala todas as suas partes reunidas e recolhidas em conjunto. Mas,
quanto a mim, minha opinião é que escolheu aquele número, de preferência a
outro, a fim de que o corpo inteiro do conselho fosse de trinta pessoas ao
todo, ajuntando aí os dois reis. E teve Licurgo, assim, grande cautela no bem
estabelecer e autorizar tal conselho, que lhe fora anunciado por um oráculo do
templo de Apolo, na cidade de Delfos, Esse oráculo se chama ainda hoje Retra,
como quem dissesse o decreto, e dele é a seguinte sentença: «Depois (7) que
tiveres edificado um templo a Júpiter Silaniano e a Minerva Silaniana, e
dividido o povo em linhagens, estabelecerás um Senado de trinta conselheiros,
inclusive os dois reis; e reunirás o povo, segundo as ocorrências dos tempos,
na praça que está entre a ponte e o rio de Gnácion, onde os senadores proporão as matérias e deixarão as assembléias, sem que ao
povo seja permitido arengar.» Naquele tempo, as assembleias do povo se
realizavam entre dois rios (8), pois não havia sala para reunir o grande
conselho, nem praça que fosse de outro modo embelezada nem ornada, porque
Licurgo estimava que isso de nada serviria para bem deliberar e escolher bom
conselho, e sim para prejudicar, porque comumente faz que os homens, que em
tais lugares se reúnem para deliberar acerca de negócios, sonhem com coisas
vãs, desviando seus entendimentos no considerar estátuas ou quadros e pinturas
que ordinariamente se colocam para embelezar tais lugares públicos; ou, se é um
teatro, olhar para a cena, isto é, o lugar onde se representam as peças;
ou, se é uma grande sala, a contemplar os lambris ou a abóbada que fôr
engenhosamente trabalhada e suntuosamente enriquecida por alguma bela
manufatura.

(6)   Esse
trecho se acha citado em duas outras passagens
Ur Plutarco:  no livro cia Diferença
entre o Amigo e o Enganador e naquele Da Inveja e do ódio.   Lê-se aí como seria bom,
quando não saberia, etc; e é assim que é preciso ler, omitindo a negação.
(7) Toda essa passagem está alterada e truncada. Vide as. Observações, cap. IX
(8)   Entre o Eurotas e o Gnácion, pequeno rio que se lança no Eurotas,
perto de Esparta.

X. Quando
todo o povo estava reunido em conselho, não era permitido, a quem o quisesse, propor e
apresentar matérias para deliberar, nem emitir opinião; tinha antes o povo
autoridade somente para aprovar e confirmar, se bem lhe parecesse, o que fora
proposto pelos senadores ou pelos reis; mas depois, como o povo fosse
frequentemente forçando ou desviando as proposições do Senado, tirando-lhes ou acrescentando alguma coisa, os
reis, Poiidoro e Teopo.mpo, ajuntaram ao teor do supracitado oráculo que, quando o povo quisesse de algum
modo alterar às opiniões propostas ao conselho pelo Senado, seria permitido aos
reis e aos senadores abandonar o conselho e anular o referido decreto, como
tendo alterado, dissimulado e modificado para pior as sentenças e proposições
apresentadas pelo Senado. Esses dois reis persuadiram semelhantemente o povo de
que esse acessório, do mesmo modo que o principal, vinha do oráculo de Apolo,
assim como disso faz menção o poeta Tirteu, na passagem em que diz:

Pelo Deifico oráculo sagrado

Tinha-lhes Pítia ainda
acrescentado:
Os reis, aos quais pertence por dever
O bem de Esparta amável
promover,
Serão os chefes e moderadores

Do conselho, assim como os senadores;

Sempre de acorde, a massa popular

Deverá limitar-se a confirmar.

XI. Tendo
pois Licurgo assim temperado a forma da coisa pública, pareceu contudo, aos que vieram depois dele,
que esse pequeno número de trinta pessoas que formavam o Senado era ainda
poderoso demais e possuía demasiada autoridade; de modo que, para mantê-los um
pouco sob as rédeas, de-ram-lhes, como diz Platão, um freio que foi o poder e
a autoridade dos éforos, que
equivale a dizer controladores, os quais foram criados cerca de cento e trinta
anos após a morte de Licurgo (9); e foi o primeiro eleito o chamado Elato, do
tempo em que reinava o rei Teopompo, cuja mulher o censurou um dia, furiosa,
por haver ele deixado aos sucessores o reino menor, que não recebera dos
predecessores, ao que ele respondeu: «Mas será tanto maior quanto mais
duradouro e mais seguro.» Pois também em verdade, perdendo o poder demasiado
absoluto que lhes causava a inveja e o ódio dos cidadãos, escaparam ao perigo
de sofrerem o que os vizinhos Argivos e Messenianos fizeram a seus reis, por
não haverem querido relaxar nem ceder nada de sua autoridade soberana. Isso
faz, como nenhuma outra coisa, conhecer evidentemente o grande senso e a longa
previdência de Licurgo, a quem quiser de perto considerar as sedições e maus
governos dos Agivos e Messenianos, seus próximos vizinhos e parentas, tanto dos
povos como dos reis, os quais tendo tido a princípio todas as coisas
semelhantes aos de Esparta, e ainda, na repartição das terras, tendo obtido
melhores do que eles, todavia não prosperam longamente; ao contrário, pela
arrogância dos reis e desobediência dos povos, entraram em guerras civis uns contra os outros e mostraram que efetivamente era
uma graça especial haverem os
deuses dado aos de, Esparta um reformador que temperasse e ordenasse tão
sabiamente o estado e o governo da coisa pública, como aqui deduziremos depois.

(9) Heródoto. Xenofonte e outros historiadores dizem que os éforos foram criados por Licurgo. Eles eram
então somente
conselheiros dos reis. Mas, cento e trinta anos depois,
quando os reis abusaram de seu poder, a
autoridade dos éforos aumentou
e eles se tornaram senhores dos reis.

XII. A
segunda novidade de Licurgo, e a de mais ousada e mais difícil empresa, foi mandar de novo repartir as terras (10): pois, havendo no país da Lacedemônia
grande dificuldade e desigualdade entre os habitantes, porque uns, e a maior
parte, eram tão pobres que não tinham uma só polegada de terra, e outros, em
bem pequeno número, tão opulentos que possuíam tudo, ele advertiu que, para
banir e expulsar da cidade a insolência, a inveja, a avareza, as delícias e,
mais a riqueza e a pobreza, que são ainda as maiores e mais antigas pestes das
cidades e das coisas públicas, não havia meio mais expediente do que persuadir
os cidadãos a reporem em comum todas as terras, possessões e heranças do país e
de novo as repartirem igualmente entre si, para daí por diante viverem todos
juntos como irmãos de maneira que um não tivesse em bens nada mais do que o
outro, e a não procurarem preceder uns aos outros em nenhuma outra coisa senão
na virtude: estimando não dever existir outra desigualdade nem diferença,
entre os habitantes de uma mesma cidade, senão aquela que procede da censura às coisas
desonestas e do louvor às coisas virtuosas e honestas. Seguindo aquela
imaginação, executou de fato a repartição das terras, pois dividiu todo o resto
do país da Lacônia inteiramente, em trinta mil partes iguais, as quais
distribuiu aos habitantes dos arredores de Esparta; e das terras mais próximas
da própria cidade de Esparta, que era capital de todo o país da Lacônia, fez
outras nove mil partes, que repartiu entre os naturais burgueses de Esparta,
que são os que propriamente se chamam os Espartanos. Todavia, querem alguns
dizer que ele não fez senão seis mil partes e que depois o rei Polidoro
acrescentou-lhes outras três mil; ~e há os que dizem ainda que dessas nove mil
partes Licurgo não fez senão a metade somente e Polidoro a outra. Cada uma
dessas partes era tal que podia dar a seu dono, anualmente setenta meias-minas
de cevada (11) para o homem e doze para a mulher, além de uvas e outras frutas
líquidas em semelhante proporção: estimando suficiente essas qualidades para
manter o corpo do homem são, disposto e robusto, e que não há necessidade de
nada mais. Assim, dizem que, voltando um dia dos campos e passando através das
terras onde o trigo fora não muito antes ceifado, vendo os montes de grão todos iguais e tão grandes uns como os outros, pôs-se a rir e disse
aos que o acompanhavam que todo o país da Lacônia lhe parecia uma herança de
vários irmãos que tivessem novamente feito suas partilhas.

(10) Para conhecer o caráter de Licurgo e o espírito de suas leis, é preciso
recordar as reflexões de Montesquieu. Vide as Observações, cap. XII.
(11) No grego, setenta medimnos. A avaliação de Amyot é demasiado fraca. A meia-mina de Paris
vale apenas três alqueires; e o alqueire de trigo pesa vinte e uma e vinte e duas
libras. O medimno continha mais de quatro alqueires, medida de Paris.

XIII. Tentou
ele também, semelhantemente,
mandar pôr em comum e partilhar os móveis, a fim de eliminar inteiramente toda
desigualdade; mas, vendo que os cidadãos supunham muito impacientemente que se
lhos tirariam a descoberto, ele nisso procedeu por via coberta, aguçando-lhes
sutilmente a avareza e a cobiça: pois primeiramente depreciou toda espécie de
moeda de ouro e de prata, ordenando que se usasse somente moeda de ferro, da
qual ainda uma grande e pesada massa era de bem pouco preço, de tal maneira
que, para se alojar dela o valor de cem escudos (12), seria preciso impedir
todo um grande celeiro na casa e seria necessária uma parelha de bois para
transportá-la. Ora, estando por esse meio o ouro e a prata banidos do país da
Lacônia, era forçoso que vários crimes e malefícios desaparecessem também. Pois
quem pretenderia roubar, tomar, sonegar, furtar ou reter uma coisa que não
soubesse esconder e que não houvesse grande ocasião de desejar nem proveito em
possuir, visto como não podia servir-se dela para empregá-la em outro uso?
Porque, quando o ferro que se queria amoedar estava todo vermelho de
fogo, deitava-se vinagre em cima, extinguindo-lhe a força e rigidez, de maneira que perdesse toda capacidade
para servir na execução de outro trabalho, porque se tornava tão rude e tão
brilhante que não mais podia ser batido nem forjado.

(12) No grego, dez minas, que
valiam setencentos e
setenta e oito libras francesas.
Em moeda de ferro, deviam perfazer um peso de mais de mil e seiscentas libras.

XIV. Depois
disso, baniu também todos os
misteres supérfluos e inúteis, e, ainda que por édito não os tivesse
perseguido, teriam assim desaparecido todos, ou a maior parte, com o uso da
moeda, quando não mais encontrassem quem ficasse com seus trabalhos, porque a
moeda de ferro não tinha curso nas outras cidades âa Grécia, antes zombavam dela
por toda parte, e dessa forma não podiam.os Lacedemônios comprar mercadorias
estrangeiras, nem lhes visitava o porto nenhum navio para ali traficar, nem
entrava no país nenhum afetado retórico para ensinar a pleitear com
habilidade, nem nenhum adivinho para ali dizer a boa sorte, nem sarda para ali
ficar no cais, nem ourives, nem joalheiro que ali fizesse ou vendesse broches
de ouro ou de prata para enfeitar as damas, visto como são coisas que se fazem
somente para ganhar e acumular dinheiro, que não havia; e assim as delícias,
destituídas das coisas que as nutrem e que as entretém, começavam a fanar ao
poucos 6 finalmente a cair por si mesmas, não podendo os tnais ricos ter nada a
mais que os mais pobres e não lendo a riqueza meio nenhum de se mostrar em
público e pôr-se em evidência, antes ficando reclusa em casa, coisa, sem poder de nada servir a seu dono. E,
contudo, os utensílios
indispensáveis e com os quais se tem todos os dias o que fazer, como estrados,
mesas, cadeiras e outros móveis que tais, se faziam miíito bem, sendo muito
louvada a forma e feitio do copo Lacônico, que se chamava Cothon, também para
uso de guerreiros, como costumava dizer Crítias, porque era feito de sorte que
a cor poupava aos olhos conhecer a água que às vezes se é constrangido a beber
num acampamento, tão turva e tão suja que, só de ver-se, provoca náusea; e, se
acaso havia alguma sujeira e algum limo no fundo, ele parava nos limites do
ventre e pelo gargalo, não vinha à boca de quem bebia senão a parte mais limpa.
Do que foi também causa o reformador, porque os artesãos, não estando mais
ocupados no mister de obras supérfluas, empregaram sua capacidade em bem
produzir o necessário.

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