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Olhemos para nós, meu jovem amigo, e, abstraindo de todo o interesse
pessoal, vejamos para onde nos levam nossos pendores. Com que espectáculo nos
consolamos mais; com o da felicidade ou o da desgraça alheia? Que melhor
impressão nos deixa e fazemos com maior prazer; um acto de bondade ou de
malvadez? Que mais te atrai no teatro? As cenas de grandes crimes? Arranca-te
as lágrimas o castigo de seus autores? Dizem os filósofos que só nos preocupa o
que nos interessa, quando se dá absolutamente o contrário. As delícias da
amizade e da humanidade consolam-nos das amarguras que sofremos, e
sentir-nos-íamos muito sós, muito desgraçados, se não tivéssemos com quem
compartilhar nossos prazeres. Se no coração humano nada de moral existe, donde
lhe vêm esses transportes de
admiração pelas acções heróicas,
esses arroubos de amor pelas grandes almas? Que relação tem com o interesse
privado esse entusiasmo pela virtude? Por que preferias ser Catão, que dilacera
as próprias entranhas, a César triunfante? Tira-nos do coração esse amor pelo
belo, e tirarás todo o encanto à vida. Aquele em cuja pequenina alma as paixões
apagaram os deliciosos sentimentos e que, à força de se concentrar em si mesmo,
acaba por só se amar a si, jamais saberá arrebatar-se, e seu coração gelado
nunca mais palpitará, nem uma doce ternura voltará a humedecer seus olhos, e
não desfrutará de nada mais. O desgraçado já não sente, nem vê; está morto.

Mas, por grande que seja o número dos maus sobre a terra, há poucas almas
cadavéricas insensíveis ao bom e ao justo, embora o bom e o justo não lhes
digam directamente respeito. Só nos comprazemos com a iniquidade que nos
beneficia; em tudo o mais, desejamos o amparo do inocente. Se numa rua ou
caminho, assistimos a um acto de violência ou de injustiça, logo se nos irrompe
do fundo da alma um movimento de cólera e indignação, que nos compele a
defender o oprimido; mas um dever mais poderoso nos retém, e as leis não nos
dão o direito de defender a inocência. Se, pelo contrário, depara-se-nos um
acto de generosidade ou clemência, quanta admiração, quanto amor não nos
inspira esse acto! Quem não pensará: gostaria de fazer o mesmo? Pouco importa,
é certo, que determinado homem tivesse sido malvado ou justo há dois mil anos;
e, no entanto, a história antiga desperta-nos o mesmo interesse que se esses
factos decorressem em nossos dias. Que me importam os crimes de Catilina?
Aterroriza-me a ideia; de ser sua vítima? Por que me infunde, pois, o mesmo
horror que se fosse meu contemporâneo? Não só odiamos os maus porque nos prejudiquem,
mas por serem maus. Não queremos apenas a felicidade própria, mas também a
alheia, que aumenta a nossa, quando não é feita a suas expensas. Compadecemo-nos ainda finalmente dos infortunados, e
sofremos com o seu mal, quando o presenciamos. Nem mesmo os mais perversos
conseguem furtar-se totalmente a essa propensão, que às vezes os põe em contradição consigo mesmo.
O ladrão, que desnuda os caminhantes, vai às vezes cobrir a nudez dos pobres: o
mais feroz assassino não deixa de amparar o homem que ele vê cair desmaiado.

Fala-se da voz do remorso, que castiga, em
segredo, os crimes ocultos e muitas vezes os delata. Ai! quem não ouviu ainda essa voz inoportuna? Falamos
por experiência, e desejaríamos abafar esse sentimento tirânico que tanto nos
atormenta. Obedeçamos à natureza, e saberemos do encanto do seu império, e,
depois de termos ouvido a sua voz, que prazer sentimos em formar bom conceito
de nós. O malvado receia e foge de si, lança em torno os olhos inquietos e
procura um objecto de distracção. Sem a sátira amarga, sem a mofa insultante,
estaria sempre triste; seu único prazer é o riso que escarnece. A serenidade do
justo, pelo contrário, é interior; seu riso não é maligno, mas alegre, e a
fonte está em si. E tão alegre é só como entre os outros, porque o
contentamento não lhe provém dos que se lhe aproximam, que são por ele
contagiados.

Olha para todos os povos do mundo, repassa as
suas histórias! Sempre
encontrarás as mesmas idéias de justiça e honestidade, os mesmos princípios de
moral, as mesmas noções do bem e do mal entre tantos cultos desumanos e
extravagantes, entre tão prodigiosa diversidade de costumes e de caracteres. O
antigo paganismo forjou deuses abomináveis, que teriam sido perseguidos na
terra como celerados; a única imagem de felicidade suprema que esses deuses nos
ofereceriam eram crimes a cometer e paixões a saciar. Mas o vício baixava da
morada divina revestido em vão de uma autoridade sagrada, porque o instinto
moral o afastava do coração humano. Celebrava-se a devassidão de Júpiter e
admirava-se a continência de Xenócrates; a casta Lucrécia adorava
a impudica Vénus. O intrépido Romano imolava-se ao Pavor, invocando o deus que
lhe mutilara o pai, e morria da mão do seu, sem proferir uma queixa. Os maiores
homens rendiam-se às divindades mais desprezíveis. A sacrossanta voz da
natureza, mais forte que a dos deuses, fazia-se respeitar na terra, parecendo
desterrar para o céu o crime e seus autores.

Há,
pois, no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude, pelo qual
julgamos boas ou más as nossas acções como as dos outros, a despeito das nossas
próprias máximas, e é a esse princípio que eu chamo consciência.

Mas ao som dessa palavra, de toda a parte se
levantam os clamores dos pretensos sábios.
Erro da infância, preconceito de educação! bradam todos à uma; só existe no
espírito humano o que nele introduzimos pela experiência, tudo julgamos por
meio de idéias adquiridas! Vão mais longe: chegam a rejeitar esse concerto
evidente e universal de todos os povos, e, contra a uniformidade que
resplandece na opinião dos homens, vão buscar às trevas algum exemplo obscuro,
que só eles conhecem, como se bastasse a corrupção de um povo para eliminar
todas as tendências da natureza, ou a espécie se acabasse com a existência dos
monstros. Mas de que serve ao céptico Montaigne passar tormentos para desterrar
para um canto do mundo um costume contrário às noções de justiça?[11]De que lhe serve atribuir aos viajantes mais suspeitos uma autoridade que nega
aos escritores mais célebres’? Alguns usos incertos e bizarros, fundados em
causas locais que desconhecemos, poderão acaso destruir a conclusão geral que
se tira do concurso dos povos, apenas concordes nesse ponto e opostos em tudo o mais? Ó! Montaigne, tu que te prezas de ser franco e
veraz, sê sincero e verdadeiro, quanto um filósofo o pode ser, e dize-me se
existe país na terra onde seja crime guardar a fé, ser-se clemente, generoso,
benemérito, onde se despreze o homem de bem e se honre o pérfido ?

Dizem que todos concorremos para o bem público pelo nosso interesse. Como explicar,
pois, que o justo contribua para ele em seu prejuízo? Que significa ir à morte
por interesse próprio ? Ninguém procede, decerto, senão para seu bem, mas, se
considerarmos o bem moral, só se explicarão por interesse próprio as acções dos
maus, e é mesmo de crer que ninguém procure ir mais longe. Abominável filosofia
a que proclamasse, como obstáculos a vencer, as acções virtuosas,
atribuindo-lhes deliberadamente baixos intuitos e motivos sem virtude em defesa
de sua tese, e nos levasse a envilecer Sócrates e caluniar a Régulo! Se
semelhantes doutrinas germinassem dentro de nós, contra elas se insurgiria
sempre a voz da natureza e da razão, e nenhum de seus adeptos teria a desculpa
da boa-fé.

Não
pretendo entrar aqui em discussões metafísicas, que não estão ao meu alcance
nem ao teu, e que, pinai, a nada conduzem. Já disse que não me propunha filosofar
contigo, mas que queria apenas ajudar-te a consultar teu coração. Ainda que
todos os filósofos do mundo me demonstrassem que estou em erro, bastava-me que
tu sentisses que tenho razão.

Devo, para isso, distinguir entre idéias
adquiridas e sentimentos naturais, pois que sentimos necessariamente antes de
conhecer; e, como não aprendemos
a desejar o bem, nem a evitar o mal, visto essa vontade nos vir da natureza, o
amor ao bem e o ódio ao mal são em nós, do mesmo modo, tão inevitáveis como o
amor a nós mesmos. Os actos da consciência não são opiniões, mas sentimentos,
embora as idéias nos venham de fora. Os sentimentos que os apreciam estão
dentro de nós, o só por eles percebemos
a discrepância ou a analogia que
existe entre nós e as coisas que devemos respeitar ou evitar.

Para nós, existir é sentir; nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior
à nossa inteligência, e já tínhamos sentimentos antes de ter idéias[12].
Seja qual for a causa do nosso ser, ele contribuiu para a nossa conservação,
dando-nos sentimentos de acordo com a natureza; e que estes sentimentos são
inatos, ninguém o vai negar. No que respeita ao indivíduo, tais sentimentos são
o amor de nós mesmos, o medo à dor, o horror à morte, o desejo de bem-estar.
Mas, se o homem é sensível por natureza, como não se pode pôr em dúvida, ou é
feito, pelo menos, para ser sensível, só o será por outros sentimentos inatos,
relativos à sua espécie, pois que, se considerarmos somente a necessidade
física, esta dispersa os homens em vez de os aproximar. É, portanto, do sistema
moral formado pela dupla reacção entre nós e nossos semelhantes que nasce o
impulso da consciência. Conhecer o bem, não é amá-lo; o homem não tem dele o
conhecimento inato, mas logo que a razão lho faz conhecer, ama-o pela consciência,
sentimento, este último, inato.

Não me
parece, pois, meu amigo, impossível explicar, como consequência da nossa
natureza, o princípio imediato da consciência, independente mesmo da razão. E
fosse embora impossível, tal explicação seria desnecessária, porque os que
negam esse princípio, admitido e reconhecido pelo género humano, não provam a
sua inexistência, limitam-se apenas a afirmá-la; temos tão bons fundamentos
como eles para declarar que existe, e dispomos, além disso, do testemunho
íntimo, e da voz da consciência que se faz ouvir por si só. Se os primeiros
lampejos do julgar nos confundem
e ofuscam os objectos, esperemos que nossos pobres olhos se reabram e
reafirmem, e veremos novamente esses objectos à luz da razão, como antes no-los mostrava a natureza.
Ou, melhor, sejamos mais simples e menos vãos, restringindo-nos aos primeiros
sentimentos que em nós se manifestam, pois Que é sempre para eles que o estudo
nos reconduz, quando não nos extravia.

 

Consciência! Consciência! Divino instinto, celeste voz imortal, guia seguro
de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre, juiz infalível do bem
e do mal, pelo qual o homem se assemelha a Deus, és tu que lhe sublimas a
natureza e fazes a moralidade das suas acções. Sem ti, nada sentiria que me
elevasse acima dos animais, como não fosse o triste privilégio de vagar de erro
em erro, levado por um entendimento sem norma e uma razão sem princípio.

Graças
ao céu, já estamos livres desse espantoso aparelho de filosofia; podemos ser
homens, sem ser sábios. Dispensados de consumir a vida no estudo da moral,
achamos, com menor esforço, um guia mais firme no dédalo imenso das opiniões
humanas. Não basta, no entanto, que esse guia exista; é mister saber
reconhecê-lo o segui-lo. Se a todos os corações fala, por que tão poucos o
entendem? Ah! porque nos fala a linguagem da natureza, que tudo nos faz
esquecer. A consciência é tímida ; ama a solidão e a paz. O mundo e o ruído
espantam-na. Os preconceitos, de que a querem fazer filha, são os seus inimigos
mais. cruéis, diante dos quais foge ou se cala, e cuja voz estridente apaga a
sua e não a deixa ouvir. O fanatismo ousa desfigurá-la e decreta o crime em seu
nome. Esmorece à força de abandonada; não nos torna a falar e a responder, e,
após tão longo desprezo, custa tanto despertá-la como custou bani-la.

Quantas vezes, em minhas investigações, não me cansei da frialdade que em mim
sentia! Quantas vezes a tristeza e o desgosto não me envenenaram as primeiras meditações, fazendo-as insuportáveis! Meu árido coração entregava-se, com
tíbio e desfalecido zelo, ao amolda verdade. Por que me atormentar — pensava —
à procura do que não existe? O bem moral não passa de uma quimera; o único real
é o prazer dos sentidos. Oh! quando uma vez se perde o gosto pelos prazeres da
alma, quão difícil é recuperá-lo! Porém mais difícil é adquiri-lo a quem nunca
o teve! Se existisse um homem tão miserável, sem uma única recordação que o
reconciliasse consigo mesmo e lhe desse a alegria de viver, esse homem seria
incapaz de se conhecer; e como não podia sentir a bondade que corresponde à sua
natureza, permaneceria forçosamente mau e seria eternamente infeliz. Ores,
porém, que haverá no mundo homem tão depravado que jamais entregasse o coração
à tentação de fazer bem? Essa tentação é tão natural e agradável que é
impossível resistir-lhe sempre; e a recordação do prazer que uma vez nos deu
basta para a lembrarmos constantemente. Infelizmente, ao princípio, não é fácil
satisfazê-la; tem mil razões para se esquivar aos pendores do coração. A falsa
prudência comprime-a nos limites do eu humano; com mil
esforços do coragem ousará franqueá-los. Comprazermo-nos em bem fazer é o
prémio das nossas boas obras, e só alcançamos esse prémio quando o merecemos.
Nada existe mais grato que a virtude, mas só assim a julgamos quando nos dá
alegria. Pretendemos abraçá-la, mas, como o Proteu da fábula, reveste-se, ao
princípio, de mil formas espantosas, só se mostrando na que realmente tem aos
que nunca a abandonaram.

Combatido sempre pelos sentimentos naturais, que se
pronunciavam a favor do interesse comum, e pela razão que tudo relacionava comigo, andaria a vida inteira
flutuando nessa alternativa contínua, se novas luzes me não iluminassem o
coração, e a verdade, que me firmou os juízos, não me tivesse marcado a conduta
e posto de acordo comigo mesmo. Não se pode estabelecer a virtude unicamente
pela razão. É inútil pretendê-lo. Que base sólida caberia dar-lhe? Dizem que a virtude é o amor da ordem. Mas pode e deve
sobrelevar-se esse amor ao que sinto pelo meu bem-estar? Que me dêem uma razão
mais clara e capaz; perfilhá-la-ei. No fundo, esse pretenso princípio é um
simples jogo de palavras, visto que poderei dizer também que o vício é o amor
da ordem, tomada em sentido inverso. Onde houver sentimento e inteligência
existe ordem moral. A diferença consiste em que o bom se coordena em relação ao
todo, e o mau ordena o todo em relação a si, tornando-se o centro de todas as
coisas; o primeiro mede seu raio e se coloca na circunferência, ordenando-se em
relação ao centro comum, que é Deus, e em relação a todos os círculos
concêntricos, que são os seres criados. Se a Divindade não existisse, só o mau
raciocinaria e o bom não passaria de um insensato. Oh!, meu filho, oxalá possas
ter um dia a sensação de alívio que experimentamos quando, esgotada a vaidade
de todos os juízos humanos e saboreada a amargura das paixões, achamos,
finalmente, tão perto de nós o caminho da sabedoria, o prémio dos trabalhos
desta vida, a fonte da felicidade, de que já havíamos desesperado. Todos os
deveres da lei natural, que a injustiça dos homens havia quase afastado do meu
coração, ressurgem J de novo em nome da eterna justiça, que mos impõe e vê
cumprir. Sinto apenas que sou a obra e o instrumento do Ser supremo, que quer o
bem, que o faz, que fará o meu com o concurso das minhas vontades e das suas e
pelo exercício da minha liberdade; submeto-me à ordem por ele estabelecida,
certo de desfrutar um dia dessa mesma ordem, onde encontrarei a felicidade. Que
maior felicidade, com efeito, do que nos sentirmos coordenados com um sistema
onde tudo está em ordem? Vítima da injustiça, suporto-a pacientemente, pensando
que é transitória e provém de um corpo que não é o meu. Se cometo uma má acção
sem testemunhas, sei que estou sendo visto e que constituirá na outra vida
testemunho do meu proceder na terra. Quando sofro uma injustiça, sei que o Ser justo, que tudo rege, ma
compensará, e que as exigências
do corpo e as misérias da vida me tornarão a ideia da morte mais suportável. Serão
menos laços a romper quando abandonar o mundo.

Por que tenho a alma submetida aos sentidos e
encadeada ao corpo que a escraviza e oprime? Não sei, porque não estou dentro dos desígnios de Deus.
Mas não julgo temerário aventurar umas modestas conjecturas. Se o espírito
humano fosse livre e puro, que méritos seriam os seus em amar e seguir uma
ordem já estabelecida e que não teria interesse em alterar? Seria feliz, é
certo, mas faltaria a essa felicidade o grau mais sublime: a glória da virtude e
a própria satisfação. Assemelhar-se-ia aos anjos, mas um homem virtuoso é
decerto superior a eles. Unida a alma a um corpo mortal por laços tão poderosos
como incompreensíveis, o cuidado da conservação desse corpo obriga-a a
relacionar tudo com ele, dando-lhe um interesse em pugna com a ordem geral, que
é, no entanto, capaz de ver e amar; só assim o exercício da sua liberdade se
converto em mérito e recompensa, ao mesmo tempo, e lhe tece uma felicidade
inalterável, combatendo-lhe as paixões terrestres e mantendo-a fiel à sua
primeira vontade.

Se, mesmo no estado de rebaixamento em que nos
encontramos durante a vida, são
legítimos nossos primeiros impulsos; se todos nossos vícios de nós provêm, por
que nos queixamos de que nos subjuguem? Por que atribuir ao autor das coisas os
males que só nós nos infligimos e os inimigos que contra nós armamos? Ah! não
corrompamos o homem; ele será sempre bom sem sacrifício, e feliz sem remorsos.
Os culpados, que se crêem forçados a cometer o crime, são tão mentirosos como malvados,
porque sabem que a fraqueza de que se queixam é a sua própria obra, que sua
primeira depravação é fruto de sua vontade e que, à força de quererem ceder às
tentações, lhes cedem, finalmente, mesmo a pesar seu, tornando-as
irresistíveis. Não depende deles, certamente, não
serem maus nem fracos, mas, sim, não se fazerem uma coisa nem outra. Oh! quão
fácil não seria sermos senhores de nós e das nossas paixões, mesmo durante esta
vida, se, ainda não adquiridos os nossos hábitos e quando nosso espírito começa
a abrir-se, soubéssemos ocupá-lo com os objectos que deve conhecer para avaliar
os que não conhece; se quiséssemos ficar realmente esclarecidos, não para
brilhar aos olhos alheios, mas para sermos bons e sábios, de acordo com a nossa
natureza, a fim de que encontrássemos a felicidade no cumprimento dos deveres;
parece-nos este estudo fastidioso e árduo porque, quando nele pensamos, já
estamos vencidos pelo vício e entregues às nossas paixões. Fixamos nossos
juízos e apreço antes de conhecer o bem e o mal, e, amoldando tudo a tão falsa
medida, a nada damos seu justo valor.


uma idade em que o coração, ainda livre, mas ardente, inquieto, ávido da
felicidade que ignora, a procura com curiosa incerteza, e, enganado pelos
sentidos, se volta para a sua falsa imagem, julgando vê-la onde não existe.
Muito tempo duraram em mim essas ilusões! Ah! descobri-as já tarde e não as
pude destruir completamente ; e agora durarão tanto como o corpo mortal que as
causa. Ao menos, é inútil que tentem seduzir-me porque já não me enganam;
conheço-as pelo que são, sigo-as, mas desprezo-as, e, longe de ver nelas o
objecto da minha felicidade, vejo o seu obstáculo. Aspiro ao momento em que,
livre dos entraves do corpo, eu seja eu mesmo sem contradições nem
partilhas, e precise apenas de mim para ser feliz; entrementes, já o sou nesta
vida, porque faço abstracção de todos os males, e a contemplo como quase
estranha ao meu ser, sabendo que de mim depende todo o verdadeiro bem que dela
possa tirar.

Para me antecipar, enquanto é tempo, a esse estado de felicidade, de força
e de liberdade, exercito-me nas contemplações sublimes. Medito na ordem do
universo não para explicá-lo por meio de vãos sistemas, mas para admirá-lo incessantemente e admirar o sábio autor que nele se faz sentir.
Converso com ele, embebo todas as minhas faculdades na sua divina essência,
enterneço-me com os seus benefícios e bendigo-o pelos seus dons; mas não lhe
dirijo preces. Que lhe poderia eu pedir? Que alterasse, para me dar satisfação,
o curso das coisas e operasse milagres a meu favor? Como pretender que a ordem
se perturbe em benefício meu, eu, que devo amar sobre todas as coisas a ordem
que a sua sabedoria estabeleceu e a sua providência mantém! Não, este rogo
temerário, não mereceria louvor, mas castigo. Não lhe peço tão pouco me conceda
o poder de fazer bem; para que solicitar dele o que dele já recebi? Não me
concedeu a consciência para amar o bem, a razão para o conhecer, a liberdade
para optar? Se proceder mal, não terei desculpa; procederei assim, porque
quero. Pedir-lhe que me modifique a vontade? Equivaleria a pedir-lhe o que ele
me pede, e pretender que trabalhasse por mim, recebendo eu o salário. Se não
estou satisfeito com o meu estado, é porque quero ser o que não sou e desejo a
desordem e o mal. Fonte da justiça e de verdade, Deus clemente e bom!, tenho
tanta confiança em ti que a maior ânsia de meu coração é que seja feita a tua
vontade. Juntando-lhe a minha, sigo teus passos e anuo à tua bondade, e creio
já participar no mundo da suprema felicidade que é o prémio da minha conduta.

Na justa desconfiança de mim mesmo, só lhe peço, ou melhor, aguardo de
sua justiça que rectifique meu erro, quando esse erro me extraviar e me trouxer
perigo. Quando estamos de boa-fé, não nos julgamos infalíveis, e os juízos que
mais verdadeiros nos parecem são talvez outras tantas falsidades. Por que não
seguir, pois, os seus? E quantos homens estão de acordo em tudo? A ilusão que
me engana provém de mim mesmo; só ele me pode curar. Faço o que posso para
alcançar a verdade, mas a origem da verdade está muito alta; se me faltarem forças
para seguir adiante, a culpa não será minha. A ela corresponderá aproximar-se.

O bom sacerdote .havia falado com veemência. Estava comovido, e eu também.
Parecia-me ouvir o divino Orfeu cantando os primeiros hinos e ensinando aos
homens o culto dos deuses. Tinha, porém, muitas objecções a fazer–Ihe; mas não
lhe fiz nenhuma, porque não eram tão sólidas como confusas, e a persuasão
estava de seu lado. Falava-me, segundo os ditados, da sua consciência, e a
minha parecia confirmar tudo quanto dizia.

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