Responsabilidade Pessoal e Coletiva em Hannah Arendt

Responsabilidade Pessoal e Coletiva em Hannah Arendt.[1]

Cristian Abreu de Quevedo[2]

Resumo

A sociedade e o indivíduo tendem a esquecer de suas responsabilidades para com os acontecimentos políticos. Como se as decisões dissessem respeito somente aos seus representantes e as responsabilidades pessoais e coletivas fossem inexistentes, sendo incapazes de julgar as ações realizadas. Este artigo pretende abordar estes temas a partir de Hannah Arendt, possibilitando uma reflexão atual sobre a política.

Palavras-chaves: responsabilidade pessoal e coletiva, julgamento humano, sistema e totalitarismo.

1. Localizando a autora.

Hannah Arendt nasceu na Alemanha (1902 – 1975) e era judia. Devido aos horrores da 2º Guerra Mundial, fugiu para a Itália e depois para os Estados Unidos, onde permaneceu até a sua morte. Sua obra pode ser considerada fenomenológica, pois enfatiza a dimensão intencional da consciência como ponto de partida para filosofar. Ela preocupa-se em ajustar o si próprio de cada ser humano com a política.

Seria perigoso pensar os temas que Hannah Arendt desenvolve sem ressaltar que seu pensamento refere-se especialmente sobre o regime totalitário empregado na Alemanha nazista de Hitler. Foi a partir de Auschwitz, onde pessoas estavam sendo mortas inocentemente, que ela começa a refletir sobre a política. A obra Origens do Totalitarismo (1951) é onde ela aborda o tema do totalitarismo em sua plenitude. Esse tema perpassa todos os seus escritos.

A atualidade de seu pensamento reside no fato de colocar o homem como responsável por suas ações e a concepção de que o mundo em que estamos pode ser velho, mas para quem nasce ele é novo e precisamos ter responsabilidade para com o que iremos deixar. A responsabilidade pessoal e coletiva encontra seu lugar como reflexão sobre o que consideramos correto ou não, tanto pessoal como coletivamente.

Iremos abordar essas questões dentro do livro Responsabilidade e Julgamento, que reúne artigos proferidos por Hannah Arendt ao longo de suas aulas e palestras. O capitulo de titulo Responsabilidade Pessoal sob a Ditadura, é uma resposta de Hannah Arendt aos críticos, aos quais teriam interpretado mal seus pensamentos em sua obra Eichmann em Jerusalém.

2. Responsabilidade pessoal

Desde Sócrates, uma frase ressoa forte: é melhor sofrer o mal do que fazer o mal. Uma convicção difundida de que não se resiste a todas as tentações, que não se pode confiar em ninguém (na medida que não resistiríamos num momento critico) e que ser tentado e forçado é o mesmo.

Se alguém disser: mate esta pessoa ou morrerá, estará apenas sendo tentando a matar alguém, não sendo forçando a matar. Ser tentado não é desculpa moral para matar. Poderíamos dizer que quem julga tais questões produz um juízo a cerca de algum fato e teria que estar presente. O direito ou capacidade de julgar ocupa lugar nas questões morais.

Hoje se acha um medo comum, o medo de julgar. Já que como diz a frase: não julgue para não ser julgado, produz inconscientemente o medo de que se eu julgar, estarei sendo julgado. A não-vontade de julgar seria admitida se não fossemos agentes livres.

Nesse caso, de não-julgar, podemos dizer que a idéia que se possui é a de que somos todos parecidos, ruins e quem tenta ou finge ser inocente deve ser realmente decente ou um hipócrita e em todos os casos deve nos deixar em paz. Mas este modo de pensamento não procede com a verdade, deve-se culpar este ou aquele indivíduo por este ou aquele crime, o indivíduo na sua singularidade.

Dar nomes e atribuir culpa àqueles que estão no exercício do poder, ou mesmo dos mortos, é algo que parece estar imbuído de um medo comum. Pois está implícito como que uma falha de responsabilidade em quem está sendo julgado e outra em quem julga. Justamente é por essa causa que existem as leis, através das instituições, para julgar as questões de responsabilidade pessoal. São julgados homens de carne e osso, excluído tendências ou grupos, que transgrediram aquilo que faz parte de nossa integridade humana comum.

As questões morais e legais não são idênticas, mas pressupõe o poder de julgamento. Como distinguir o certo do errado, separado do conhecimento das leis e sem ter estado em igual situação? Parece-nos que a resposta requer uma localização não da responsabilidade pessoal, mas do julgamento pessoal.

Mesmo as pessoas que possuem pouco preparo mental ou nenhum preparo podem julgar? No caso dos intelectualmente preparados que falham, reside onde o porquê da falha?

A punição acontece legalmente por dois modos: a necessidade de a sociedade ser protegida por um crime (reabilitação de criminosos e força dissuasiva para criminosos em potenciais) e a justiça retributiva. Mas esses dois modos não se aplicam aos criminosos de guerra, pois não são criminosos comuns, provavelmente não cometeram outros crimes e a sociedade não precisa ser protegida contra eles. Que possam ser reabilitados é improvável; quanto a dissuadir as chances são pequenas devido a magnitude de seus crimes e a noção de retribuição também não funciona.

O senso de justiça nos exige que façamos algo, como se fosse um desejo de vingança. A lei e a punição surgem para que não aconteça um ciclo interminável de vinganças. O mesmo nos afirma que as noções falharam no estado totalitário. Terá de se começar pela analise do que o julgamento humano pode ou não realizar. Pois diante do que está exposto, as noções não se encontram nas regrais gerais nem nas particulares.

O julgamento humano é uma faculdade que nos capacita a julgar racionalmente; funciona espontaneamente sem estar limitada por padrões ou regras e produz seus princípios pela própria atividade de julgar. O problema do julgamento é um problema da moralidade e precisa de esclarecimentos para se chegar á questão geral da responsabilidade pessoal neste sentido: responsabilidade política que todo governo assume pelas façanhas e malfeitorias de seu antecessor e toda nação pelos feitos e malfeitorias do passado.

Temos de ter a concepção de que vivemos numa continuação histórica, onde recebemos metaforicamente a carga de culpa e os feitos daqueles que vieram antes de nós. O político assume o passado e quer assumir responsabilidade política para arrumar o tempo. Este sentido de renovar ou arrumar deve ser entendido por que somos recém vindos a um mundo que existia antes de nós e vai continuar depois que partirmos e também por que nós deixaremos nossa carga para os sucessores.

Não podemos sentir culpa pelo que não fizemos. Não é este tipo de responsabilidade pessoal que se está discutindo, pois quando todos são culpados ninguém o é. A culpa e inocência só tem sentido quando aplicadas a indivíduos. Torna-se mentiroso culpar somente uma pessoa pelo andamento de determinado grupo. Todos são responsáveis e devem ser julgados individualmente.

Dentro de um sistema político existem relações de vários ramos e são as pessoas usadas pelo sistema que mantém a administração em andamento. O que poderíamos chamar de Dente de Engrenagem[3], onde cada pessoa se torna descartável sem mudar o sistema mesmo que seja substituída. A questão da responsabilidade pessoal por parte de quem controla toda a engrenagem é uma demanda referente ao sistema.

Quando estamos falando de uma ditadura ou um sistema totalitário deve ser claro que somente uma pessoa toma as decisões. Fora este indivíduo, alguém mais podia ser considerado responsável? Pode-se dizer que se sou substituível (um dente de engrenagem) a ação que eu não tivesse feito seria realizada por outro e isso diminuiria minha responsabilidade?

No caso Eichmann a explicação acima não fazia sentido, era necessário buscar um ponto de vista diferente. Não estava em julgamento um sistema, mas um ser humano. Se fosse permitido declarar-se culpado ou inocente tornar-se-ia um bode expiatório. Se transferisse responsabilidades, teria de nomear pessoas. O julgamento deu certo por que transformaram-no num homem e assim as questões de responsabilidade pessoal e culpas legais puderam ser julgadas.

O contexto do sistema não deve ser deixado de fora por que envolve as questões legais e morais. Numa ditadura são privados os cidadãos e seus direitos; a vida privada e a atividade política podem continuar. Os crimes nestes são contra inimigos declarados. No totalitarismo a dominação se estende á todas as esferas da vida desde a privada até a pública. Os crimes são contra pessoas inocentes. Mesmo quem participa da vida pública, independente der se do partido, liga-se às ações do governo.

Os juízes nos tribunais declararam que os homens não deveriam ter participado de crimes realizados pelo governo, pois sabe-se o que é certo e errado, sendo esta uma questão de responsabilidade. Uma das objeções feitas é a de que seria correto permanecer nos cargos para evitar um mal maior. Mentira, pois de qualquer forma está se escolhendo o mal conscientemente. As pessoas deveriam parar e pensar ao invés de se prenderem a regras há muito esquecidas, tais como a de que é melhor evitar um mal maior fazendo um menor.

O centro moral foi atingido porque percebeu-se que onde havia uma ordem que dizia “não matarás” foi substituída pela “matarás”, não os inimigos e sim os inocentes. O povo alemão acreditava na nova ordem como se a moralidade se reduzisse ao seu significado etimológico: conjunto de costumes.

Aqueles que não participaram foram os únicos que julgaram por si próprios. Eles se questionaram se conseguiriam viver consigo mesmos. Aqueles que se mantém presos a regras e não julgam o certo do errado, sendo coniventes com o mal, não são confiáveis. Todos se tornam responsáveis na medida que se apóia qualquer tipo de mal. Somente no caso da escravidão é que pode existir uma obediência não possível de ser refutada.

Enquanto membros políticos temos responsabilidades para com os atos porque os apoiamos. Se fomos obedientes a mesma responsabilidade está presente. Neste sentido, “os melhores de todos serão aqueles que têm uma única certeza: independentemente dos fatos (…) estaremos condenados a viver conosco mesmos” (HANNAH, 2003, p. 108).

3. Responsabilidade Coletiva

Temos uma suposição de que haveria responsabilidade por coisas que não fizemos, mas não há um ser ou sentir-se culpado por coisas que não participamos. A culpa, diferente da responsabilidade, se relaciona sempre com o pessoal. Liga-se a um ato, não com as intenções. Pode-se dizer que assumimos metaforicamente as culpas de nossos pais, mas o que realmente pode acontecer é que poderemos pagar por eles.

Possuo compaixão por outra pessoa quando percebo que não sou eu quem sofre, pode-se dizer que tenho solidariedade com a pessoa. “Somos todos culpados” aparece como uma declaração de solidariedade com os malfeitores. A responsabilidade coletiva diz respeito aos dilemas políticos, distintos dos legais ou morais.

Se estivermos diante de um julgamento onde um réu aparece como participante de um determinado grupo que cometeu crimes e afirme que foi um mero dente de engrenagem, no momento em que for julgado aparecerá como uma pessoa sendo sentenciado de acordo com o que fez.

Responsabilidade precisa ser diferenciada de culpa. Por exemplo, num assalto a banco o que está em jogo são os vários graus de culpa. Duas condições se fazem necessárias para que se tenha responsabilidade coletiva: a primeira que devo ser considerado responsável por algo que não fiz; a segunda, o fato de que eu pertença a um grupo do qual não seja possível sair. Por exemplo, mesmo que eu mude de país estarei pertencendo a um grupo.

A responsabilidade coletiva se torna política, pois a comunidade pode assumir responsabilidade dos atos de um dos membros ou pode ser considerada responsável pelo ato de um membro em seu nome. Quando os padrões morais e políticos entram em conflito, a linha divisória entre responsabilidade política (coletiva) ou legal (pessoal) se torna mais clara.

Uma dificuldade de discutir as questões propostas se faz presente em razão dos termos que usamos para moralidade (costumes) e a ética (maneiras), que dizem respeito se a conduta do cidadão é boa para o mundo, não se ele é bom. O alvo de interesse é o mundo e não eu. Na antiguidade quando se fazia o mal, o mesmo só poderia ser apagado com outro mal, e somente um tribunal poderia parar com as cadeias intermináveis de malfeitorias.

Com o cristianismo a inquietação com o mundo e as obrigações a ele ligadas muda para as preocupações com a alma e sua salvação. Ou seja, evitar participação pública e se preocupar com o privado. As regras, por causa da origem divina, eram absolutas e suas sanções consistiam em recompensas e castigos futuros. Mas quando a fé deixa de existir, essas regras não sobrevivem.

Nas considerações morais o eu, e nas políticas de comportamento o mundo. A frase socrática de que seria melhor sofrer o mal do que fazer o mal nos diz que vivo junto com os outros e com meu eu. Esse viver junto com meu eu tem precedência sobre todos os outros. O importante é que não haja nenhum tipo de mal, pois sofrer e fazer são igualmente ruins, a nossa obrigação é evitar que aconteçam.

BIBLIOGRAFIA

  • AENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991.
  • _______________. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003.
  • ________________. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
  • _______________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Cia das Letras, 2000.
  • _______________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • _______________. Hannah Arendt – Martin Heidegger: correspondência1925/1975.

[1] Artigo produzido para a Semana Acadêmica de Filosofia da UNIVERSIADE DE PASSO FUNDO. Dia 15 de Junho de 2005.

[2] Graduado em Filosofia pela UPF.

[3] Hannah Arendt usa esta expressão para explicar as questões referentes à responsabilidade pessoal dentro de um estado.

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