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—  
As idéias que acabais de
expor, disse eu, julgo-as mais novas pelo que confessais ignorar do que pelo
que dizeis crer. Vejo nelas, pouco mais ou menos, o teísmo ou a religião
natural, que os cristãos fingem confundir com o ateísmo e a irreligião, e é, no
entanto, doutrina diametralmente oposta. Mas, no estado actual da minha fé,
devo-me elevar, e não descer, para seguir esses princípios, e considero
indispensável vossa judiciosa sabedoria para permanecer no ponto, precisamente,
em que vos encontrais. Para ser, ao menos, também sincero, pretendo consultar
comigo. Só pela voz interior poderei chegar ao exemplo que me dais, e vós mesmo
me ensinastes que recorrer a essa voz não é coisa de momento, quando â tivemos
muito tempo em silêncio. Vossas opiniões apossaram-se-me do coração; vou agora
meditar nelas. Se, depois de consultar comigo, chegar à vossa convicção, sereis
meu último apóstolo, e eu vosso prosélito até à morte. Continuai, todavia,
instruindo-me; só me dissestes metade do que tenho que saber. Falai-me da revelação,
das escrituras, dos dogmas obscuros que desde a infância me perseguem, sem
neles crer, nem os conceber, admitir ou rejeitar.

—    Sim, meu filho, respondeu ele, abraçando-me,
dir–te-ei tudo o que penso. Quero abrir-te o coração de par em par, mas
precisava que me manifestasses antes esse desejo para me crer autorizado a não
ter reservas contigo. Até agora, nada te disse que, a meu ver, não te
fosse útil e de que não estivesse intimamente persuadido. A análise que me
falta fazer é bem diferente; só vejo confusão, mistério, obscuridade, e
prossigo incerto e desconfiado. Caminho e tremo, e mais saberás das minhas
dúvidas que dos meus juízos. Se teus sentimentos fossem mais firmes, hesitaria
eu expor-te os meus; mas, no estado em que te encontras, creio que deverás, cm
teu benefício, pensar como eu[13]. Quanto ao mais, nenhuma outra
autoridade atribuas às minhas palavras que a da razão. Não sei se estou errado.
É difícil, para quem argumenta, não tomar às vezes um tom afirmativo; mas tem
sempre presente que todas as minhas informações são meras razões para duvidar.
Indaga a verdade por ti só, porque, da minha parte, só te posso prometer
boa-fé.

No que te expus, vês apenas a religião natural. Notas a falta de outra?
Como explicar essa necessidade? Se sirvo a Deus com os sentimentos que ele
próprio inspira ao meu coração, de que me podem acusar? Que pureza de moral,
que dogma útil para o homem e honroso para o seu autor, cabe extrair de uma
doutrina positiva que não se possa tirar do exercício das nossas faculdades?
Para a glória de Deus, para o bem da sociedade, e para meu próprio benefício,
que devo eu acrescentar aos deveres que me são impostos pelas leis naturais?
Haverá algum novo culto, que não seja uma consequência do meu, que nos possa
trazer uma nova virtude? As maiores idéias da Divindade vêm-nos apenas da
razão. Contempla o espectáculo da natureza, escuta a tua voz interior. Que mais
poderá dizer Deus aos nossos olhos, à nossa consciência, ao nosso
discernimento? E os homens, que mais nos dirão? Suas revelações, atribuindo a
Deus paixões humanas, só conseguem degradá-lo. Vejo que os dogmas particulares,
longe de esclarecer as noções do Ser Supremo,
só as complicam; não as enobrecem,
aviltam–nas. Aliam as contradições absurdas aos mistérios inconcebíveis que o cercam; tornam o homem
orgulhoso, ignorante e cruel. Não trazem a paz à terra; trazem-lhe o
ferro e o fogo. Se me perguntarem para que serve tudo isso, não sei que responder.
Se só me revela os crimes dos homens e as misérias do género humano… .
Dizem-nos que seria mister uma revelação para ensinar aos homens o melhor meio
de servirem a Deus; aduz–se, como prova, a diversidade de cultos extravagantes
instituídos na terra, e não se vê que essa diversidade provém da fantasia das
próprias revelações. Desde que os povos pensaram que podiam mandar Deus falar,
já todos o mandaram falar a seu modo e dizer o que lhes aprouve. Se ouvissem
apenas o que Deus diz ao coração dos homens, não existiria senão uma religião
no mundo.

Seria mister um culto uniforme, não digo que não; mas seria ele tão importante
que exigisse todo o aparato da potência divina para a sua instituição? Não
confundamos o cerimonial da religião com a religião. O culto que Deus solicita
é o do coração, e este, quando sincero, é sempre uniforme. Que vaidade louca
pensar que Deus tanto se preocupa com a forma dos hábitos do sacerdote, com a
ordem de suas palavras, com os seus gestos no altar e todas as suas genuflexões!
Ah! meu amigo, por muito que subas à tua altura, ficarás sempre perto da terra.
Deus gosta de ser adorado em espírito e em verdade; é esse o dever de todas as
religiões, de todos os povos e de todos os homens. Quanto ao culto externo, se
deve ser uniforme para a boa ordem, é essa uma mera questão de polícia; não se
necessita de revelação para isso.

Não
comecei logo por todas estas reflexões. Arrastado pelos preconceitos da
educação e pelo perigoso amor próprio, que sempre quer colocar o homem acima da
sua esfera, não podendo elevar minhas pobres concepções até ao Ser supremo,
procurei rebaixá-lo até mim. Aproximava as relações
infinitamente distantes que ele pôs entre a sua natureza e a minha. Pretendia
ter comunicações mais imediatas, instruções mais particulares; e, não me
contentando ainda com fazer Deus semelhante aos homens, para eu ser
privilegiado entre os meus semelhantes, aspirava a luzes sobrenaturais, a um
culto exclusivo, a que Deus me dissesse o que não dissera aos demais homens, ou
o que os demais homens não haviam entendido como eu.

Considerando o ponto a que chegara como o
ponto comum, donde todos os crentes partiam para atingir um culto mais
esclarecido, só nos dogmas da
religião natural fui encontrar os elementos de toda a religião. Olhava para a
diversidade de seitas que imperam na terra e se acusam mutuamente de erro e
mentira, e perguntava: "Qual a boa?" E todos me respondiam: "a
minha". E todos diziam: "só eu e meus adeptos pensamos certo; todos
os mais laboram em erro". — "E como sabes tu que a tua seita é a
melhor?" — "Porque o disse Deus — "E quem te
disse que foi Deus quem o disse?" — "O meu pastor, que o sabe bem;
disse-me que devia crê-lo, e eu assim o creio, e que mentem os que afirmam o
contrário, e eu não lhes dou ouvidos".

Então
a verdade não é só uma? pensava eu. E o que para mim é verdade, pode ser falso
para os outros? Se os métodos do que segue o bom caminho e do que vai pelo mau
são iguais, que mais razão tem um do que o outro? A escolha é fruto
do acaso, e imputá-la aos homens seria uma iniquidade. Seria como premiar ou
castigar o facto de se ter nascido neste ou naquele país. Atribuir a Deus
semelhantes juízos é ultrajar a sua justiça.

Ou todas as religiões são boas e agradam a Deus, ou só existe uma que
ele decretou para os homens, castigando os que a ignoram. Neste caso, outorgou
Deus a essa religião sinais tão inequívocos e manifestos que nos habilitam a
distingui-la. e reconhecê-la como a única verdadeira, sinais que são de todos
os tempos e lugares e igualmente sensíveis a todos os homens, grandes e
pequenos, sábios e ignorantes, europeus, índios, africanos e selvagens. Se
houvesse uma religião na terra que condenasse à pena eterna os que não a
seguissem, e existisse um só mortal de boa-fé no mundo, em qualquer país, fosse
ele qual fosse, a quem não se revelasse a sua evidência, o Deus dessa religião
seria o mais iníquo e cruel dos tiranos.

Busquemos, pois, sinceramente a verdade, sem recorrer
ao direito de nascimento ou à
autoridade de nossos pais e sacerdotes, mas levando ao exame da consciência e
da razão tudo quanto eles nos ensinaram desde a infância. Que ninguém me diga:
"Submete à tua razão", pois que o mesmo me pode dizer o que me está
enganando. Para me submeter à razão, necessito de razões.

Toda a teologia que possa adquirir por mim na
contemplação do universo, e pelo
bom exercício das minhas faculdades, limita-se ao que te expliquei
anteriormente. Para saber mais, teremos que recorrer a meios extraordinários.
Tais meios não dependem dos homens, porque não havendo homens de espécie
diferente da minha, tudo o que o homem naturalmente conhece, posso eu também
conhecer, e, como eu, se pode enganar, Se creio no que me diz, não
é porque mo diz, mas porque mo prova. No fundo, o testemunho dos homens não é
senão o da minha, razão, e em nada contribui para os conhecimentos naturais que
Deus me concedeu para conhecer a verdade.

Apóstolo
da verdade, que me podeis dizer vós, portanto, que eu não possa julgar? Foi
Deus quem falou; escutai a sua revelação! Isso já é outra coisa. Mas, Deus
falou? Parece-me, na verdade, um exagero. A quem falou Deus? Aos homens.
Então, por que não o ouvi eu? Porque incumbiu outros homens de vos transmitir
as suas palavras. Entendo: são os homens que me devem dizer o que disse Deus.
Preferiria ouvir o próprio Deus; não lhe custaria muito esforço, e deferi
der-me-ia contra a sedução. Ele vos preserva dela, manifestando-se na missão de
seus enviados. Como assim’? Por meio de milagres. E onde estão esses milagres?
Nos livros. E quem fez esses livros? Homens. E quem viu esses milagres? Homens
também, que os atestam. Oh! sempre testemunhos humanos. Homens sempre que me
transmitem o que outros homens lhes transmitiram antes. Quantos homens, entre
Deus e a minha pessoa! Vejamos, porém; examinemos, comparemos, verifiquemos.
Ah! seí Deus se dignasse
dispensar-me desse trabalho, tê-lo-ia servido acaso de pior vontade?

Repara, meu amigo, em que terrível discussão me meti eu; de
que imensa erudição necessito para me transportar às mais remotas antiguidades,
para examinar, pesar, confrontar as profecias, as revelações, os factos, todos
os documentos de fé existentes em todos os países do mundo para designar as
épocas, os lugares, os autores, as ocasiões! Que exactidão crítica não seria
preciso para distinguir as peças autênticas das supostas, para comparar as
objecções com as réplicas, as versões com os originais, para julgar da
imparcialidade dos testemunhos, do sou bom senso, dos seus conhecimentos; para
saber se nessas peças alguma coisa teria sido suprimida ou acrescenta da,
transposta, mudada, falsificada; para esclarecer as contradições
que ainda prevalecessem, para ajuizar que valor atribuir ao silêncio dos
adversários nos factos contra eles aduzidos; para averiguar se conheceram essas
alegações, ou se as consideraram, realmente, dignas de uma resposta; se os
livros lhes seriam realmente tão acessíveis como hoje os nossos; se houve
suficiente boa-fé para permitir a circulação dos seus, bem como
as suas mais fortes objecções, nos termos em que as fizeram! Reconhecida a
incontestabilidade de todos esses documentos, teríamos ainda que passar a
analisar qual o objectivo de seus autores; conhecer a fundo as leis do acaso,
as probabilidades eventuais, para julgar se existe predição que não possa ser
executada sem milagre; conhecer o génio das línguas originais a fim de
distinguir nelas o que é predição das simples figuras de retórica; que factos
pertencem ou não à ordem da natureza; para dizer até que ponto um homem astuto
pode fascinar os olhos dos simples e ofuscar até as pessoas ilustradas;
investigar a espécie dos prodígios, e que grau de auten-tloidade atribuir-lhes,
não só para que acreditemos neles, como também para que mereça castigo quem
deles duvide; comparar as provas dos verdadeiros e dos falsos prodígios, e
determinar regras seguras para os discriminar; dizer, enfim, por que teria
escolhido Deus, para. justificar sua palavra, meios que, de per si, tanta
justificação requerem, como se ele quisesse zombar da credulidade dos homens,
furtando-lhes, deliberadamente, os verdadeiros meios de persuasão.

Suponhamos que a majestade divina tanto se
dignasse descer até nós que
convertesse um homem em órgão de luas vontades sagradas; seria razoável e justo
exigir de todo o.género humano obediência à voz desse ministro, sem que Deus
não no-lo desse a conhecer como tal? Seria equitativo que este lhe entregasse
como únicas credenciais alguns signos particulares feitos na presença de um
pequeno grupo de pessoas obscuras, e dos quais os outros homens não saberiam
senão por ouvir dizer? Se, em todos
os países do mundo, se tivessem
por verdadeiros os milagres que o povo e os simples dizem ter visto, a seita de
cada um desses povos seria realmente a autêntica; haveria mais milagres do que
acontecimentos naturais, e o maior de todos seria que não os houvesse onde os
homens fossem perseguidos. É a ordem inalterável da natureza o que melhor nos
mostra a sábia mão que a dirige; se se registrassem muitas excepções, não
saberia o que pensar. Por minha parte, creio muito em Deus para não acreditar
em tantos milagres e tão poucos dignos da sua grandeza.

Se um homem nos viesse confirmar estas
palavras: "Mortais, anuncio-vos a Vontade do Altíssimo, que em minha voz reconhecereis; ordeno ao sol
que altere seu curso, às estrelas que formem outras constelações, às montanhas
que se tornem planas, às ondas que se alteiem, à terra que mude de
aspecto". Quem não reconheceria logo nessas maravilhas o árbitro da
natureza! Esta não obedece aos impostores, cujos milagres se operam nas
encruzilhadas, nos desertos, nos quartos fechados, onde se fascina um pequeno
grupo de espectadores já predispostos a crer em tudo. Quem ousará dizer quantos
testemunhos oculares são necessários para tornar um milagre digno de fé? Se os
milagres, feitos para provar uma doutrina, também requerem provas, para que
servem? Que adiantam?

Falta, finalmente, o exame mais importante da
doutrina anunciada, porque, como nos dizem que os milagres de Deus na terra são às vezes imitados pelo diabo, nada nos
provam os milagres melhor testemunhados. Se os mágicos de Faraó executavam, na
presença de Moisés, os mesmos sinais que este fazia por ordem expressa de Deus,
por que, em sua ausência, não se atribuíam, a igual título, a mesma autoridade?
Verifica-se, pois, que provada a doutrina pelo milagre[15], é mister,
depois, provar o
milagre pela doutrina, sob o risco de se tomar a obra do demónio pela de Deus.

Que pensas tu deste dialelo ? [16]

Nesta doutrina, que vem de Deus, deve estar impresso o
sagrado carácter da Divindade, e
deve esclareeer-nos, não apenas as idéias confusas que o raciocínio de seus
princípios nos deixa no espírito, mas propor-nos também um culto, uma moral, e
as máximas correspondentes aos atributos pelos quais concebemos a sua essência.
Se não nos ensinasse, pois, senão coisas absurdas e destituídas de razão, e só
nos inspirasse os sentimentos da aversão pelos nossos semelhantes, os de pavor,
e nos apresentasse apenas um Deus colérico, invejoso, vingativo, parcial,
rancoroso para com os homens, um Deus das guerras e dos combates, sempre pronto
a destruir e a fulminar, falando constantemente de tormentos e castigos, e
vangloríando-se de castigar os próprios inocentes, meu coração não se deixaria
atrair por esse Deus terrível, nem trocaria pela sua a religião natural, pois
que estás vendo claramente que
era forçoso optar por uma das
duas. Vosso Deus não é o nosso, diria eu a seus sectários. O que começa por
preferir um só povo, proscrevendo o resto do género humano, não é o pai de
todos os homens; o que condena ao suplício eterno a maioria dos
seres por ele criados não é o Deus clemente e bom de que a razão me fala.

Diz-me aquela que os dogmas devem ser claros,
luminosos, impressionantes pela sua evidência. Se a religião natural é insuficiente pela obscuridade em que
deixa as grandes verdades que nos ensina, cabe à revelação ensinar-nos essas
verdades de um modo acessível ao espírito humano, colocá-las ao seu alcance;
fazer que este as conceba para poder crer nelas. À fé afirma-se e fortalece-se
pelo entendimento; a melhor de todas as religiões é infalivelmente a mais
clara. O que rodeia de mistérios e contradições o culto que me predica,
ensina-me por isso a desconfiar dele. O Deus que adoro não é o Deus das trevas;
ele não me deu o entendimento para me proibir o usar dele. Exigirem que submeta
a minha razão ao ininteligível, é ultrajar quem ma concedeu. O ministro da
verdade não tiraniza minha razão: ilumina-ma.

Temos deixado de parte toda a autoridade
humana, e, sem ela, não sei como
um homem pode convencer outro, predicando lhe uma doutrina contrária à razão.
Figuremos um breve encontro entre estes dois homens, e vejamos o que nos dizem
nessa aspereza de linguagem tão comum a ambos os bandos.

 

O inspirado

Diz-vos a razão que o todo é maior que a parte; mas eu digo-vos, da
parte de Deus, que a parte é maior que o todo.

O RACIOCINADOR

E quem sois vós para atribuir a Deus tal contradição? E em quem
devo crer: nele, que me ensina, pela razão, as verdades eternas, ou em vós, que me inculcais, em seu nome, um absurdo?

O inspirado

Em mim, porque tenho urna instrução mais positiva; e vou provar-vos
insofismavelmente como sou um enviado de Deus.

O RACIOCINADOR

Como ? Sereis capaz de me provar que Deus vos
envia para depor contra ele? E que espécie de provas me dais para me convencer que mais certo é Deus falar
por vossa boca. que pelo entendimento que me concedeu?

o inspirado O entendimento que vos
concedeu! Homem mesquinho e vão!
Como se fôsseis o primeiro ímpio que se perde na razão corrompida pelo pecado!

O
RACIOCINADOR

Homem de Deus, também não sois vós o primeiro velhaco que apresenta a
arrogância como prova de sua missão!

O INSPIRADO

O quê?
os filósofos também injuriam?

O RACIOCINADOR

Às vezes, quando os santos lhes dão o exemplo

O INSPIRADO

Oh! tenho o direito de falar assim; falo da
parte de Deus.

O RACIOCINADOR

Por que não me mostrais o título, antes de usardes, do
privilégio ?

O INSPIRADO

Meus títulos
são autênticos; a terra e os céus respondem por mim. Peço-vos que me
acompanheis no raciocínio.

O RACIOCINADOR

Vosso raciocínio! Não pensais no que dizeis. Afirmar que a razão me engana, não
será refutar de antemão, em vosso abono, o que ela me possa dizer? Quem nega a
razão deverá convencer sem recorrer a ela. Suponhamos que me convenceis com
vossos argumentos; como saber se não será a minha razão corrompida pelo pecado
que me faz anuir ao que me dizeis? Ou, por outra, que prova ou demonstração
mais evidente me podeis apresentar que o axioma, que ela mesma destrói? Um bom
silogismo pode ser falsidade tão grande como aquilo de que a parte é maior que
o todo.

O INSPIRADO

É muito diferente! Minhas provas não admitem
réplica; são de ordem sobrenatural.

O RACIOCINADOR

Sobrenatural! Que significa essa palavra? Não a entendo.

O inspirado

Alterações na ordem da natureza, profecias, milagres, prodígios de toda a
espécie.

O RACIOCINADOR

Prodígios!
Milagres! Nunca os vi.

O INSPIRADO

Outros os viram por vós. Multidão de testemunhos… o testemunho dos
povos…

O
RACIOCINADOR

O testemunho dos povos é de ordem sobrenatural?

O INSPIRADO

Não;
mas, quando unânime, não se pode contestar.

O RACIOClNADOR

Nada há de mais incontestável que os princípios da razão, e não há testemunho
humano que possa autorizar um absurdo.

O INSPIRADO

Oh! coração
empedernido! É a graça que não vos fala.

O RACIOCINADOR

A culpa não é minha, porque, segundo vós, devemos receber
primeiro a graça, para depois invocá-la. Falai-me, pois, vós, por ela.

o inspirado

Ah! é o que estou fazendo, mas não me escutais. Que me dizeis das
profecias?

O
RACIOCINADOR

Digo-vos, antes de mais nada, que tenho ouvido
tantas profecias como visto milagres. Além disso, não lhes concedo a menor autoridade.

O INSPIRADO

Satélite
do demónio! E por que não lhes concedeis autoridade ?

O RACIOCINADOR

Porque, para que tivessem autoridade, seriam
necessárias três coisas, cujo
concurso é impossível: que eu fosse testemunha da profecia, que o fosse do
acontecimento, e me fosse demonstrado que esse acontecimento não podia
coincidir, por acaso, com a profecia; porque, embora esta se tornasse mais
precisa, mais clara, mais luminosa que um axioma de geometria, visto que a
claridade de uma predição feita ao caso não impossibilita o seu cumprimento,
este cumprimento, ao realizar-se, nada provaria, em rigor, a favor de quem o
predisse.

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