História da Filosofia Medieval – século XIII

Noções de História da Filosofia (1918)

Manual do Padre Leonel Franca.

CAPITULO II

SEGUNDO PERÍODO DA FILOSOFIA MEDIEVAL

(SÉCULO XIII)

INTRODUÇÃO.

71. INTRODUÇÃO. — CARACTERES GERAIS — O século XIII foi o período mais brilhante da Idade Média, e, talvez, o mais glorioso na história do gênero humano. Em nenhuma outra época foi a influência da Igreja mais vasta, mais profunda, mais eficaz. Restam ainda, sem dúvida, em soberanos e povos, lastimáveis vestígios da antiga barbaria. A história registra tiranias e vinganças, aponta crimes e atrocidades que fora pueril querer ocultar ou justificar. Mas, que século não os praticou? Não são estas nódoas pre-calços dolorosos da liberdade e fragilidade da nossa natureza? Não são os claro-escuros inevitáveis de todos os quadros da história humana? Que montam estas sombras diante das luzes de uma grande civilização feita mais de grandeza moral e de elevação das almas do que de progressso material? Época assim, de tanta unidade das inteligências, de verdadeira liberdade, de paz e tranqüilidade dos povos, época de entusiasmos generosos por tudo o que é belo e grande na ordem intelectual e moral, literária e artística, não a viu semelhante a história.

É o tempo da renascença cristã, mais digna, mais nobre, mais humana que a paga dos séculos XV e XVI.

No governo da Igreja é o século de Inocêncio III e de Gregório IX, paladinos do direito, protetores das ciências e das letras, defensores dos interesses dos povos.

Na política, em França é o século de S. Luiz "personificação sublime do cavalheirismo cristão em toda a sua augusta magestade" (Montalembert) ; na Espanha é o século de S. Fernando, libertador de quase todo o território pátrio, guerreiro tão destemido quão piedoso santo; na Inglaterra, se a realeza se degrada e dá escândalos, a Igreja brilha em todo o seu esplendor — é o século de S. Edmundo de Cantuária, de Ricardo de Winchester, de Estêvão Langton e dos barões católicos a cujo zelo e coragem deve a Inglaterra o melhor de suas liberdades tradicionais: o Parlamento britânico e a Magna Carta, rehabilitação das leis de São Eduardo e consagração do direito público da Europa cristã.

Ε nas artes? Que admirável florescência artística!

Na arquitetura, é o século das grandes catedrais góticas de Colônia, Chartres, Reims, Auxerre, Amiens, Salisbury, Westminster, Burgos e Toledo, nas quais o gênio cristão, sublime na humildade obscura e anônima de seu amor, elevou monumentos dignos da grandeza daquelas almas, e simbolicamente expressivos da sua tendência para o céu. Como a representam bem o esguio das flechas, o aprumado das torres, a esbelta elegância destas colunas que, simètricamente fronteiras, se elevam, como a prece, para lá no alto, quais mãos postas, se aproximarem no arco das ogivas!

Na pintura, é o século de Guido de Siena, de Giotto e Cimabue que preparam Fra Angélico e as grandes escolas da pintura italiana; é o século das miniaturas religiosas, das iluminuras, milagres de paciência e de acabamento, destes vitrais singelos pelos quais coa nas nossas Igrejas a luz do sol, como a luz da fé — através das cenas do Evangelho.

Ε na poesia? Que revoada de poetas, gênios sem nome que, na epopéia, na elegia, nas trovas inspiradas, cantaram todos os grandes assuntos: Deus e o céu, a alma e a natureza, a glória, o amor, a honra e a bravura. Ε o Lauda Sion, o Dies irae, o Stabat mater? Ε não bastaria Dante para imortalizar um século?

Na ciência, é o século da introdução da álgebra e dos algarismos árabes no Ocidente, o da invenção ou, pelo menos, da admissão geral da bússola, o século do primeiro despertar das ciências experimentais (64).

Inqualificável ingratidão fora a nossa se desprezássemos, ainda nas ciências físicas, os cabedais lentamente acumulados pelos esforços penosos dos nossos maiores. Hoje muito mais rápido, rapidíssimo é o progresso das ciências, mas convém não esquecer que êle representa o juro de um capital fabuloso constituído pela energia, pela paciência e pela perseverança destes bons velhos.

Foi neste esplendor geral da civilização que a filosofia atingiu o apogeu do seu desenvolvimento. Os talentos de incontestável valor que, depois dos laboriosos esforços do período antecedente, erguem as grandes sínteses escolásticas, afirmam o pensamento cristão em toda a pujança do seu vigor.

Para esta florescência da filosofia, além do aparecimento de, grandes gênios, contribuíram poderosamente três fatores.

A. A introdução no Ocidente católico das obras completas de Aristóteles. Enquanto no período anterior só se conhecia o Orga-non, no princípio do see. XIII divulga-se pelas escolas toda a enciclopédia aristotélica. As primeiras obras que correram, traduções latinas, feitas sobre as traduções árabes do siríaco, traduzido do original grego, passando ainda, não raro, pelo hébreu ou por uma língua vulgar, eram naturalmente imperfeitas e deturparam tanto o pensamento de Aristóteles que motivaram em 1215 as proibições da autoridade eclesiástica. Mais tarde, quando se obtiveram traduções diretas do grego, as proibições perderam sua força e em 1254 já encontramos na Universidade de Paris as obras de Aristóteles prescritas como livros de texto. Quase simultaneamente, foram também conhecidos nas escolas cristãs os escritos de Avicena, Avicebron e Averróes vertidos para o latim por um célebre colégio de tradutores fundado pelo arcebispo de Toledo.

Β. A criação das Universidades. A reunião de todos os mestres e alunos das escolas de Paris (universitas maoistrorum et sco-larium) sob a jurisdição do cancelário da catedral de "Notre Dame", foi, nos fins do see. XII, o berço da famosa Universidade que se tornou com o tempo o maior centro de cultura e de vida intelectual da Europa (65). Mais tarde, modeladas mais ou menos sobre a de Paris, surgiram as Universidades de Oxford, Cambridge e outras (66).

C. A fundação das ordens mendicantes de S. Francisco e de S. Domingos, de cujas fileiras saíram os mestres mais brilhantes e profundos das universidades medievais.

72. DIVISÃO — Atendendo mais à orientação das idéias do aue à ordem estritamente cronológica, classificaremos os filósofos deste período em quatro grupos: 1) Escola franciscana anterior a S. Tomás; 2) Alberto Magno e Tomás de Aquino; 3) Tomistas, an-titomistas e ecléticos; 4) Nova escola franciscana. Duns Scoto.

Por não nos podermos deter longamente na exposição de cada sistema, em particular, daremos, ao falar de S. Tomás, uma relação mais minuciosa da síntese escolástico-tomista, acrescentando, a propósito de cada filósofo, os pontos em que dela discordam e a orientação geral de suas idéias.

(64) Como felizmente já vai longe o tempo em que se acoimava indistintamente de obscurantista toda a Idade Média! Que clarões de luz não projetou sobre o grande Béculo cristão a historia imparcial e pesquisadora dos fatos e documentos! Historiadores que se prezam são hoje unânimes em afirmar a necessidade da reabilitação, ainda científica, desta época tão malsinada e caluniada por quem tinha interesse em mostrar às turbas, na Igreja católica, a inimiga das luzes e dos progressos. Citemos: "Il n’y a donc pas entre les travaux de la scolastiaue et l’éveil de la science de la nature une absence totale de continuité, comme on l’enseigne a l’ordinaire. Lorsqu’on parle du Moven-Age comme d’un temps de nuit absolute auquel on oppose la renaissance subite de la lumière on se trompe. Ce coup de théâtre n’est point historique, et il serait temps de comprendre que l’époque nui a bSti les cathédrales a accomoJi une oeuvre scientifique digne de respect". E. Na ville, La physique moderne1, 1883, p. 149-150. — "La science mécanique et physique dont s’en orgueillissént à bon droit les temps modernes, découle par une suite Ininterrompue de perfectionnements à peine visibles des doctrines professées au sein des écoles du Moven-Ace". Pierre Duhem. Origines de la Statique, T. I, Préface, Paris, 1905. — "Au treizième siècle le mouvement scientifique devient plus puissant et plus fécond" de sorte qu’on peut véritablement faire dater de cette époque l’évanouissement des sciences". J. C. Poggendorf. Histoire de la Physique, Cours fait à l’Université de Berlin, Trad, de Bihart e De la One snerle. Paris. 1883, p. 46. — "Nos historiens, même ceux qui passent Dour les meilleurs, s’arretant au’ plus grossières apparences, écoutant les préventions les plus surannées, n’avant pa même la pensée de rectifier, encore moins le désir de verifier les vieilles alleeatlons ont résumé l’histoire de la première partie du Moven-Âge occidental, par ces deux mots: ignorance et superstition. Maïs c’est à ceux et non aux siècles : qu*ils*"on méconnus et calomniés que ces deux mots conviennent". Dahemberg. Histoire des science médicoles. Paris, 1870. t. I.. p. 255. Sobre a civilização medieval cfr. J. Guiraud Histoire partiale, histoire vraie, t. II«, Moyen-Age, Renaissance, Réforme, Paris, 1912

(65) O nome de Sorbona dado impropriamente a toda a Universidade de Paris era o de um colégio fundado em 1257. por um Roberto de Sorbon. para os mestres e estudantes pobres de teologia. Bem cedo este colégio tomou o passo sobre os seus congêneres, sendo, por isso, escolhido como local para algumas manifestações da vida coletiva das escolas: entre outras a colação dos graus universitários. Daí as expressões: Doutor na Sorbona, tomar o grau na Sorbona e outras. Tal estado de coisas durou até a Revolução Francesa. E’, pois. historicamente imprópria e errônea a linguagem que confunde a parte com o todo. a Sorbona com a Universidade de Paris.

(66) Sobre a ereção. organização e desenvolvimento das universidades medievais, efr. o valioso trabalho de Denifle, Die Universitäten des Mittelalters bis 1400. Berlin, 1886.

 

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