Rousseau e a liberdade
Pedro Soares de
Oliveira neto*
Resumo: O artigo tem como objetivo demonstrar que o conceito de
liberdade fundamentado por Rousseau é a origem da degeneração do homem; Fazendo
uma releitura do seu clássico “A origem da desigualdade entre os homens”.
Palavras-chave: Jean-Jacques Rousseau; Liberdade; Estado Natural;
Sociedade; Propriedade.
* Licenciado e Bacharel em Filosofia na Universidade
Federal de Santa Catarina – [email protected]
Qual a origem da desigualdade entre os homens? Será ela sancionada
pela lei natural? Com o intuito de responder a estas questões — propostas,
em 1753, pela Academia de Dijon — o pensador Jean-Jacques Rousseau,
afastando-se da atividade febril dos homens em sociedade, buscou o silêncio do
campo. Isolando-se em uma propriedade rural, longe dos confortos da cidade e
próximo aos apelos da natureza, tendo sob os olhos o ritmo lento e imemorial em
que crescem as plantas e em que procriam, vivem e desaparecem os animais,
tentou reviver mentalmente o estado primitivo da espécie humana, antes do
advento das primeiras comunidades organizadas. Deste esforço imaginativo e
criativo resultou um documento que serve como matéria de reflexão e inspiração
para todos os que procuram uma saída para as desgraças auto-infligidas pelo
próprio homem: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens.
Animal entre os animais, a vida do homem situava-se como que fora do
tempo, em uma completa comunhão com a natureza, seguindo o movimento uniforme
de forças inelutáveis. Assim como o animal, era guiado seguramente pelos
instintos de que era dotado, aptidões plenamente suficientes para suprir as
poucas necessidades que provava: a alimentação, o impulso à procriação, o singelo amor-de-si que ditava a cada um a preservação da própria vida.
Descrevendo este estágio da humanidade, que bem poderia ser definido como a sua infância, Rousseau diz:
“Os únicos bens que [o
homem] conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso; os únicos
males que teme são a dor e a fome; digo a dor e não a morte, pois jamais o
animal saberá o que é morrer, e o conhecimento da morte e de seus terrores
é uma das primeiras aquisições que o homem fez, aos se distanciar da condição
animal” (Discurso sobre a desigualdade, Primeira Parte, §18).
Mas, de que modo ocorreu este distanciamento, este desligamento do fluxo
natural que permitiu o despertar para esta condição que lhe era peculiar,
oferecendo ao homem a imagem e a previsão de sua destruição iminente na morte?
Pois o animal não sabe o que é morrer, dado que não pode destacar-se do momento
em que vive simplesmente, seguindo suas puras disposições naturais; ele não
pode deslocar-se, como o homem, com o auxílio da imaginação, no tempo e no espaço.
O ser natural é um com a Natureza em seu conjunto, não podendo
separar-se, enfim, em um eu que o distinga de um outro. Segundo
Rousseau, é uma faculdade especificamente humana, esta que lhe permite fugir à
corrente dos instintos, e o nome que lhe dá é liberdade. A
liberdade, então, para Rousseau, é como que uma falha ou um desvio que provoca
no homem a sua saída para fora dele mesmo: é a condição, não apenas de seu
progresso no aperfeiçoamento de suas faculdades mentais, mas
também de sua infelicidade no afastamento do paraíso terrestre em que se
encontrava inicialmente.
Neste ponto de sua trajetória, o ser humano assume a sua história e pode
dispor tanto de seu passado (pelo uso da memória) como de seu futuro (no qual é
capaz de projetar-se com as ações que imagina). Mas para que isso ocorresse foi
preciso que ele, partindo de uma vivência que se resolvia quase que
imediatamente em uma pura exterioridade, em um contato direto com as coisas (e
com os outros indivíduos) que não deixava vestígios, se desdobrasse em uma
consciência cada vez mais complexa e plena do ambiente que o circundava.
Desde então a vida em comum se tornou para ele algo indispensável, e as
relações familiares fortaleceram cada vez mais os laços de amizade e de
simpatia entre homens, mulheres e seus filhos. Amparados uns nos outros,
conheceram um período de segurança e uma abundância diversa daquela que gozavam
separados no estado de natureza primitivo. Capazes de comparar as impressões
anteriores com as que viviam presentemente, perceberam que as sensações podiam
ser mais doces ou mais amargas, dependendo da circunstância em que se
encontravam. Isto os levou a desejar prolongar sempre mais os estados de
prazer, guiados pela miragem de uma perfectibilidade sempre
crescente. Esta virtude de abstrair um ideal e tentar conformar a realidade a
esta idéia, segundo Rousseau, foi a causa de uma busca incessante por novas
formas, cada vez mais refinadas, de aplicar as faculdades latentes no homem.
Foi também a partir deste momento, em que cada um reconheceu o outro diante de
si como um igual, que a possibilidade (e também a necessidade) de uma
linguagem se fez sentir.
Por outro lado, à medida que cada indivíduo desenvolvia tais faculdades,
o desejo de reconhecimento por seus iguais tornou-se difícil de satisfazer. A
necessidade de imposição de sua própria existência sobre a atenção dos demais
fez que o amor-de-si (voltado para a simples preservação de cada um)
degenerasse em uma supervalorização egoísta no amor-próprio. A
esta altura o homem estava já completamente acorrentado àquelas relações
sociais que pareciam, a princípio, dar uma dimensão nova e positiva à sua
existência.
A afirmação da própria individualidade foi marcada, em seguida, por um
impulso para apropriar-se de tudo, seja dos bens materiais, seja da vida dos
outros seres. Rousseau comenta esta tendência nascente com palavras sombrias:
“O primeiro que, tendo
cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas
bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade
civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado
ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando ou buracos,
tivesse gritado a seus semelhante: ‘Fugi às palavras deste impostor; estareis perdidos
se esquecerdes que os frutos pertencem a todo, e que a terra não é de ninguém.”
(Discurso sobre a desigualdade, Segunda Parte, §1).
Estabelecido o direito de propriedade, mostrou-se evidente que forças
individuais não poderiam manter tais posses. Sem um poder coercitivo
abrangente, nada podia impedir que bandos de invasores se apossassem
violentamente de qualquer bem (terras, colheitas, animais, filhos e mulheres
etc.) acumulado nas mãos de um único proprietário indefeso. Rousseau afirma
claramente que a formação de um Estado com poder absoluto sobre todos os
súditos teria sido um estratagema urdido por aqueles que tinham acumulado um
grande quantidade de bens e que, por isto mesmo, eram os que mais tinham a
temer em tais circunstâncias.
Podemos questionar agora a aparente contradição do conceito de liberdade em Rousseau. Por um lado, significa a expulsão de um estado de natureza
idílico, uma perversão do animal no homem. Por outro, porém, ela é aquilo que
ele perdeu ao abdicar de seu direito natural, em função de uma vida social
organizada em torno do poder absoluto da soberania. No entanto, lembremos que,
apesar de ser a causa de seu rompimento com a natureza, a liberdade é ela mesma um dom natural no ser humano. Todas as paixões, desejos,
abusos derivados da imperfeição obrigatória das leis, as aquisições das artes e
das ciências, assim como as demais atividades supérfluas que se multiplicaram
com o convívio social são apenas desenvolvimentos de potencialidades que já se
encontravam no homem. É verdade que o excesso de todas estas coisas representam
algo de nocivo para a humanidade, mas Rousseau parece indicar que, mais uma vez
(já que um retorno ao estado de natureza original seria impossível), o homem
poderia exercer a sua liberdade, dando um novo salto em sua
história; poderia sacudir de seus ombros o jugo dos déspotas que traíram
aqueles que depositaram neles sua confiança e seu poder. Rousseau aponta
decididamente para a revolução como um meio de refazer sobre outras bases o
contrato social deturpado, nas raízes, pelos senhores. Porém, logo que uma nova
ordem fosse estabelecida, ele previa que esta inevitavelmente se deterioraria
em seguida, por força das contingências do mundo em que vivemos. Assim, o único
modo de manter viva a liberdade dos cidadãos seria a possibilidade de, guiados
por uma assembléia perenemente ativa, aperfeiçoar sem cessar as condições de
toda a sociedade, promovendo não só a igualdade de direitos, mas a igualdade de
posses para todos. Depois das previsões de Rousseau, efetivamente, mais de uma
revolução foi traída, e homens como Trótski, por exemplo, que partilharam de
sua visão ao propor o conceito de revolução permanente, foram esmagados
mais de uma vez. Não importa: o homem foi capaz se adaptar para a sobrevivência
durante o longo percurso da espécie; por que não seria novamente capaz de
projetar e fazer brotar, em outros terrenos, aquele germe de liberdade que a natureza nele depositou como uma mãe benfazeja?
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Referência Bibliográfica:
ROUSSEAU, Jacques. A Origem da Desigualdade Entre os
Homens. Ed. Escala. São Paulo, 2007.