SUGESTÕES DA VIDA UNIVERSITÁRIA AMERICANA

SUGESTÕES DA VIDA UNIVERSITÁRIA AMERICANA

Oliveira Lima

Minhas Senhoras, meus Senhores: A mocidade acadêmica do Recife mostra-se tão bondosa comigo, isto é, tão em harmonia com o espírito generoso da juventude e com os ideais de simpatia humana, que a devem inspirar, que não sei verdadeiramente como lhe agradecer a sua ^cativante lembrança de trazer-me ao seu grêmio, neste novo, magnífico edifício onde floresce uma já tradicional e muito respeitável instituição nacional, e aqui brindar-me com as palavras eloqüentes e efusivas que acaba de pronunciar o digno orador delegado pelos seus colegas, cuja extremada gentileza agradeço de todo coração. A ela procurarei corresponder, melhor do que com expressões de reconhecimento que adivinhais, expondo-vos dentro dos limites do tempo o assunto que mereceu vossa aprovação quando me propusestes realizar uma conferência neste recinto.

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O convite que foi feito por doze Universidades Americanas para conferenciar perante seus corpos de alunos sobre a América Latina proporcionou-me um ensejo que eu não tivera nos quatro anos da minha residência nos Estados Unidos como secretário de legação: o de conhecer intimamente — quero dizer na intimidade, porque dois meses não bastam para um conhecimento íntimo, no sentido de profundo — os meios acadêmicos daquela grande república.

Eu conhecera outrora alguns dos seus intelectuais. Conhecera Thomas Nelson Page, o romancista da Virgínia, que nas suas/novelas faz reviver o passado aristocrático do Sul, o tempo romêfitico de antes da guerra, quando a existência era suave nas plantações em que a escravidão arquejava com todos os seus horrores e onde, convencidos de que não atentavam contra a humanidade, porque esta é exclusivamente branca, os senhores só falavam em liberdades civis e em direitos políticos, armando por amor destes os Estados contra a União.

Conhecera John Fiske, o discípulo entusiasta de Herbert Spencer, evolucionista até a alma; o grande historiador da descoberta, da colonização, da independência e da organização constitucional das treze colônias; o escritor que aliava, numa combinação que nem sempre ocorre na América, a erudição e o estilo, sabendo descrever da forma mais sedutora os episódios principais daquela evolução curta mas intensa, direta e dramática.

Conhecera William Eleroy^Curtis, o jornalista infatigável que, no meio de enredos políticos e de negócios financeiros, achava tenpo para uma correspondência diária de matéria sempre inte-restante, de Washington para Chicago, e ainda empreendia longas viagens, das quais resultavam livros de impressões despretensiosos, porém atraentes.

Conhecera John Hay, que nos seus verdes anos foi secretário particular de Lincoln, de quem ajudou a escrever a biografia e que, como diplomata, chegou a embaixador em Londres, e a secretario de Estado, tendo entretanto, como secretário de legação, escrito êsse livto primoroso que se chama Castilian Days, o qual nos dá da época de Isabel II, de Prim, de Serrano e de Castellar, isto é. da queda da monarquia espanhola, da ditadura militar e da república parlamen-tar, a impressão estranha e melancólica de uvm daguerreótipo de há 50 anos passados.

O que eu não conhecera então era o mundo universitário em ;ição, em labuta, em movimento. E como se trabalha nesse mundo! como vai êle consolidando a base moral de uma nação que teve por alicerces a fé religiosa, e a probidade das relações, mas à qual podia correr o perigo de faltar, na sua extraordinária expansão tão bem recompensada pelo êxito, o característico superior do idealismo, a forma elevada da espiritualidade.

Em Wanhington — a capital federal, onde reside naturalmente o corpo diplomático — não existe aliás nenhuma grande Universidade. A Universidade Católica, que é a mais importante das três ali funcionando, tem tomado notável incremento e timbra em não ser um estabelecimento clerical, antes em ter, não obstante a sua denominação, uma certa feição leiga, pelo menos no que diz respeito à Faculdade de Direito e à Escola de Engenharia, só possuindo propriamente de sectária a Faculdade de Teologia.

Sabeis todos que caminho tem feito nos Estados Unidos a religião católica — a religião dos nossos pais, como com felicidade a apelidou o Cardeal Gibbons num livro célebre aludindo à uniformidade de antes da reforma — sendo constante a progressão numérica dos seus adeptos. Ora, a Universidade Católica serve de escola normal para os institutos romanos de todo o país. As diferentes ordens religiosas mantêm em redor dela colônias de estudantes que se destinam ao professorado e no verão, quando a rapaziada seminarista e leiga deserta a Universidade, chegam de todos os Estados, mesmo os mais afastados, grupos de freiras e noviças, com suas coifas brancas, seus mantos negros e seus passinhos miúdos, que, no mesmo fito de magistério, vêm freqüentar os cursos universitários.

Em Washington funciona todavia uma espécie de Ministério da Instrução Pública, repartição que empresta uma como que unidade de orientação federal à dispersa mas não dispersiva organização estadual do ensino americano. O Sr. José Veríssimo, em recentes ar tigos nos quais, com a alta isenção e o exímio critério que o faze um mestre respeitado, cujo nome é conhecido e apreciado ale das nossas fronteiras, em centros cultos europeus e americanos, ocupou dos problemas vitais do Brasil — no seu justo entender, povoamento e a educação — resumiu as atribuições e o papel Comissariado de educação a que aludo.

As funções desse comissariado consistem sobretudo em reun: dados, provocar esclarecimentos, coligir materiais, fornecer suge toes e preparar soluções pedagógicas, livre a cada estabelecimen’ de aplicá-las ou não. No meio da variedade de tais estabeleciment não é, aliás, tão difícil manter a desejada coesão moral, desde qu todos agem no mesmo intuito, que é o do engrandecimento da pátri pela difusão do ensino.

Os americanos, e nisto está um dos segredos, senão o principr» segredo da sua admirável prosperidade, cedo compreenderam qu não há verdadeiro progresso sem educação popular, que esta cons titui a base da opinião, e que a opinião é a condição máxima de qualquer sociedade política, mormente democrática. E no nosso tempo as próprias monarquias têm que ser democracias: se alguma, como a Rússia, ainda o não é, está a meio caminho de sê-lo.

Penso que os Estados Unidos chegaram, em matéria pedagógica, a uma concepção perfeita no equilíbrio e no espírito. Entre os americanos o ensino técnico chegou ao maior apuro e, ao mesmo tempo, o ensino clássico conta cada dia maior número de estudiosos. Na mesma universidade funcionam um colégio agrícola, em que se aprendem praticamente o fabrico do queijo e da manteiga e a teoria microbiana, e uma faculdade de letras em que se estudam as conseqüências sociais da Revolução Francesa e se analisam politicamente as tragédias de Corneille.

Nós discernimos o espírito, mas não temos o mesmo senso do equilíbrio. Estamos dando sério desenvolvimento ao ensino profissional, o qual era dantes um mito. Mas em compensação estamos votando ao desprezo as chamadas humanidades. O arguto observador Bryce não deixou de notá-lo na sua rápida passagem, apontando para o caráter prático do nosso ensino, pois que as únicas faculdades que viu ou de que teve notícia eram de Medicina e de Direito, e as escolas superiores, as politécnicas, de Minas e de Farmácia.

A especialização científica é uma disciplina das inteligências, mas a generalização literária representa elevação nos nossos espíritos. Precisamos não sacrificá-la, tanto quanto precisamos organizar em toda a União, com a mesma eficiência, o ensino primário, a saber, a educação popular, o processo único de adaptação do povo à sua pretensa soberania.

No discurso com que me despedi dos meus amigos americanos, em Nova York, disse que a educação era a necessidade capital das nossas comunidades latino-americanas. Aprovou, entre outros, minha sugestão, que não tinha aliás pretensões a original, o sábio presidente da Universidade de Stanford e grande amigo do Brasil, Professor

John C Branner, numa carta de que me permitirei traduzir alguns trechos, pelas sensatas considerações a nosso respeito:

Penso [escrevia-me êle ao receber meu discurso! que o Senhor tem vistas sãs e exatas com relação à importância da educação popular da América do Sul, e estou certo de que a nação que se orientar por tal sugestão será a que há dc fazer maior e mais seguro progresso. d5ua referência a São Paulo é justa. Pensam alguns que as razões do progresso de São Paulo são outras, querendo uns fazer-nos acreditar que é o café; outros que é a imigração, ou-tros que é o sistema ferroviário, outros ainda que é o clima ou o solo. Mas muitos lugares existem no Brasil onde clima e solo são igualmente bons e o povo igualmente capaz, mas por causa da falta de instrução popular, a agri-cultura, as facilidades de transporte e o desenvolvimento, geral permanecem o que eram há cem anos, ao passo que as condições gera» e possivelmente a dificuldade na transferência da propriedade retardam a imigração desejável.

Se somente se conseguir instruir o povo, e fazê-lo compreender que o progresso material e a prosperidade são conseqüências da aplicação de leis natu-rais c não resultados das bênçãos especiais do céu ou das maldições do inferno, invocadas por missas, orações ou pregões de rua, te-lo-emos todo trabalhando com um propósito definido, como seja o desenvolvimento nacional.

Um homem público cm elevada posição disse-me um dia o que tão freqüentemente se ouve em todo o Brasil, que o grande mal do país é a falta de braços. Protestei contra isso c continuo a protestar, pois se há falta de braços, é muito devido ao fato dos braços estarem fazendo as vezes dos cavalos c mulas. Quero dizer que na ausência de máquinas agrícolas em quase todo o Brasil, o trabalho dos campos tem que ser feito pela mão do homem em lugar de o ser pelos animais. Espero que o remédio para isso esteja na instrução, aliviando os trabalhadores da carga que sobre eles pesa.

Estamos felizmente aprendendo a compreender que não é justo importar com grandes sacrifícios pecuniários bandos de imigrantes europeus e entregar ao abandono físico, intelectual e moral os próprios filhos da terra — matéria-prima, por vezes excelente como as levas de cearenses, industriosos e sofredores, aos quais se deve a valorização econômica da Amazônia. O Governo federal, por uma iniciativa que o honra e à qual se acham ligados os nomes de dois ministros paulistas, agregou ao Serviço de Proteção dos índios o da localização dos trabalhadores nacionais, e nas medidas tendentes a enfrentar o chamado problema do Norte, isto é, a defesa da borracha, incluiu o da higiene e tratamento dos seringueiros, como incluiu o da sua instrução profissional, que elementos de fora interessados na prosperidade da bacia do Amazonas julgaram inadiável.

Não ignorais decerto a intervenção recente do competente Sr. Akers, as suas criteriosas impressões quanto ao futuro da borracha brasileira, e a missão que lhe foi confiada — missão na verdade inicial com relação a de produzir barato borracha de plantação — de ensinar aos trabalhadores do Amazonas o modo mais racional e mais rendoso de sangrar as árvores, usado em Ceilão e em Malaca.

Conversando não há muito com o Sr. Akers, lamentávamos ambos a falta de iniciativa particular que ainda existe entre nós, e dizia-me êle a tal propósito que os hospitais a serem estabelecidos no Amazonas não deviam ser tanto fundações do Governo como de caridade particular, tachando-a apenas diretamente o Estado, no caso de necessidade. Era concepção saxónica do individualismo, apli cada à filantropia, a mesma concepção que, aplicada ao ensino, deu os resultados incomparáveis apresentados pelas Universidades americanas.

Com efeito, as Universidades de fundação privada, como a de Stanford, a de Chicago, a de Cornell, são tão ricas, tão florescentes e tão acreditadas quanto as de índole até certo ponto oficial, como a de Berkeley, a de Madison, a de Colombia. Aliás o rótulo nada quer dizer nesse caso: o oficialismo não traduz intolerância ou coação, da mesma forma que origem privada não significa insuficiência ou anarquia. Todos esses estabelecimentos visam, simplesmente, honestamente, eficientemente a ministrar educação.

A iniciativa exerce-se neste campo sob os mais diversos aspectos. Milionários americanos associam seus nomes à fundação de laboratórios e de museus; famílias ricas associam os nomes dos seus falecidos chefes a livrarias e dormitórios — como são chamadas as casas de estudantes —; professores e alunos rivalizam, cada qual na sua esfera, em provas de scholarship, isto é, de cultura intelectual; organizam-se sob os auspícios das faculdades expedições científicas e explorações arqueológicas em terras estrangeiras.

Assim, a Universidade de Princeton está levando a cabo uma exploração artística pré-helênica na Ásia Menor; a de Yale está fazendo uma exploração de pré-história americana no Peru; a de Berkeley organizou um serviço de pesquisas históricas nos arquivos espanhóis; a de Pennsylvania acaba de mandar uma expedição de naturalistas ao Vale do Amazonas; a de Stanford já efetuou, sob a direção do Professor Branner, o estudo dos recifes da nossa costa setentrional.

Ao chegar dos Estados Unidos, tive ocasião de escrever para o Jornal do Comércio um pequeno artigo sobre universidades americanas, do qual peço licença para reproduzir dois parágrafos:

"As Universidades americanas são estabelecimentos onde se trabalha e onde se produz. Elas não são meramente fábricas de bacharéis que, uma vez obtidos seus diplomas, se dispersam e, fazendo do canudo de lata vara de salto, atingem posições, sem mais estudarem. É claro que a educação universitária americana visa a permitir uma boa média de aproveitamento muito mais do que a preparar sábios, que só poderão merecer tal denominação por meio da aplicação individual, pondo em contribuição os recursos oferecidos pelos estabelecimentos de ensino superior — recursos que já disse não faltarem, antes serem os mais amplos —, mas desenvolvendo cada um por si suas aptidões naturais. Por isso, nas universidades americanas vemos ser o labor dos graduates muito mais intenso e fecundo do que os dos under-graduates: o que conta, o que avulta, é a individual research, o trabalho fora das aulas, seguindo cada qual a orientação do seu espírito e a linha das suas investigações.

O atual presidente dos Estados Unidos é um exemplo frisante disso. Quando concluiu seu curso de Direito na Virgínia, estabeleceu-se na Geórgia com um escritório de advocacia, tendo como sócio um companheiro de estudos, hoje falecido, Edward Renick, que foi, quando eu servia em Washington e exercia êle as funções de oficial maior do Departamento de Estado, um ddf meus melhores amigos. Profetizou-me sempre com segurança esse espírito ilustrado e lúcido o porvir político de Woodrow Wilson, a quem não agradara a profissão de advogado, pelo que desfez a sociedade e seguiu para Baltimore, a fazer na Universidade de Johns Hopkins um curso suplementar de Política e Economia, do qual resultou, como fruto da individual research, o famoso volume sobre o governo do país pelas comissões do Congresso — Congressional Government, que o consagrou escritor e homem público.

O livro ulterior sobre O Estado, os cinco volumes mais recentes de história do povo americano, se bem que tendo tido a melhor aceitação, não exerceram a influência daquele primeiro ensaio, ao qual o autor deve em última análise sua fortuna política — o governo de Nova Jersey e agora a suprema magistratura da nação —, mesmo porque o lema das suas campanhas políticas foi sempre idêntico: restituir ao povo a livre direção dos negócios públicos, assumida e praticada clandestinamente por mandatários nem sempre fiéis; noutras palavras, governar às claras.

O essencial para o bom êxito de qualquer serviço é ter gente capaz de executá-lo e que o execute com gosto. O trabalho do amador é deficiente e, pior ainda, o do cábula. Um dos nossos males — mal comum à América do Sul, segundo me informaram — é justamente lidar com pessoal, em alguns casos pouco competente e mais freqüentemente pouco interessado no seu ofício. Entre nós o militar quer ser professor, o professor quer ser político, o dentista quer ser empregado público, e assim sucessivamente. Só o político quer continuar a ser político e o diplomata continuar a ser diplomata, o que prova que são as duas melhores profissões.

Nos Estados Unidos, pelo contrário, um professor de universidade, por exemplo, não pensa em mais coisa alguma senão em ensinar e produzir. Pode qualquer pessoa decidir mudar de carreira, ou de profissão, e o caso é até freqüente numa terra cujos filhos se distinguem pela sua energia e estímulo, mas enquanto se exerce um ofício, dedica-se-lhe toda a atenção de que se é suscetível.

Como o magistério é uma função absorvente no seu imediato exercício, o multimilionário Carnegie estabeleceu uma fundação original e utilíssima, destinada a subvencionar os professores, de notória disposição para o trabalho especulativo ou prático, que preferirem os labores da investigação pessoal aos deveres das aulas. Assim, um professor de Medicina interessado no estudo de um novo serum; um professor de letras a seguir um novo veio nos arquivos e revelar aspectos desconhecidos de acontecimentos históricos; um professor de Química preocupado com o barateamento de um adubo artificial que substitua o nitrato ou com a descoberta da borracha sintética — passam a ser pagos pelos rendimentos daquela instituição, ficando com todo o tempo livre para suas pesquisas e sendo entretanto os seus lugares preenchidos por substitutos idôneos. Às congregações e sobretudo aos presidentes, cujos poderes são amplos nas Universidades americanas, cumpre evitar que se dêem abusos correlativos.

O americano não só se dedica deveras à profissão que livremente escolheu, como nenhuma lhe parece menos honrosa e menos nobre, desde que seja pautada pela diligência e pela dignidade. Um senador não se envergonha de dizer que começou a vida vendendo jornais pelas ruas, um milionário não se peja de a ter começado como guarda-freios. Ainda agora jantei em várias sororities, isto é, clubes e halls, isto é, grandes residências comuns de moças estudantes, em que a refeição era servida por moços estudantes pobres, os quais as^sim ganham seu sustento, sem que suas colegas por isso os desprezem.

É sabido que na grande maioria das Universidades americanas vigora o sistema da educação mista, a saber, da freqüência pelos dois sexos, sobre o qual contudo as opiniões não são nos Estados Unidos unânimes, segundo muitos imaginam. Algumas lhe são manifestamente hostis; outras defendem calorosamente tal sistema como o fundamento e a condição da deferência singular que nos Estados Unidos inspira a mulher e que faz com que os americanos sejam reputados os melhores maridos do mundo: afetuosos e ao mesmo tempo atenciosos, mourejando sem trégua e sangrando-se até a última gota para satisfazer os gastos e caprichos das suas melhores metades. Longe de mim o dizer que todas as americanas são caprichosas; apenas desejo mencionar que aquilo que o francês, em geral, julga devido à sua amante, o americano julga devido à sua mulher.

Aqueles que, no estrangeiro, por idéias preconcebidas pensam mal da chamada co-ediication devem recordar-se de que a fiscalização se exerce naturalmente, quero dizer, sem esforço, em cidades por assim dizer privativas do ensino superior, cujos estabelecimentos são em muitos casos a sua única, ou pelo menos a sua principal razão de ser. Ithaca, Berkeley, Ann Arbor, Palo Alto. Poughkeepsie e Cambridge, vivendo sobretudo, senão exclusivamente, da vida pedagógica que abrigam, prolongam no Novo Mundo o tipo das antigas cidades universitárias européias, como Salamanca. Coimbra, Heidelberg, Oxford e Upsala. É o destino que eu teria sonhado para as nossas cidades de Olinda e de Ouro Preto.

Aliás, nas referidas cidades americanas, onde os edifícios, formando conjunto, de ordinário se agrupam nos chamados campus que são vastos locais especialmente destinados a concentrar as construções acadêmicas, moços e moças vivem em edifícios perfeitamente separados, quer sejam grandes dormitórios albergando cem a trezentos estudantes, quer pequenos clubes de vinte a trin: membros, já se sabe do mesmo sexo. São estes as chamadas jraterr-ties e sororities, que nós denominaríamos indiferentemente irmandades dirigidas por uma matrona que lhes dá respeitabilidade mais d: que direção, porquanto aqueles clubes se governam por meio das suas juntas eleitas. São assim verdadeiras "repúblicas" — repúblicas ordeiras, e não boêmias — com seus funcionários executivos.

Nas grandes cidades, como Nova York e Chicago, a convivên cia entre os estudantes de sexo diverso é muito menos estreita, quase se não dando fora das aulas, mercê mesmo das distâncias e de outras circunstâncias, que a dificultam. A co-educação, por si, como princípio educativo, não pode favorecer a imoralidade, pois que a ela estão habituados os rapazes e raparigas americanas desde o jardim de infância, passando pela grammar school e pela high school equivalentes às nossas escolas primárias e secundárias.

A imoralidade nessas condições de intercurso tradicional, em que se não enxerga mal, é considerada, quando por acaso se dá, o fruto de disposições individuais a que a co-educação teria proporcionado o ensejo de revelar-se, mas que cedo ou tarde se manifestariam. Eu tenho para mim que tais disposições são antes refreadas do que estimuladas pela franca convivência, e apenas seriam acirradas pela separação e pelas desconfianças. O fruto proibido é sempre o mais apetecido: esta verdade ficou demonstrada desde o Paraíso Terrestre.

É mister levar neste assunto em consideração o fator da educação. O que pode ser permitido a gente educada de certo modo não pode sê-lo a gente educada diversamente. Tampouco deve ser esquecido que a energia animal dos rapazes americanos se emprega muito nos jogos atléticos, que exercem um fortíssimo apelo sobre os indivíduos de raça inglesa.

As partidas de foot-ball e de baseball, jogadas entre os teams de Universidades diferentes, atraem concorrência de muitos milhares de pessoas, como nunca a logrará obter uma conferência ou uma preleção: acresce que abrem elas oportunidade para as apostas tão caras à gente britânica.

O estudo não é todavia imolado às diversões, por mais que disto se queixem os adversários do exagerado atletismo, mesmo porque o professorado trata de manter alto o nível acadêmico, eliminando as Universidades os elementos perniciosos e até os improfícuos, cuja presença possa converter-se num mal para a comunidade.

Perguntei um dia, impressionado com a larga proporção de raparigas estudantes, e apesar de não ignorar a vasta participação feminina na atividade nacional, que destino recebia um número tão crescido de mulheres diplomadas? Responderam-me que o destino da maior parte delas era casar, o que em toda a parte constitui freqüentemente a melhor e a mais ambicionada profissão feminina. As que ficam solteiras podem ter dificuldades de colocação, como também acontece aos homens solteiros, casados ou viúvos, mas oferecem-se-lhes oportunidades como em outros países se não encontram. A mulher americana ainda sob este ponto-de-vista é a mais afortunada da sua espécie.

No Brasil já temos caminhado um poucochinho no sentido de fornecer ao sexo feminino meios de ganhar sua subsistência. Dantes estava-lhes somente aberto o magistério primário. Hoje há mulheres empregadas nos Correios, nos Telégrafos, no comércio, como guarda-livros, etc, e é natural que o movimento continue a acentuar-se, aumentando as possibilidades de colocação, porque é um movimento essencialmente de civilização.

Eu sou um tanto suspeito na matéria porque minhas idéias vão até a concessão à mulher de direitos políticos.

Na noite da recente eleição presidencial americana, a 6 de novembro de 1912, fui convidado a assistir em Washington à reunião da grande associação dos Direitos Iguais (Equal Rights), a qual se estende por todos os Estados Unidos, e não tive que exercer violência contra os meus sentimentos, ali proferindo um pequeno discurso em que advoguei o sufrágio feminino.

Penso que já são nove os Estados da União Americana em que à mulher é facultado votar e a experiência feita no Oeste, com os que iniciaram o processo, não é para fazer desanimar.

A influência da mulher tem-se exercido inequivocamente no sentido da moralidade e da dignidade. Também e verdade que a mulher nos Estados Unidos de todo tempo mostrou merecer a elevação social que lhe andou sempre atribuída.

Não falando já nas heroínas da época colonial, que no sofrimento e na energia se revelaram iguais aos homens, quando estes mereciam tal nome, nem em personagens conhecidas da Revolução Americana, nas quais se encarnou o sentimento da independência com vigor idêntico ao dos soldados que se bateram por ela, basta recordar que, durante a guerra civil, coube a uma mulher a organização dos serviços de socorros e enfermarias.

Bem mereceria esta Dorothea Dix, que o Sr. Andrew White a canonizasse por sua exclusiva autoridade, como me disse êle ter feito com relação a Florence Nightingale, a heroína inglesa da guerra da Criméia, ao mostrá-la representada num dos vitrais da capela de Cornell, ao lado de Santa Isabel da Hungria. "São as minhas santas", explicava-me o octogenário ex-presidente da Universidade, antigo professor e antigo embaixador, chefe da delegação americana à primeira conferência da Haia e um dos homens de maior prestígio moral nos Estados Unidos. Seu livro sobre os conflitos da religião e da ciência ficou célebre, e em matéria de crenças seu ecletismo é tal, que a belíssima capela acadêmica de Corneil, a menina dos seus olhos, serve simultaneamente de abrigo aos cultos católico, protestante e judaico.

A condição da mulher nos Estados Unidos não é portanto devida apenas à benevolência dos homens: é também muito devida aos seus próprios esforços. A mulher americana tem contribuído avultada e eficazmente para o progresso nacional, sem perder suas qualidades de graça, nem mesmo suas preocupações de elegância. O clube não matou a família. Esta é ali o que é noutros países, onde existe e onde não existe o divórcio: uma instituição respeitável, que os abusos e imoralidades podem corromper, mas não logram destruir. Famílias há que provocam veneração, como há outras que despertam comiseração.

O fato da mulher nos Estados Unidos pensar em congregar seus esforços, aumentar sua instrução, dilatar sua esfera de ação, exercer seu altruísmo não quer dizer que ela desmereça da consideração mesmo privada. Muito pelo contrário: ouvi o que diz o autor de um livro americano recente — Woman in the making of America — sobre os resultados alcançados pelas associações ou clubes femininos, que contam nos Estados Unidos mais de um milhão de associadas.

A presença de um tal exercito é em si uma garantia de feliz futuro para a terra que habitamos. Em todo o país os clubes femininos travaram uma grande batalha pelo progresso social. Estão combatendo o vício e o crime, a ignorância e a doença; reclamam legislação humanitária que proteja os fracos e os desamparados; não querem tréguas com a ganância, a brutalidade DU a injustiça; por toda a parte estão empenhados numa grande cruzada de educação para promover um mais alto desenvolvimento de cultura, um senso cívico mais vivo e uma moralidade mais elevada no indivíduo e na nação. Suas perspectivas não são absolutamente limitadas. Trabalham pelo bem-estar não só dos seus contemporâneos como das gerações vindouras.

Não há um só movimento regenerador que tenha tido êxito, que não haja sido inspirado ou subscrito pelo elemento feminino da comunidade — observa ainda esse escritor americano. E é bem verdade que sua influência foi tão poderosa quão decisiva nos movimentos em prol da alimentação sã, de que resultou a pure food taw de 1906; pela perfeita conservação das belezas naturais da terra, entre elas o Niágara, e das suas reservas florestais; por uma legislação industrial mais eficaz cm favor do trabalho das mulheres e da abolição do trabalho das crianças; pela instituição de tribunais e reformatórios especiais para jovens delinqüentes; pela proteção aos desvalidos; pela reforma do serviço civil, distribuindo-se todos os cargos públicos segundo o critério do merecimento e não como despojos partidários; pela difusão da instrução e do gosto artístico; pela melhoria dos serviços municipais, pelo ensino e aplicação da temperança, até pela causa do arbitramento obrigatório.

A federação dos clubes femininos tem sido outrossim um fator poderoso para a consolidação do sentimento nacional, pondo em contacto associações de todos os pontos desse extraordinário país c tornando extensivos à União inteira os anelos locais de reforma. Idêntico efeito tem tido uma prática seguida nas Universidades americanas e que eu desejaria ver aplicada nas nossas escolas superiores, se entre nós estivesse o ensino em diferentes condições de organização geral. Refiro-me ao intercâmbio dos respectivos professores, que nos Estados Unidos costumam ir fazer cursos e conferências em outras universidades que não as suas.

Os próprios presidentes de universidades costumam visitar seus colegas e tomar a palavra diante dos alunos de estabelecimentos congêneres. Assim é que o ilustre cientista que dirigia a Universidade de Stanford, e é hoje o seu chanceler, David Starr Jordan, tem feito por toda a federação uma propaganda ativa e generosa em favor da paz e da eliminação das ambições de conquista e mesmo das veleidades de intervenção. E o resultado indireto do sistema é por si maior do que qualquer resultado direto de uma determinada propaganda, porquanto, dentro da federação educativa dessarte robustece a unidade moral indispensável à grandeza do país e tão característica da sua vida política e social.

"Com a intensa sociabilidade que existe nos Estados Unidos bastaria esse intercurso espiritual para solidificar-se a argamassa política, se outros muitos fatores não concorressem para o mesmo resultado. Aquela sociabilidade, que é uma feição que particularmente me encantou na vida acadêmica americana, distingue-se pela despretensão e pela cordialidade.

Desde o tempo, aliás, em que habitei os Estados Unidos, que eu me acostumara a admirar a ausência de "má língua" que ali caracteriza as relações mundanas e que tanto contrasta com a maledicência de outras terras. Raramente, se alguma vez, ouvi em sociedade difamar a outrem, e os mexericos mesmo são banidos, como constituindo prova de mau gosto. É uma questão de boa educação, mas também e sobretudo uma questão de caráter. No caráter americano não figura a inveja como um dos traços capitais.

O país orgulha-se dos seus grandes homens e zela-lhes o nome com fervor que se não altera; não perduram as calúnias que por acaso se espalhem; os esforços dos que trabalham e produzem são recompensados pela simpatia calorosa dos seus compatriotas: ninguém vive a mingoar e a desprestigiar e a deturpar o labor alheio; os foliculários cínicos e amorais são postos à margem da sociedade.

Por seu lado, os que chegaram às boas posições ajudam os que sobem. Impressionou-me ver nas Universidades americanas o carinho com que os velhos professores, os mestres, animam e auxiliam os novos, os assistant professors. Sem lhes darem uma importância exagerada — o que seria um mal — ou lhes concederem a familiaridade tão costumeira no nosso meio e tão prejudicial a uma convivência repassada de dignidade, eles lhes favorecem a carreira e lhes facilitam a situação mundana — porque nesses centros universitários, com centenas de professores, a vida social chega a ser extrema — preparando-os sem ciúmes para as primeiras posições. Não há resquício de malevolência nessa course au flambeau, apenas a melancolia natural à extinção de qualquer inteligência cultivada. Cada qual sabe que o archote lhe cabe por um certo prazo.

Nos Estados Unidos a regra é subir e sobe-se, mas há que usar de certas precauções. Aquela suposta terra de imoralidade administrativa é também muito a terra da moralidade pública. Se a opinião preza a reputação dos seus homens representativos não lhes mostra misericórdia quando eles prevaricam, e a opinião é nos Estados Unidos forte e honesta bastante para que, por mais abusos que se tenham dado em esferas mais baixas, à suprema magistratura do país não possa ascender quem não fôr probo na sua vida oficial c limpo na sua vida privada. A nação não toleraria por chefe um desonesto, e o candidato presidencial, uma vez escolhido, I o seu passado esquadrinhado e revolvido por uma alcateia de jornalistas famintos de escândalos ou intransigentes no seu puritanismo.

As sugestões de uma excursão pelas Universidades americanas lio, como estais vendo, variadas, mas uniformemente sãs. A impressão máxima com que se volta é a da saúde moral daquele povo, que tem razão em julgar-se fadado para os maiores destinos, porque recebeu no berço a fé religiosa e conquistou no decorrer da na evolução a fé cívica, assim cimentando a sua nacionalidade com o que pode oferecer o espírito de mais levantado, que são a crença e a moral.

As Universidades americanas são a ingente fábrica de idealismo desta nação arrastada para os interesses materiais. Nelas se prepara o cidadão para os labores técnicos, as carreiras práticas, mas também para as especulações mentais que dotam a inteligência com o seu mais formoso título, clevando-a às regiões mais desanuviadas e mais belas da História, da Arte, da Filosofia.

Eu aprendi ali a prezar os Estados Unidos mais profundamente do que já os estimava, e especialmente compreendi todo o alcance de um dito do Professor Branner, dito que deveria ser meditado por todas as sociedades do Novo Mundo, a saber, que nos Estados Unidos não se faz distinção entre instrução e educação que são uma e a mesma coisa. Education, em língua inglesa, significa a um tempo a formação da inteligência e a do caráter. Uma não vai sem a outra.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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