A profissão de fé do vigário Saboiano – Rousseau

A PROFISSÃO
DE FÉ DO VIGÁRIO SABOIANO
Jean-Jacques Rousseau

(Do Emile, Emílio, ou da Educação)
Tradução de J. Brito Broca e Wilson Lousada
Fonte: Clássicos Jackson

Há trinta anos que, em uma cidade da Itália, um jovem
expatriado se via reduzido à última miséria. Nasceu calvinista, mas uma
estroinice o levara fugitivo e sem recursos a país estrangeiro, e teve que
mudar de religião para poder comer. Havia na cidade um albergue para
convertidos. Nele foi admitido. À medida em que o iam instruindo nas artes da
controvérsia, infundiam-lhe dúvidas que não tinha, ensinavam–llie o mal que
ignorava. Falaram-lhe de novos dogmas; presenciou costumes mais novos ainda, de
que esteve para ser vítima. Quis fugir, encarceraram-no; queixou-se e
castigaram-no por suas queixas. À mercê de seus tiranos, foi tratado como um
criminoso por não querer ceder ao crime. Só os que sabem como um coração ainda
tenro, se exaspera com a primeira prova da violência e da injustiça poderão
avaliar o estado do seu. Dos olhos, corriam-lhe lágrimas de raiva, a indignação
sufocava-o; implorava ao céu e aos homens, confiava-se a todo o mundo, e
ninguém o ouvia. Só via à sua volta fâmulos vis submetidos ao infame que o
ultrajava, ou cúmplices do mesmo crime que zombavam da sua resistência,
incitando-o a imitá-los. Se não fosse um eclesiástico que passou pelo albergue,
e com quem pôde desabafar em segredo, estaria perdido. O eclesiástico era
pobre, necessitava de todo o mundo, mas o oprimido ainda mais necessitava dele;
e não vacilou em favorecer-lhe a fuga, ainda com risco de ganhar um perigoso
inimigo.

Escapado ao vício para cair na indigência, o moço não cessava, de
lutar contra o destino; houve um momento em que julgou sobrepor-se-lhe. Aos
primeiros lampejos da sorte, esqueceu-se de seus males e do protector. Mas logo
sofreu o castigo dessa ingratidão; todas as esperanças se lhe desvaneceram. A
juventude favorecia-o, mas em vão; suas idéias romanescas deitavam tudo a
perder. Não tinha capacidade nem astúcia que lhe abrissem caminho fácil, e,
como não era morigerado nem malicioso, tantas coisas pretendeu que não alcançou
nenhuma. Caído novamente na miséria, sem pão, sem asilo, quase a morrer de
fome, lembrou-se de seu benfeitor.

Procurou-o outra vez, encontrou-o, e foi bem
recebido. A presença do jovem
recordou ao eclesiástico uma das boas acções da sua vida; lembranças destas rejubilam
sempre a alma. Era um homem naturalmente humano, compassivo, que avaliava,
pelas suas, as penas dos outros; o bem-estar não lhe endurecera o coração, e as
lições da sabedoria e uma virtude esclarecida tinham-lhe fortalecido a boa
índole. Acolheu o moço e diligenciou–lhe um abrigo, onde o recomendou,
repartindo com ele tudo de que dispunha, que mal chegava para os dois. Fez
mais: instruiu-o, consolou-o, ensinou-lhe a difícil arte de suportar
pacientemente a adversidade. Homens de preconceitos, esperaríeis, porventura,
isto de um padre e na Itália?

Este honrado eclesiástico era um pobre vigário saboiano, de mal com seu
bispo, devido a uma aventura de juventude, e que atravessara os montes em busca
dos recursos que lhe faltavam em seu país. Não carecia de talento nem de
cultura; com uma figura interessante, encontrou protectores que o colocaram em
casa de um ministro, como educador de seu filho. Preferia a pobreza à
dependência, e não sabia como se conduzir com os grandes. Não ficou muito tempo
com este, mas não perdeu sua estima, quando o deixou; e, como levava uma vida
sensata e era estimado de toda a gente, alimentava a esperança de reconquistar um dia o apreço do bispo e obter um pequeno curato
nas montanhas, onde passasse o resto da vida. Não tinha mais ambições.

Sentia natural inclinação pelo moço fugitivo, e estu-dou-o atentamente.
Verificou que a má sorte já lhe tinha secado o coração, que o opróbrio e o
desprezo lhe haviam abatido a coragem, e que a sua altivez, transformada em
amargo despeito, lhe mostrava apenas, na injustiça e na soberba dos homens, o
vício da sua natureza e a quimera da virtude. Para ele, a religião era apenas a
máscara do interesse, e o culto sagrado a salvaguarda da hipocrisia; o paraíso
e o inferno eram, na subtileza das vãs disputas, simples jogo de palavras; via
a sublime e primitiva ideia da Divindade desfigurada pelas caprichosas
imaginações dos homens; e, convencido de que, para crer em Deus, era mister
renunciar ao raciocínio que ele nos deu, sentia o mesmo desdém pelas nossas
ridículas fantasias e pelo seu objecto. Como não sabia nada sobre o que existe,
nem meditava sobre a génese das coisas, caiu em uma estúpida ignorância e em
profundo desprezo pelos que julgavam saber mais do que ele.

O olvido de toda a religião leva o homem ao olvido de todos os deveres. Mais de
metade deste caminho já tinha sido percorrido no coração do libertino. Não era,
no entanto, um moço de maus sentimentos; mas a incredulidade e a miséria
iam-lhe minando a pouco e pouco a boa índole, e precipitando rapidamente a sua
perda, dando-lhe os hábitos do mendigo e a moral do ateu.

O mal, quase inevitável, não estava, porém, totalmente consumado. O moço
tinha alguns conhecimentos e havia cultivado a sua educação. Estava nessa idade
feliz em que o sangue, fermentando, começa a levar calor à alma, sem a
escravizar ao furor dos sentidos. A dele ainda estava na posse de toda a sua
iniciativa. O constrangimento era nele modéstia inata, seu carácter tímido
prolongava-lhe esse período em que o aluno tantos cuidados requer. O exemplo
odioso da depravação brutal é do vício sem encantos não lhe estimulavam a
imaginação, amorteciam-lha. A repugnância foi. durante muito tempo a virtude
que lhe conservou a inocência; esta só devia sucumbir a seduções mais
delicadas.

O eclesiástico
viu o perigo e o remédio. As dificuldades não o desanimavam. Comprazia-se na
sua obra e resolveu levá-la até ao fim, restituindo a virtude à vítima que
havia arrancado à infâmia. Tomou com calma a execução do seu projecto; a beleza
do tema dava-lhe coragem e inspirava-lhe meios dignos de tanto zelo. Fosse qual
fosse o resultado, estava certo do que não perdia, o seu tempo. Quando só se
pretende fazer o bem, sempre se triunfa.

Começou procurando ganhar a confiança do rapaz, não lhe levando nada pelos
seus serviços; não era inoportuno, nem lhe fazia sermões, pondo-se sempre ao
seu alcance e diminuindo-se para se colocar ao seu nível. Era um espectáculo
impressionante ver como um homem grave se tornava o camarada de um vadio, e como
a virtude sintonizava com o vício para deste obter triunfo mais seguro. Quando
o estouvado lhe fazia suas loucas confidências, expandindo-se com ele, o padre
ouvia-o e punha-o à vontade; não aprovava o mal, mas demonstrava interesse por
tudo; nunca lhe detinha a loquacidade ou lhe confrangia o coração com uma
censura indiscreta. O prazer de se saber ouvido era ainda maior que o de não
ter que calar nada. Fez, assim, uma confissão geral, sem saber que se estava
confessando.

Depois de lhe estudar bem os sentimentos e o
carácter, viu o padre claramente
que, embora não fosse um ignorante para a sua idade, havia esquecido tudo
quanto lhe interessava saber, e que o opróbrio, a que a sorte o reduzira, ia
apagando nele todo o verdadeiro sentimento do bem e do mal. Há um grau de
embrutecimento que arranca a vida à alma; e a voz interior não chega ao que só
pensa em alimentar-se. Para preservar o desventurado moco desta morte moral, de
que tão perto se encontrava, começou por lhe despertar o amor próprio e a
estima por si mesmo; apontava-lhe um destino mais feliz, se empregasse melhor
as suas capacidades; reanimava em seu coração um generoso ardor, contando-lhe
as belas acções dos outros, e, provocando-lhe a admiração pelos que as haviam
feito, incitava-lhe o desejo de os imitar. Para afastá-lo insensivelmente
daquela vida ociosa e vagabunda, mandava-o copiar extractos de livros
escolhidos; e, fingindo que necessitava deles, incutia-lhe o nobre sentimento
do reconhecimento. Doutrinava-o indirectamente por esses livros. Fazia-o formar
um conceito bastante lisonjeiro de sua própria pessoa para que não se julgasse
um ser inútil para o bem, nem se visse desprezível aos seus próprios olhos.

Um simples episódio nos dará ideia dos métodos de que este homem
benemérito se servia para elevar insensivelmente o coração do aluno acima das
baixezas humanas, sem que ele pressentisse tal intuito. Era tão patente a
probidade do eclesiástico e tão firme o seu bom senso, que muita gente preferia
confiar-lhe suas esmolas em vez de aos padres ricos das cidades. Certo dia, em
que lhe deram algum dinheiro para os pobres, teve o moço a fraqueza de, a
título de pobre, pedir-lhe a sua parte.

— "Não, disse-lhe o vigário, nós somos
irmãos, és coisa minha; e só devo tocar neste dinheiro para o empregar como me
foi determinado." A seguir, porém, deu-lhe de suas economias a quantia
solicitada.

Lições
como esta raras vezes se perdem no coração dos homens que não estão totalmente
corrompidos.


estou cansado de falar em terceira pessoa; a preocupação é inútil porque você
já viu, meu caro concidadão, que esse infeliz fugitivo era eu. Creio-me
bastante desviado dos desatinos da juventude para poder confessá-los,
e a mão que se me estendeu bem merece que eu, sacrificando embora um pouco de
vergonha, preste algumas homenagens aos benefícios que dela recebi.

O que mais me sensibilizava era
ver, na vida particular do meu
digno mestre, a virtude sem hipocrisia, a humanidade sem desfalecimentos, juízos sempre rectos e simples, e uma conduta
constantemente de acordo com esses juízos. Não lhe importava saber se os que
recebiam seu auxílio iam ou não à missa, se se confessavam muitas vezes ou
jejuavam nos dias de preceito, se faziam abstinência, nem lhes impunha outras
condições semelhantes, sem as quais morreríamos de necessidade se tivéssemos
que contar com a ajuda dos devotos.

Suas observações davam-me coragem, e, longe de alardear em sua
presença o zelo próprio de um novo prosélito, nunca lhe ocultava meu modo de
pensar, sem nele advertir jamais o menor sinal de reprovação. Pensava às vezes
comigo: perdoa-me a indiferença pelo culto que abracei pela que me vê ter
também pelo culto em que nasci; sabe que a minha indiferença já não é
sectarismo. Mas que pensar, quando o ouvia, de vez em quando, aprovar os dogmas
contrários aos da Igreja romana, parecendo não ter em grande estima as suas
cerimónias? Crê-lo-ia um protestante disfarçado, se não o visse tão fiel a essas
práticas, a que, aparentemente, não prestava grande atenção; mas, observando
que cumpria tão pontualmente seus deveres de sacerdote, sem testemunhas, como
em público, não sabia como interpretar essas contradições. Exceptuando o
defeito que, em outros tempos, fora a causa de sua desgraça, e de que não se
havia corrigido muito, levava vida exemplar: seus costumes eram
irrepreensíveis, sua forma de pensar judiciosa e honesta. Vivia com ele na
maior intimidade, e aprendi a respeitá-lo cada vez mais; conquistou-me
inteiramente o coração com tantas bondades, o que me fazia esperar, com curiosa
inquietação, o momento de saber em que princípios fundava uma vida tão uniforme
e singular.

Esse momento não se apresentou logo. Antes de se abrir com o
discípulo, fez germinar as sementes da razão e da bondade que lhe lançara na
alma. O que havia mais difícil de destruir em mim era uma orgulhosa misantropia, certa quizília contra os ricos e os homens felizes deste mundo,
como se eles o fossem à minha custa, ou a sua pretensa felicidade me tivesse
sido usurpada.

A louca vaidade da juventude, que se subleva
contra a humilhação, provocava-me
este humor colérico; e o amor próprio, que meu mentor procurava despertar em
mim, feria-me a soberba, tornando os homens ainda mais vis a meus olhos; todo o
meu desprezo e ódio se concentrava neles.

Não
combateu este orgulho directamente, mas não consentiu que se transformasse em
dureza de alma; não me privou da estima própria, mas fê-la menos desdenhosa
para com os outros. Apontava-me sempre as falsas aparências, mostrando-me os
males reais que nelas se ocultam, e ensinava-me a deplorar as faltas de meus
semelhantes, a comover-me com suas misérias, a sentir por eles mais pena que
inveja. Um profundo sentimento das próprias misérias inspirava-lhe compaixão
pelas fraquezas alheias, considerando sempre os homens vítimas de seus vícios e
dos alheios; via os pobres gemer sob o jugo dos ricos, e os ricos sob o jugo
dos preconceitos. Crê, dizia-me ele, as ilusões não nos encobrem os males, aumentam-no-los,
dando valor aos que o não têm, e fazendo-nos sofrer mil privações que, sem
elas, não sentiríamos. A paz da alma consiste no desprezo por tudo quanto a
possa perturbar: o homem que mais apego tem à vida é o que menos a desfruta, e
o mais infeliz, o que mais avidamente aspira à felicidade.

— "Ah que triste quadro! exclamava eu,
com amargura; se temos que renunciar a tudo, para que nascer? Se temos que
desprezar a própria felicidade, quem po derá ser feliz?" — "Eu",
respondeu um dia o padre, num tom de voz que me impressionou. — "Feliz,
vós! tão pouco afortunado, tão pobre, exilado, perseguido? vós, feliz! E que
caminho seguistes para sê-lo?" — "Meu filho, replicou ele, vou
dizer-te com prazer". Deu-me
logo a entender que, depois de ter recebido as minhas confissões, sentiu o desejo de me fazer as suas.
"Vou depositar em teu seio, disse, abraçando-me, todos os sentimentos do
meu coração. Ver-me-ás, senão como sou, pelo menos, como me vejo. Quando
ouvires toda a minha profissão de fé e conheceres bem o estado da minha alma,
compreenderás por que me sinto feliz; e, se concordares comigo, verás o caminho
a seguir para o seres também. Mas estas confissões não são coisa de um
instante. Dizer tudo o que penso sobre o destino do homem e a verdadeira paz da
vida requer algum tempo. Marquemos hora e lugar cómodo para conversar com toda
a tranquilidade".

Mostrei impaciência por ouvi-lo. Combinámos logo o encontro para a manhã do dia
seguinte. Era verão; levantámo-nos ao nascer do dia. Levou-me para fora da cidade,
para o alto de uma colina; aos pés passava o Pó, serpenteando através de
férteis ribeiras, vendo-se, ao longe, a imensa cadeia dos Alpes, dominando a
paisagem. Os raios do sol que nascia derramavam-se pelas planícies, projectando
nos campos, em longas sombras, as árvores, os outeiros, as casas, e
enriquecendo com mil acidentes de luz o mais belo quadro que olhos humanos
podiam ter surpreendido. Dir-se-ia que a natureza exibia à nossa frente toda a
sua magnificência, como que suscitando um tema para as nossas conversas. Foi
ali que, depois de contemplar por algum tempo, em silêncio, esses objectos, o
homem de paz falou assim:

— Meu filho, não esperes de mim discursos
sábios ou conceitos profundos. Não sou um grande filósofo, nem faço muita
questão de o ser. Às vezes, porém, tenho bom senso, e prezo sempre a verdade.
Não me proponho argumentar contigo, nem mesmo tentarei converter-te; quero só
dizer-te o que penso na simplicidade do meu coração. Consulta o teu no decurso
desta palestra; nada mais te peço. Se me enganar, será de boa fé; basta isso
para que não me imputem o erro a crime, e se tu, da mesma forma,
te enganasses, também não havia mal nenhum nisso. Se meu pensar for bom, a
razão ser-nos-á comum, e igual interesse teremos em prestar-lhe ouvidos. Por
que não hás-de pensar como eu?

Nasci pobre e aldeão, destinado pelo meu estado a trabalhar na terra;
mas acharam que devia aprender a ganhar o pão no ofício de sacerdote, e
facilitaram-me os meios de estudar. Decerto que nem meus pais nem cu buscávamos
com isso o que era bom, verdadeiro e útil, mas o que era preciso saber-se para
receber ordens. Aprendi o que me mandaram aprender, disse o que me mandaram
dizer, comprometi-me ao que me ordenaram, e fizeram-me padre. Mas adverti logo
que, quando me comprometi a deixar de ser homem, prometera mais do que me era
dado prometer.

Dizem que a consciência é obra dos preconceitos; sei, no entanto, por
experiência própria, que se obstina em seguir a ordem da natureza contra, todas
as leis humanas. Em vão nos proíbem isto ou aquilo, porque nunca o remorso
reprova com energia o que a natureza bem ordenada consente, e, com mais razão,
o que prescreve. Oh! meu rapaz, não contraries nunca os teus sentidos: deixa-te
viver nesse feliz estado em que a vida é inocente. Lembra-te que mais a
ofendemos evitando-a que combatendo-a; aprendamos, primeiro, a resistir, para
saber, depois, quando devemos ceder sem culpa.

Desde a juventude, sempre respeitei o
casamento como a primeira e a mais sagrada instituição da natureza. Privado do direito de contrair
matrimónio, resolvi não o profanar; porque, apesar de minhas aulas e estudos,
sempre levei uma vida igual e simples, e conservei no espírito todo o
resplendor das primeiras luzes; não as obscureceram as máximas do mundo, e a
pobreza arredava-me das tentações que os sofismas do vício nos oferecem.

Essa resolução foi precisamente o que me perdeu; o respeito pelo
tálamo alheio, deixou minhas culpas a descoberto. Tive que expiar o escândalo; detido, suspenso, expulso, fui mais a vítima
dos meus escrúpulos que da minha incontinência; compreendi, então, pelas
recriminações que acompanharam minha desgraça, que basta às vezes agravar a
falta para fugir ao castigo.

Bastam algumas experiências como esta para afectar profundamente um
espírito reflexivo. Tristes observações subvertiam o conceito que formava do
justo, do honesto e dos deveres do homem, fazendo-me perder dia a dia as
opiniões em que tinha sido criado; as que me restavam eram insuficientes, em
conjunto, para formar um corpo capaz de se sustentar por si só, e sentia que a
evidência dos princípios se ia obscurecendo no meu espírito. Não sabendo,
finalmente, em que pensar, cheguei ao ponto em que tu te encontras hoje, com a
diferença de que a minha incredulidade, fruto tardio de uma idade mais madura,
se tinha gerado mais lentamente que a tua, e era, portanto, mais difícil de
destruir.

Estava nessas disposições de incerteza e de dúvida que Descartes requer
para a investigação da verdade; estado de pouca duração, inquietante e penoso,
em que nos deixa o interesse do vício ou a indolência da alma. Não tinha ainda
o coração bastante corrompido para me conciliar com ele; o que melhor conserva
o hábito de reflexionar é sentirmo-nos mais satisfeitos conosco do que com o
destino.

Meditava, pois, na triste sorte dos mortais, lançados no mar das opiniões humanas, sem leme
nem bússola, entregues às paixões tempestuosas, levando como único guia um
piloto inexperiente que desconhece a rota e não sabe donde vem nem para onde
vai. Amo a verdade, pensava, procuro-a e não a encontro; que alguém ma indique,
e eu a abraçarei. Por que se furtará às ânsias do meu coração que nasceu para
adorá-la?

Experimentei muitas vezes outros males piores, mas
nunca tive uma vida tão
desagradável como nesses tempos de agitações e ansiedades, em que, vagando, sem
cessar, de dúvida em dúvida, não tirava de minhas longas
meditações senão incertezas, obscuridades e contradições sobre a origem do meu
ser e as normas de meus deveres.

Como se pode ser céptico por sistema e de boa-fé ? Não compreendo. Esses
filósofos, se é que existem, são os mais infelizes dos homens. A dúvida sobre o
que devemos conhecer é um estado violentíssimo para o espírito humano, a que
este não resiste por muito tempo, preferindo tomar uma decisão, qualquer que
ela seja, a enganar-se e não crer em nada.

O que aumentava a minha confusão era ter nascido no seio de uma Igreja que
tudo decide sem deixar margem à dúvida; rejeitar um ponto equivalia a rejeitar
todos os outros, e a impossibilidade de admitir tantas decisões absurdas não me
consentia aceitar as que não o oram. Mandavam-me crer em tudo e não me
permitiam crer em nada; não sabia onde me deter.

Consultei os filósofos, folheei seus livros, analisei suas opiniões;
todos me pareciam arrogantes, afirmativos, dogmáticos, até em seu pretenso
cepticismo, nada ignorando, nada provando, zombando uns dos outros; e este
ponto, a todos comum, parecia-me o único em que todos tinham razão. Triunfam no
ataque, mas não se sabem defender com vigor. Se reflectires nas razões disto,
concluirás que só as têm para destruir, e se contares as opiniões que os
seguem, verás que não contam senão com a sua.
Só estão de acordo num ponto: discutir. Escutá-los, pois, não era o
melhor meio de sair da minha incerteza.

Compreendi que a incapacidade do espírito humano é a primeira causa dessa
prodigiosa diversidade de sentimentos, e a segunda, o orgulho. Como se nos
escapam as dimensões dessa imensa
máquina, não lhe podemos calcular as relações; ignoramos suas principais leis e
a causa final. Ignoramo-nos a nós mesmos; desconhecemos a nossa natureza e o
nosso princípio activo. Mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto;
estamos rodeados de mistérios impenetráveis que nos dominam a região
sensível, julgamo-nos com inteligência para os devassar, e não temos senão
imaginação. Através desse mundo imaginário, traçamos a rota que julgamos certa,
mas ninguém pode saber se é, realmente, a que leva ao fim. Entretanto, tudo
queremos penetrar e conhecer. Só não sabemos ignorar o que não podemos saber.
Preferimos lançar-nos ao acaso, e crer no que não existe, a confessar que não
sabemos ver o que existe. Pequenina parte de um grande todo, cujos limites nos
fogem, e seu autor expõe às nossas loucas disputas, somos suficientemente vãos
para pretender decidir o que esse todo é em relação a si e nós em relação a
ele.

E mesmo que os filósofos pudessem encontrar a verdade, qual deles se
interessaria por ela? Nenhum ignora que seu sistema não é melhor fundado que o
dos outros; mas sustenta-o porque é seu. Todos sabem onde está o verdadeiro e o
falso, mas preferem a mentira por eles encontrada à verdade por outros
descoberta. Onde está o filósofo que, para glória sua, não engane
conscientemente o género humano? Onde aquele que, no fundo de seu coração, se
proponha outro objectivo que o de se distinguir? Chegar a ultrapassar o nível
do vulgar, eclipsar o brilho de seus concorrentes, eis todas as suas aspirações
! O essencial é não pensar como os outros. Entre os crentes é um ateu, entre os
ateus um crente.

A primeira vantagem que tirei dessas reflexões foi aprender a reduzir minhas pesquisas ao
que imediatamente me interessava, a viver em profunda ignorância de tudo o
mais, a me inquietar apenas com a dúvida das coisas que devia saber.

Compreendi ainda que os filósofos não me desembaraçavam das dúvidas
inúteis; multiplicavam, ao contrário, as que me atormentavam e não esclareciam
nenhuma. Segui, pois, outros caminhos, pensando: Consultemos a luz interior que
não me extraviará tanto, e, se errar, o erro, pelo menos, será só meu; se me
deixar levar pelas minhas próprias ilusões, não me perverterei tanto como
com as suas falsidades.

Repassando então no meu espírito as opiniões que me haviam incutido
desde que nasci, verifiquei que, conquanto nenhuma oferecesse evidência capaz
de rne levar a uma convicção imediata, tinham entre si vários graus de
verossimilitude, e que o assentimento interior as admitia ou repelia em
distinta medida. De acordo com esta primeira observação, comparei todas essas idéias
no silêncio das minhas preocupações, e vi que a principal e a mais comum era
também a mais simples e razoável, faltando-lhe apenas ser a última para
conquistar todos os sufrágios. Imaginai todos os filósofos antigos e. modernos,
esgotando seus extravagantes sistemas de força, acasos, fatalidades,
necessidade e átomos, de mundo animado, de matéria viva, de materialismo de
toda a espécie, 0 aparecer, depois, o ilustre Clarice[1] a iluminar o mundo 0 a
anunciar finalmente o Ser dos seres, o que concede todas as coisas! Com que
universal admiração, com que unanimidade de aplausos não teria sido recebido
esse novo sistema tão grande, tão reconfortante, tão sublime, tão próprio para
elevar a alma e ser a base da virtude, e, ao mesmo tempo, tão impressionante,
tão luminoso, tão simples, e, ao que parece, apresentando menos coisas incompreensíveis
ao espírito humano que de absurdos se encontram em qualquer outro sistema!
Pensava, pois, que as objecções insolúveis são comuns a todos eles porque o
espírito humano é muito limitado para as solucionar; nada provam, pois, contra
nenhum em particular, Dias que diferença entre as provas directas! Como não
preferir o único que tudo explica e não apresenta dificuldades superiores aos
outros?

Levando, pois, comigo, como única filosofia, o amor à verdade, e, como
único método, uma regra fácil e simples que me
dispensa da vã subtileza dos argumentos, analiso de novo os conhecimentos que me interessam, disposto a
admitir como evidentes os que não
pugnam com a sinceridade do meu coração, e, como verdadeiros, os que me pareça
terem forçosa conexão com estes, deixando os mais na incerteza, não os
repelindo nem admitindo, e sem me preocupar com o seu esclarecimento, visto que
a nada de útil podem conduzir na prática.

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