A ARTE ORNAMENTAL

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HISTÓRIA DA ARTE DE ERNEST GROSSE (1893)

A ARTE ORNAMENTAL

CAPÍTULO VI

No estado primitivo, a arte de ornar os utensílios acha-se muito menos desenvolvida que a de adornar o corpo humano. Os membros da mais miserável tribo fueguina já sabem enfeitar-se, ao passo que os caçadores mais adiantados da América do Norte são pouco peritos na arte de ornar seus instrumentos. Essa arte é mesmo inteiramente desconhecida de diversos grupos primitivos. Jamais conseguimos encontrar sequer um insignificante ornamento num bastão ou arco de bosquimano. Um utensílio fueguino com ornamentos seria excessivamente raro. Não obstante, estenderemos a concepção de arte ornamental e falaremos da decoração, mesmo no caso de não se tratar de decoração propriamente dita, mas apenas de execução cuidadosa do instrumento.

Na maioria dos casos, não é indiferente que uma ferramenta seja ou não lisa e bem proporcionada. Uma arma assimétrica não atinge seu objetivo com a segurança de uma arma simétrica. Uma ponta de flecha ou de lança penetra melhor e mais profundamente na carne que outra lâmina qualquer. Todavia, em todos os povos encontram-se ferramentas de trabalho irrepreensíveis, cujo valor prático está absolutamente na dependência do grau de perfeição de sua execução. A lâmpada de esteatite dos esquimós, por exemplo, não necessita possuir forma muito regular nem tampouco ser polida, para fornecer luz e calor. Os cestos dos fueguinos, ainda que fossem trançados com menos regularidade, não perderiam seu valor prático. Os australianos dão sempre forma simétrica às suas varinhas mágicas, cujo uso não seria prejudicado se fossem assimétricas. Em todos esses casos, podemos estar certos de que se têm em vista tanto as preocupações de ordem estética, quanto as de ordem prática. O objeto deve realizar a sua finalidade, mas deve igualmente agradar. Essa forma simples de ornamentação observa-se em todos os povos. Nos primitivos mais pobres, os fueguinos, encontram-se ferramentas de admirável simetria e execução.

Mas, a arte ornamental propriamente dita não se acha desenvolvida entre os australianos, mincópios e hiperbóreos. Ademais, é a única arte primitiva que tem sido estudada seriamente. Em particular, nos últimos anos, quando vimos aparecer uma série de excelentes trabalhos sobre os ornatos dos povos pouco civilizados. Infelizmente, nenhum deles trata da arte ornamental que estudamos em nosso livro. Nesse domínio, que às vezes merece o olhar dos etnólogos, ninguém ainda penetrou. Portanto, somos obrigados a abrir nosso próprio caminho.

As formas que produz esse terreno pobre não são nem muito ricas nem muito numerosas. Os desenhos que os australianos, os mincópios e parte dos hiperbóreos gravam ou pintam em seus instrumentos, recordam-nos, aos europeus, figuras geométricas. Tais ornamentos se designam, pois, geométricos. Entretanto, como é difícil evitar a confusão da coisa com o nome, são citados como uma prova do gosto natural que os homens mais simples teriam pelas figuras estéticas simples. Não se faz mister pôr à prova esse gosto, estabelecido a priori, como a maioria dos postulados da filosofia da arte. Na verdade, os ornamentos primitivos não são o que parecem ser. Veremos que não constituem absolutamente figuras geométricas.

As figuras construídas livremente sem modelo não desempenham um papel considerável na arte ornamental. Raras entre os civilizados, em vão será a sua procura entre os primitivos. A arte ornamental não tem os seus motivos na fantasia dos homens, mas na natureza e na técnica.

Fig. 1 — Desenhos australianos talhados em escudos e maças (segundo Brough Smyth).

 

Os ornamentos dos primitivos são em sua maioria imitações de formas naturais. Nossa arte emprega também, e com profusão, motivos semelhantes, que vemos por toda a parte, no empapelamento das paredes, nos tapetes, no tinteiro, etc. Não há objeto decorado que não possua desenho de folhas, flores ou frutos. Mas, enquanto a arte ornamental dos povos civilizados procura seus motivos sobretudo no mundo vegetal, a dos primitivos limita-se quase exclusivamente às formas animais ou humanas. O ornamento de ordem vegetal, que abunda entre nós, não se encontra entre os primitivos. Mais adiante veremos que essa diferença não deixa de ter uma significação muito profunda.

Nem sempre é fácil reconhecer o objeto que serviu de modelo aos ornamentos. Se observarmos os ziguezagues ou os losangos de um escudo australiano, deveremos confessar que nossa hipótese, segundo a qual esses desenhos são derivados de formas animais, nos parecerá muito ousada. Sê-lo-á duplamente se acrescentarmos que não podemos provar o que antecipamos senão em raríssimos casos. Seria milagre se o conseguíssemos. Nunca se estudou sistematicamente a arte ornamental dos australianos. O próprio

Fig. 2 — Ornamentos dos Caraiás (segundo Enrenreich).

Brough Smyth julga haver dito o suficiente, consagrando–lhe algumas observações gerais e superficiais. Ninguém mesmo se deu ao trabalho de perguntar aos indígenas a significação de seus desenhos. Com que direito podemos, pois, interpretá-los? Antes de tudo, em virtude do fato’de que a maioria dos ornamentos dos povos inferiores, estudados conforme se deveriam estudar que representam animais ou partes de animais. "Na cabana do chefe dos bacairis, diz, encontrei uma espécie de decoração interna, feita de pequenas barras negras de casca de árvore, nas quais se viam pintadas com argila branca figuras de peixes muito características e amostras de todos os ornamentos empregados pelos bacairis, ornamentos cuja significação pudemos então os ornamentos australianos, é imitação de formas animais e humanas. Em nenhum lugar se encontra a ornamentação com caráter mais geométrico do que entre as tribos do Brasil. Seus desenhos angulosos e de linhas retas recordam tudo ao europeu que os observa em um museu, exceto formas naturais. Mas, Ehrenreich, que os estudou no Brasil, demonstrou de maneira irrefutável estabelecer facilmente. Pudemos, assim, verificar o fato importante para a história da civilização, de que todos os desenhos, na aparência geométricos, eram apenas abreviaturas, em geral mesmo diretamente reproduzidas de objetos concretos, de animais na maioria dos casos. Uma linha ondulada, com pontos alternados, por exemplo, representa a "boa anaconda", que tem grandesmanchas escuras; um losango, com ângulos pretos, significa um peixe que vive nas lagoas, enquanto um triângulo não é um triângulo, mas sim o avental triangular das mulheres"1. Os ornamentos dos caraiás consistem em ziguezagues, cruzes, pontos, losangos e meandros interrompidos. O quadrado e o triângulo são empregados acidentalmente, para completar, por exemplo, outras figuras, e o círculo é inteiramente desconhecido. Como na arte ornamental dos xingus, as combinações geométricas dos caraiás, arbitrárias na aparência, não passam de imitações de objetos concretos, cujas formas características são estilizadas pelos indígenas. Infelizmente, nem sempre é possível determinar exatamente o objeto natural que serviu de modelo. A cruz tão freqüente (fig. 2, a), cuja existência na América levantou tantas hipóteses, umas mais engenhosas que outras, representa apenas uma espécie de lagarto.

cu

F;g.

Ornamentos dos Caraiás (segundo Ehnrenreich).

 

Todos quantos tiveram oportunidade de ver nas florestas Camp as saliências arredondadas dos grandes ninhos de vespas, se reconheceriam no desenho dentado da figura 2, b. Há mencionar ainda, como muito característicos, o morcego, que se reconhece por suas asas extensas (fig. 2, c), e os desenhos representando serpentes (cascavel, fig. 3, b; cassinanhe, fig. 3, c; a fig. 3, a representa igualmente uma serpente). Parece que os caraiás desconhecem os verdadeiros desenhos de homens ou animais, tais como se encontram entre os bosquimanos e os esquimós2.

A descoberta de Ehrenreich não é fato isolado, mas somente um elo de uma série considerável. Comparando extensas séries de desenhos, William Holmes demonstrou que numerosas figuras de cerâmica americanas, geométricas na aparência, representam o aligátor. Outros desenhos imitam a pele de vários animais3. Hjalmar Stolpe, que estudou, de acordo com o mesmo método, a arte ornamental do grupo da Raratonga-Tubuai, acredita poder afirmar que os desenhos dos habitantes dessas ilhas se compõem exclusivamente de figuras humanas4. Antes dele, Lane Fox já havia conseguido reduzir a uma forma humana um desenho, na aparência construído livremente. Sempre que a questão se colocou, a resposta foi a mesma.

(1) "Zeitschrift für Ethnologie", XXII, 89.

(2) Ehrenreich, "Beiträge zur Vökerkunde Brasiliens", 25.

(3) Holmes, "Ancient Art of the Province of Chiiique. Annual Report of the Bureau of Ethnol." 1884-85, 178, 183.

(4) Stolpe, "Entwicklungserscheiwungen in der Ornamentik der Naturvolker", Viena, 1892.

Todos esses fatos esclarecem decisivamente as observações isoladas feitas sobre os ornamentos australianos. "Alguns povos antigos, escreve Chaun-cy, gostavam de ornar seus escudos com figuras variadas, tais como pássaros, animais e objetos inanimados. Os indígenas da Austrália ornam seus acanhados escudos da mesma maneira"5. "Figuram em seus escudos, em linhas grosseiras, animais, o lagarto iguana, por exemplo", diz Brough Smyth a propósito das tribos de Vitória. Os desenhos que fazem em suas capas representam objetos naturais. Dizia um homem a Bulmer que abeberava suas idéias na ornamentação dos dbjetos naturais; copiava as marcas deixadas em um pedaço de madeira por uma larva, chamada krang; executara, assim, novos desenhos, tomando por modelo escamas de serpentes e lagartos. Segundo o referido autor, os indígenas nunca imitam as formas das plantas ou das árvores6.

O que esse indígena dizia a Bulmer nos esclarece satisfatoriamente sobre os ornamentos australianos. Atualmente, não só sabemos como interpretá-los, mas ainda porque de ordinário não o conseguimos. Se se emprega um animal inteiro como desenho ornamen-

tal, podemos reconhecê-lo aproximadamente em sua cópia grosseira. Mas, a maioria dos desenhos australianos <representa parte de animais — principalmente os desenhos da pele — e, nesse caso, um europeu não pode adivinhar-lhe a significação, tanto mais difícil porque os modelos são tratados de modo convencional.

No momento, é-nos impossível provar estritamente o que acabamos de afirmar. Entretanto, não seria mais fácil demonstrar que tais desenhos são figuras geométricas construídas em todas as suas partes. Nossa interpretação está inteiramente de acordo com tudo o que sabemos dos primitivos. Tem, pois, um alto grau de verossimilhança. De outra parte, nossos adversários só podem fundar sua hipótese pouco verossímil na aparência. Mas Ehrenreich mostrou-nos quanto é falsa a aparência. Até a prova em contrário, pois, acre-ditamo-nos autorizados a ter o desenho do escudo b, da figura 4, não como uma construção geométrica, mas como imitação de uma pele de cobra. O escudo de cortiça (fig. 4, a) será para nós a representação de um pássaro. Olharemos para as linhas em forma de losango e de ziguezague das demais figuras (5, a, b) como desenhos convencionais de penas, pêlos e escamas. Ao lado dos desenhos que imitam a pele, encontram-se também na arte ornamental australiana figuras inteiras de homens ou de animais. Nas maças e azagaias (Wurfbretter) vêem-se freqüentemente contornos de cangurus, lagartos, cobras e peixes e, muito amiúde, a figura de um dançarino de cor-robori em sua posição característica, as pernas separadas. Na maioria, esses desenhos são grosseiros e convencionais. Todavia, sua significação é quase sempre clara.

(5) Brough Smyth, II, 25.

(6) Op. cit., I, 294.

 

Fig. 4 — a) Escudo (Austrália do Sul) segundo Eyre. b) Escudo

(Queesland original do homem Etnográfico de Berlim). O desenho de

a é em parte gravado, em parte pintado; o desenho de b é inteiramente pintado.

Fig. 5 — Escudos australianos com desenhos gravados (segundo Brough Smyth).

Uma série de outros motivos apresenta, porém, um caráter muito problemático. Encontram-se eles em algumas armas, às vezes sós, outras, acompanhados de outras figuras. O desenho do boomerang (fig. 6) é na verdade tão estranho que permaneceria um enigma se os australianos nãonos dessem a sua chave. Com efeito, as linhas onduladas não representam outra coisa senão um mapa geográfico. "É uma lagoa e provavelmente também um braço de Broken Ri-ver; o espaço entre as linhas é a região habitada pela tribo do proprietário da arma"7. Outros povos caçadores sabem desenhar cartas — conhecemos excelentes, feitas pelos esquimós — mas unicamente os australianos conceberam a idéia de usá-las em suas armas e utensílios. Mais adiante, veremos que se devem considerar seus mapas, não ornamentos, mas uma espécie de caracteres de escrita.

Fig. 6 — Boomerang australiano com uma carta geográfica talhada, (segundo Brough Smyth).

(7) Op. cit. I, 2S4.

 

Fig. 7 — Ornamentos dos mincópios (segundo Man): (a) pintado com argila branca sobre arcos e planos, (b) sobre cinturas, (e) em branco sobre conchas (d) e (e) sobre cinturas das mulheres e os frontais, (f) em amarelo e branco sobra arcos, cântaros, remos, (g) gravado em cinturas de mulheres, e pintado em branco sobre ressoadores (Takebletter), (h) em branco sobre cintos, faixas, placas, etc.

A maioria dos ornamentos que os mincópios pintam de vermelho, escuro ou branco, ou que gravam com um pedaço de concha, em seus instrumentos, recorda tanto os ornamentos australianos que nos levam a interpretá-los da mesma maneira.

Entretanto, nada nos permite afirmar que os desenhos dos australianos e os mincópios sejam cópias de objetos análogos. Enquanto os observadores mencionam com freqüência que os australianos tiram seus motivos da natureza, Man diz expressamente que os mincópios repetem sempre seus desenhos tradicionais, sem nunca substituí-los. Os referidos desenhos não são nem ricos nem variados. O fato de que cada espécie de desenho só se emprega para certos objetos leva a supor que possuem uma significação definida. Man, que dá os nomes de todos esses desenhos, entretanto nada diz acerca da sua significação. Talvez fosse possível descobri-la comparando as formas antigas com as recentes. Os materiais de que dispomos, porém, não bastam para empreender esse estudo. Portanto, somos obrigados a deixar sem resposta a questão de saber se os mincópios tiram da natureza os seus motivos.

 

A arte ornamental dos esquimós e de seus parentes étnicos é muito mais rica e viva, oferecendo também menos dificuldades. Com efeito, não é necessário realizar amplas investigações para demonstrar que os hiperbóreos devem a maioria de seus ornamentos à observação da natureza. Basta um olhar para as figuras que gravam em seus instrumentos de madeira ou de osso. A cabeça de pássaro da faca, os peixes da alça do balde, as renas do "Pfeüstrecker", apresentam-se tão bem caracterizados que é impossível deixar de reconhecê-los. Em geral, todo o instrumento toma a forma de um animal. Nosso desenho mostra um Pfeüstrecker de osso, a que o escultor esquimó deu a forma de uma rena, e dois estojos de agulhas, dos quais o primeiro representa um peixe, e o segundo, uma foca. Em quaisquer coleções etnográficas de certa importância encontram-se objetos semelhantes. Ao lado dessas figuras, tratadas livremente e com certo realismo, há outras, feitas de modo convencional.

Fig. 8 — Instrumentos de ossos dos esquimós (segundo Jacobsen): (a) punhal, (b) arco de cântaro, (c) instrumento que serve para a fabricação das flechas. (Pfeüstrecker).

 

Citaremos aqui um só exemplo: os pequenos círculos concêntricos, cuja parte central apresenta acentuado relevo, e que se encontram em quase todos os objetos de osso. Em geral, representam olhos, mas às vezes substituem, a nosso ver, pérolas que os hiperbóreos admiram tanto quanto os demais povos primitivos. É verdade que tais círculos polidos não constituem motivos extraídos da natureza, mas fazem–nos passar a uma segunda categoria de ornamentos esquimós, tão rica e como a primeira.

Os ornatos dessa segunda categoria distinguem-se nitidamente dos que acabamos de estudar. Nem um sequer possui modelo natural. As listas paralelas, as linhas retas, cruzadas e em ziguezague, antes nos lembram as figuras produzidas na cesteria, na costura, etc. Caracterizar esses diversos desenhos equivale a explicá-los. Além disso, é suficiente recordar o emprego de tais objetos para destruir todas nossas dúvidas a respeito. Todos esses desenhos são extraídos da fonte abundante da arte ornamental, que é a técnica. São transformações e cópias de figuras. Se compararmos os modelos técnicos com os que a natureza fornece, parecerão pobres e monotonos. A arte ornamental dos hiperbóreos amiúde empregou–os, mas poucos os desenvolveu. Em geral, limita-se a imitar os modelos mais simples, a cinta, a costura e a bordadura.

É difícil dizer de um modo geral se a arte ornamental dos mincópios tem feito imitações análogas da arte têxtil. Alguns desenhos dão essa impressão, mas já vimos que não convém confiar nas primeiras impressões. Talvez um desenho com o aspecto de cópia de lista ou de desenho de cestaria não passe, na realidade, de reprodução convencional de uma pele de animal ou de cobra. Em um único caso, podemos concluir que o motivo foi copiado das artes têxteis. Os mincópios são, dentre os primitivos, o único povo que conhece a arte da cerâmica. Com argila, fazem potes grosseiros de corte diferente que lhes servem de vasilha. Grande número desses potes leva ornamentos que acreditamos destinados a imitar a urdidura de um cesto.

F!g. 10 — Utensílios esquimós de ossos em ornamento de ordem técnica, (segundo fotografias): (a) bastão de comando, (b) arco de verruma.

 

Entretanto, somente a semelhança não autorizaria essa afirmação, mas nossa hipótese justifica-se sobretudo pelo fato de que os mincópios rodeiam suas vasilhas com uma espécie de grade de caniço. O fabricante é, pois, quase inevitavelmente levado a imitar a grade em suas obras. Mas, voltaremos a esse assunto.

Na arte ornamental australiana, poderemos provar a existência de modelos técnicos, estudando a pintura de certos cestos construídos com ervas, e as lanças, cujos braços são ornados em geral com listas, pintadas ou gravadas8. Nos escudos e maças, vêem-se amiúde desenhos que muito se assemelham a fitas, objetos de tapeçaria ou de cestaria. Em muitos desses casos, podemos concluir que se trata de imitações de desenho de ordem técnica. Já dissemos, porém, que na maioria tais desenhos são apenas reproduções de pêlos, penas ou escamas. Se a aparência às vezes contradiz semelhante interpretação, razões profundas falam em seu favor.

Fig. 11 — Detalhes ornamentais de objetos de ossos, (segundo fotografia).

 

 

É difícil compreender porque o australiano empregaria desenhos de ordem têxtil em objetos que não têm relação com a arte têxtil, na fabricação e no uso. Ao contrário, veremos que a idéia de ornar suas armas com reproduções de animais e de peles lhe é necessariamente familiar.

(8) Ver Ratzel, "Volkörkunde", II, 58, onde dois desses cestos são reproduzidos.

 

Na arte ornamental primitiva, as cores não têm a importância das formas. As armas ofensivas dos australianos, não são geralmente pintadas. Ao contrário, os desenhos dos escudos são postos em relevo por uma pintura policroma. Cobrem-se as linhas dos desenhos gravados com cores, vermelho alternado com branco, por exemplo. Em outros casos, aplicam-se as cores apenas superlinalmente. Para ornar os objetos, empregam-se as mesmas cores usadas na pintura do corpo. As preferidas são o vermelho e o branco; o amarelo e o preto não se usam com muita freqüência; o azul é muito raro e sua origem parece ser européia. Entre as combinações feitas com essas cinco cores, a de branco e vermelha tem preferência sobre as demais. Não conseguimos descobrir um princípio que pudesse guiar-nos em tais combinações. Entretanto, há razões para crer que a cor dos ornamentos australianos depende da dos modelos naturais de que se copiam. O desenho desordenado do escudo de Queensland, por exemplo (fig. 4, b), lembra de modo surpreendente a casca de uma cobra. É provável que em geral se escolham as cores de maneira arbitrária. A arte ornamental das ilhas Andamã parece-se com a da Austrália, tanto nas cores como nos desenhos. Os mincópios não se cansam de repetir combinações de linhas vermelhas e brancas. Todavia, emprega-se também a cor escura. O preto e amarelo não lhes são conhecidos. Os hiperbóreos possuem paleta menos rica. Suas pinturas quase sempre se destacam em preto, às vezes em vermelho, sempre, porém, em uma só cor sobre o fundo amarelo dos ossos.

Fig. 13 — Lança australiana com ornamentos técnicos, (segundo Brough Smyth).

 

 

Eis tudo o que podemos dizer com certa aparência de verdade acerca da origem dos ornamentos primitivos. É pouco. Mas, não era de esperar-se muito mais, pois não é fácil colher onde não foi semeado.

O problema da origem dos ornamentos primitivos só é possível resolver através de profundas pesquisas locais e ninguém o tentou até agora. Como infelizmente não nos é possível realizar semelhantes pesquisas, somos obrigados a limitar-nos a estimular todos certamente que os consideraríamos como ornamento. De fato, um europeu somente reconhece os caracteres australianos quando os vê traçados em um bastão desse gênero. Mas, os australianos não empregam os seus caracteres unicamente nos bastões de mensageiro. "Têm o costume de registrar importantes acontecimentos em seus boome-rangs", diz-nos um viajante, falando a respeito de uma tribo do sul. O mesmo costume parece existir ao norte desse continente, pois Brough Smyth, ao apresentar os desenhos de alguns boomerangs de Queensland, tem o cuidado de acrescentar "que a significação de todas as figuras é inteligível para os negros"9. Mas, se com essas alusões lacônicas se quisessem separar as armas com escritas das armas com ornamentos, logo se veria que é trabalho perdido. Falta-nos um critério inteiramente sério. Nem mesmo sabemos com certeza se os australianos possuem caracteres fixados convencionalmente10. Os conhecimentos que temos das relações entre os ornamentos e a escrita dos hiperbóreos são igualmente muito insuficientes. Pretendeu-se que as figuras de animais nos objetos significassem com freqüência caracteres de escrita, como, por exemplo, que seis renas em um Pfeilstrecker indicassem simplesmente que seu proprietário havia abatido seis dos referidos animais. É possível que semelhante interpretação esteja de acordo com os fatos, em certo número de casos, mas não é provável que assim seja na maioria deles. Exato também é que os povos caçadores do Norte usam uma escrita pictográfica. Esses desenhos, traçados com muito realismo, não oferecem, porém, o critério que caracteriza toda escrita pictográfica: suas formas não são convencionais nem, por assim dizer, abreviadas. Entretanto, encontramos entre os ornamentos dos hiperbóreos verdadeiros caracteres pictográficos. Os círculos, por exemplo, que nos parecem ser imagens do sol ou da lua. Esses círculos encontram-se freqüentemente dispostos em série regular numa linha e como uma figura análoga dos índios expressa certo lapso de tempo, é possível que os esquimós lhe atribuam o mesmo sentido. Se nos perguntassem se isso não é simplesmente um cordão de pérolas, seríamos obrigados a confessar ser essa interpretação também legítima. Pode substituir-se uma suposição por outra. No final das contas, não passam de suposições.

Nossos caracteres de escrita recordam em geral tão pouco os ornamentos que é difícil confundi-los. Tal não ocorre na Austrália, cujos caracteres e ornamentos possuem muita analogia. Se encontrássemos os desenhos do bastão de mensageiro (fig. 14) em um escudo, quantos estejam em condições de fazê-lo, mostrando-lhes toda a pobreza e incerteza de nossos conhecimentos a esse respeito.

Fig. 14 — Um bastão de mensageiro e um escudo (Austrália) leva um convite à caça aos caroares (a) e as Wallabys.

 

Até o presente, designamos com os nomes de ornamentos todas as figuras que estudamos. Entretanto, na introdução, dissemos que essa denominação só é aplicável a uma parte desses desenhos, pois que a outra parte, os caracteres de escrita, as marcas de propriedade e de tribo, não encerra significação estética. Tentemos separar ambos os grupos.

 

 

Fig. 15 — Caracteres pictográficos dos índios indicando um espaço de tempo (segundo Mallery) (a) arco de verruma dos esquimós (segundo fotografia).

(9) Brough Smyth, II, 259, e I, 285. (10) Em algumas tribos há incontestavelmente formas convencionais, sendo de grande importância determinar a extensão de seu emprego e a que tribos se revelam compreensíveis. As pesquisas a propósito dessa e de outras questões interessantes não estavam ainda terminadas, quando fui obrigado a publicar os resultados das minhas. (Brough Smyth, I, LIV). Era de esperar, pois, que os resultados dessas importantíssimas pesquisas fossem publicados mais tarde. O que ainda não se fez, segundo me consta.

 

Muito mais fácil é distinguir as marcas de propriedade dos ornamentos propriamente ditos. Há muito sabemos que em quase todos os povos caçadores cada indivíduo marca suas armas com um sinal particular. E não é difícil compreender por que esse uso se desenvolveu mais especialmente entre os caçadores. O animal ferido pela flecha ou lança não cai sempre no lugar em que foi alcançado, mas amiúde muito longe desse ponto. Portanto, o caçador perderia a sua presa, se não pudesse provar seus direitos, através da marca da arma que se aloja na ferida. O australiano que encontrou um ninho de abelhas, esculpe a sua marca na casca da árvore que o tem. Esse ninho, da mesma forma que as armas e instrumentos que trazem a sua marca, é sua propriedade individual. Às vezes, os sinais nas armas australianas não indicam o proprietário, mas o fabricante. "Cada peça, diz Ho-nery, referindo-se a uma tribo, leva a marca do trabalhador que a fabrica. As marcas consistem em linhas curvas, dentadas ou losangos"11.

Infelizmente, esse autor se esqueceu de acrescentar os desenhos, o que torna impossível afirmar se as referidas marcas consistem em linhas isoladas apenas ou se são idênticas aos desenhos que se traçam na pele. Se por esse único sinal de propriedade australiana, reproduzido nas "Reliquiae Aquita-nicae"12, fosse permitido deduzir todos os demais, não seria difícil distinguir as marcas dos ornamentos, pois o sinal mencionado se compõe de incisões isoladas, que absolutamente não se assemelham a um desenho decorativo13. Conhecemos suficientemente os sinais que os esquimós fazem em suas flechas e arpões. É difícil confundi-los com ornamentos. Geralmente, consistem em linha reta ou ligeiramente curva, com ramificações mais ou menos numerosas (fig. 11, b). Ao lado desses, encontram-se outros, mais artísticos, por exemplo, os que se vêem nos remos usados na baía de Kotzebue (fig. 16), "que levam diferentes sinais de várias cores, de modo que cada qual reconhece o que lhe pertence". As marcas de propriedade dos mincó-pios não possuem nada em comum com os seus ornamentos. Cada caçador assinala suas flechas e lanças por um sistema especial de nós de barbante, desde a ponta até o cabo da arma. Sem dúvida, estamos muito longe de possuir um conhecimento profundo das marcas de propriedade primitivas. Mas, doravante podemos dizer que só pequena parte dos ornamentos primitivos serve para individualizar a propriedade dos objetos. Todavia, são numerosíssimas as marcas sociais (de tribos ou famílias), pelo menos na ornamentação australiana. Já Collins dizia que cada tribo australiana usava um símbolo particular em suas armas e instrumentos, símbolo que permitia reconhecer a categoria a que os objetos pertenciam. Por sua vez. Brough Smyth dá-nos alguns informes sobre o assunto, referindo-se às tribos do Darling superior. "Eles representam nos seus escudos os kobongs da tribo". Os kobongs dos australianos correspondem aos totens dos índios. Na maioria dos casos, são animais — um canguru, açor, lagarto, peixe — cujo nome designa os membros de uma horda ou tribo, e que se veneram na qualidade de protetor e talvez também na de antepassado. "O kobong é o melhor amigo dos indígenas, diz Gerland, prestando–lhes em toda parte proteção e ajuda". O guerreiro australiano sente-se ligado a seu ko-bong como o cavaleiro europeu se sentia ligado ao animal de seu brasão. Nossos animais de brasão não eram outrora absolutamente símbolos espirituais da virtude, que uma interpretação racional procurava dar–lhes, mas simplesmente poderosos protetores ou ancestrais de família. A conseqüência imediata e natural de tais crenças era a idéia de colocar nas armas esses animais, fetiches protetores. Assim, o guerreiro europeu coloca um urso ou uma águia no seu escudo, enquanto o australiano orna o seu com a imagem de um canguru ou de uma serpente.

(11) "Journ. Anthr. Inst.", VII, 253.

(12) P. 194.

(13) As incisões que encontramos na parte posterior de numerosos escudos oferecem o mesmo caráter decorativo. Cremos, pois, que sejam sinais de propriedade ou de fabricantes.

 

 

Fig. 16 — Marcas de propriedade: (a) maça australiana (segundo Lartet e Christy), (b, c, d, e,) remo das ilhas Aleutas (segundo Choris)

 

 

O fato de serem os ornamentos das armas australianas em grande parte brasões, nos esclarece sobre dois pontos já mencionados, mas ainda não explicados: o freqüente emprego de formas animais nos desenhos da pele e sua transformação convencional. O indígena, cujo kobong é um animal relativamente grande — caso mais freqüente — não saberia ornar seu escudo com uma marca de tribo ou um fetiche mais poderoso que a pele de seu animal totem. Mas, a veneração pelo kobong, que impele o indígena no sentido que acabamos de indicar, o detém ao mesmo tempo. Ao australiano é proibido matar seu animal kobong, ou se essa proibição não existe, deve pelo menos poupá-lo o mais possível. Portanto, não pode empregar a própria pele do animal e, em conseqüência, a substitui por uma imitação pintada ou gravada. Essas imitações quase sempre não são fiéis. Por sua rigidez angulosa parecem antes um caniçado que uma plumagem ou pele de animal. Po-der-se-ia julgar que assim ocorre em virtude do escasso talento artístico do australiano. Mas, ao contrário, os australianos dão mostras de extraordinário talento em imitações fiéis. Os materiais empregados e a técnica nada explicam tampouco, apesar de sua influência, pois nos objetos de madeira australianos encontram-se numerosos desenhos gravados, que foram executados da mesma maneira e, todavia, são mais fiéis. É preciso, pois, procurar alhures a razão. E há de se perguntar se os australianos não "quiseram" dar a seus desenhos uma forma convencional. Com efeito, assim sucede. Os referidos desenhos são brasões e estes em toda parte não se apresentam realistas, nem na Austrália, nem na Europa. Não se tratava de imitar fielmente o desenho de uma pele de cobra ou os contornos de um canguru, mas sim de representar o brasão de determinada tribo.

O primeiro australiano que pintou a pele de uma cobra em seu escudo, provavelmente o fez com a maior fidelidade. Os demais não imitaram o modelo natural, mas a cópia já transformada em brasão. Além disso, em virtude do esforço para conseguir dar à marca da tribo uma forma fixa e facilmente reconhecível, forma que se foi simplificando — ainda que não fosse pelo descuido dos desenhistas — com o tempo devia afastar-se inteiramente do modelo primitivo. Desse modo, surgiram as formas estranhas, em que a estética encontra provas de sua teoria das origens geométricas dos ornamentos. Os australianos quase sempre escolhem suas marcas de tribo no mundo animal. Mas, não se trata de um uso geral. Conhecemos pelo menos "um" exemplo notável de uma outra cópia: os esboços de cartas geográficas com que algumas tribos da Austrália meridional assinalam suas armas.

Já dissemos que nem todas as marcas de tribo se compõem de figuras de animais. Mas, não se deve julgar que todos os animais encontrados nos instrumentos sejam sinais de tribos. Nada há contra a opinião de que os indígenas desenham com freqüência animais que não têm nenhuma relação com o seu kobong. Fazem-no apenas para ornar seus instrumentos. O indígena a que Bulmer se refere escolhia os mais diferentes modelos para suas decorações.

Mas, deve evitar-se pretender encontrar, pelo método do "esclarecimento mútuo", o "sentido oculto" das figuras de animais entre os hiperbóreos, partindo-se da significação de uma parte dos ornamentos zoomorfos dos australianos. Os ornamentos zoomorfos dos hiperbóreos não são certamente totêmicos, pela simples razão de que o to-teísmo, tão generalizado na América do Norte, não existe nas regiões habitadas pelos esquimós14. Ignoramos se usam marcas de tribos em seus objetos. Contudo, é possível que a noção de "tribo" seja de importância muito secundária para essas populações dispersas em pequenos grupos afastados uns dos outros. Quanto» aos ornamentos dos mincópios, distinguem-se segundo os diversos objetos e não segundo as tribos. Portanto, não é possível que a questão entre eles seja de marcas de tribos.

ei 4) Pelo menos, entre eles o totemismo não se acha eriçjido em instituição geral e princípio social, como acontece na Austrália e em muitas regiões da América. As relações entre os feiticeiros hiperbóreos e seu demônio-servidor que amiúde se apresentam sob a forma dè gigantescos ursos brancos, lembram-nos, entretanto, as relações entre um guerreiro e seu totem.

As relações entre um homem e seu totem têm um caráter de utilidade recíproca; o totem protege o homem e este demonstra o respeito que sente por aquele, de diversos modos. Frazer. "Toremism".

 

Nos ornamentos primitivos já descobrimos caracteres de escrita, marcas de propriedade e brasões de tribo. Seria estranho que não descobríssemos também símbolos religiosos ou sinais mágicos. Com efeito, já os encontramos: são as figuras de kobong australianas que provavelmente não passam de fetiches. Ademais, existem na Austrália "madeiras mágicas", isto é, varinhas e pequenas pranchas utilizadas pelos feiticeiros, quase sempre ornadas de gravuras. Em algumas dessas peças vêem-se contornos de homens ou de animais. Na maioria, porém, são cobertas de numerosas e estravagantes figuras que mal podemos reconhecer e menos ainda interpretar.

Mas, só encontramos essas marcas estranhas em madeiras mágicas, não sendo, pois, fácil confundi-las com ornamentos. No máximo, com os caracteres da escrita, com os quais talvez sejam aparentadas. Estamos convencidos de que ainda há muito sinal mágico entre as marcas que os hiperbóreos gravam em seus objetos. O pouco que a propósito sabemos, não nos permite, porém, afirmá-lo15.

Entre todos os ornamentos a que pudemos atribuir uma significação diversa da estética, observamos apenas um só motivo técnico. Poderíamos, pois, supor que a arte ornamental primitiva escolhe os modelos técnicos unicamente por necessidade estética. Com efeito, que levaria um indolente mincópio a gravar no lado externo de um pote a imitação de um trançado de bambu, senão o prazer que ele sente ao contemplar o desenho regular assim produzido? Talvez justamente por preguiça, por espírito conservador que ele assim faça. Em seus artigos sobre a cerâmica de certas tribos de pele-vermelha, Holmes explicou longamente porque os primitivos artistas do barro decoram com tanta freqüência seus trabalhos com desenhos têxteis. A arte de fabricar pote é relativamente jovem, muito mais recente que a do cesto, também desenvolvida em larga escala entre as mais rústicas tribos. Em toda parte o cesto precedeu sempre o pote, servindo de modelo a este. "O pote de argila é um usurpador que assumiu16 o lugar e o aspecto externo de seu predecessor. Tenta-se fazer o pote tanto quanto possível parecido com o cesto. Não se contenta em dar-lhe a forma redonda, mas ainda o desenho que o cesto trançado apresentava. Não porque a vasilha se torne mais bela ou prática, mas simplesmente porque é tal o hábito de ver esses desenhos nos recipientes que parece impossível figurar estes, sem também figurar aqueles. Aos leitores que julgam semelhante procedimento demasiado estúpido, ainda que se trate de "selvagens", recordamos que os camponeses de certos países civilizados exigem sempre as mesmas pinturas nos pratos e relógios de parede que adquirem. Pela simples razão de que as toscas rosas nos quadrantes dos pêndulos ou os cordões brancos dos pratos são, no seu entender, um complemento necessário dos mencionados objetos. Do mesmo modo, pode explicar-se a presença de ornamentos em forma de lista nas lanças dos australianos. Pintadas ou gravadas, essas listas substituem a faixa verdadeira, utilizada outrora para atar a lâmina ao cabo e que se tornou supérflua, em virtude dos posteriores progressos na fabricação de lanças17. As gravuras "geométricas" nos objetos de osso dos hiperbóreos não teriam porventura a mesma significação? É evidente que, na maioria, não são apenas imitações, mas com freqüência interpretações e transformações de modelos técnicos. Contudo, podemos supor com fundamento que ainda aqui se começou pela imitação habitual de fitas e de cordões verdadeiros.

(15) Uma australiana doente dizia a seu médico que um indígena gravara o nome dela numa árvore, o que era indício seguro de sua morte próxima. A enferma chamava-se Murran, isto é, "folha". Após sua morte, encontraram-se, de fato, folhas gravadas no tronco dum eucalipto. Os feiticeiros atribuíam essas gravuras a um demônio (Brough Smyth, I, 469). Observam-se também tais figuras em árvores nas vizinhanças dos túmulos e dos lugares em que se realizaram cerimônias de iniciação. Ignoramos inteiramente o seu significado.

 

Certo, cautelosamente evitamos iludir-nos, assim como a outrem. Tudo o que mencionamos acerca da origem dos ornamentos geométricos baseia-se em suposições apenas. Não obstante, reveste-se de tão elevado grau de verossimilhança que podemos atribuir aos ornamentos de origem técnica o valor puramente estético que reconhecemos nos ornamentos de origem natural. Em todo caso, nossas pesquisas bastam para forçar-nos a confessar que grande parte das figuras interpretadas de início como ornamentos primitivos não deve sua existência unicamente a uma necessidade estética, senão a razões muito diversas. Devemos confessar também que é totalmente impossível distinguir os ornamentos aparentes dos reais. O que, aliás, não se faz necessário. Ademais, já demonstramos que todos os símbolos religiosos, brasões, marcas de propriedades e caracteres de escrita desempenham uma função estética ao lado de outra, prática, poden-do-se considerá-los como ornamentos de ordem secundária. Exemplifiquemos. Escolheremos, para tanto, um grupo inteiramente à parte dos ornamentos propriamente ditos: o dos caracteres da escrita. Para convencermo-nos do caráter artístico da escrita, não há necessidade de olharmos para as miniaturas ornadas de ouro e cores brilhantes da Idade Média, nem para as maravilhosas impressões do Renascimento, com suas belas maiúsculas. É suficiente que tomemos uma das cartas que o correio nos traz todos os dias, contanto que não seja escrita por mão pouco exercitada ou de um grande sábio. O que exigimos de um escrito é que seja, antes de tudo, claro, legível. Mas, não é tudo. O negociante que procura um caixeiro deseja que este tenha não somente uma escrita legível, mas também bonita, e as próprias pessoas que não ganham o pão com a arte de caligrafia esforçam-se por escrever o melhor possível, a menos que não tenham adquirido no liceu a convicção de que uma escrita ininteligível e feia é o melhor índice de um gênio extraordinário. Considere-se um autógrafo de Goethe, por exemplo o do álbum dos Estados Unidos, reproduzido na edição do "Bi-bliographisches Institut". Sé Goethe tivesse desejado limitar-se a ser legível, não teria caprichado tanto nos traços. Mas, o cuidado com que escreveu as maiúsculas, as linhas graciosas e vigorosas ao mesmo tempo, os espaços iguais das entrelinhas, tudo prova que o autógrafo não devia brilhar somente pela idéia, como ainda pela forma. De resto, cremos que um autógrafo de Goethe nos produz impressão muito mais agradável que seus desenhos que ele contemplava com tanto prazer18. Os japoneses, povo de artistas, apreciam a caligrafia como as demais artes. Muitos dos grandes mestres japoneses devem sua glória tanto à beleza da escrita quanto à de seus quadros.

(16) Todavia, ainda existem tribos que usam cestos para o conservação de líquidos. Os cafres e certas tribos americanas, por exemplo.

(17) No museu de Friburgo há duas azagaias da Austrália setentrional que confirmam perfeitamente nossa asserção. A lâmina de quartzo da primeira é atada com barbante ao cabo, e a lâmina absidiana da segunda é colada com uma espécie de goma. Essa goma leva pinturas que imitam cordões. É verdade que a interpretação poderia ser inversa, dizendo-se que pela pintura se pretendia recordar ser a maneira de colar a lâmina ao cabo menos eficiente que a outra, que consiste em ligá-la. Mas, ainda nesse caso não haveria significação estética.

 

(18) Todos quantos desconhecem o espírito da estética moderna talvez achem incompreensível que essa ciência nunca tenha sonhado estudar o caráter estético da escrita. É evidente que o estudo de tão ricos e acessíveis materiais viria contribuir para esclarecer-nos acerca do gosto de classes, nações e épocas inteiras. Mas, essa idéia é extremamente banal para que a estética se distraia, ainda que por um instante, ‘de suas especulações e .experiências tão profundas.

Tudo o que dissemos acerca da escrita é válido para o estudo das outras produções da arte. Todos os símbolos, brasões, marcas, enfim, todos os sinais, cujo papel principal é de ordem prática, colocam-se, no que se refere à forma, entre os objetos de estudo da estética. É verdade*que até agora a estética desprezou o aproveitamento de tais sinais. Fech-ner, cuja visão esclarecida via no estudo das mais simples formas uma das mais prementes tarefas da estética, recomendou e empregou o método que se baseia na medida das formas e nas dimensões dos objetos usuais19.

Entretanto, ao se medirem ladrilhos, pedaços de chocolate, folhas de papel de carta e quadros, esquecia-se de procurar as "proporções mais simples" onde fácil era encontrá–las. Nunca será demais repetir que a maior falta da ciência estética reside no desprezo pelo estudo das formas primitivas, pois aí se trata de resolver a seguinte questão: há condições gerais de prazer estético, existe o belo absoluto? É verdade que os estetas julgam não ter os seus princípios necessidade de um exame do ponto de vista de seu valor absoluto, mas muitas coisas foram tidas como aquisições definitivas até o dia em que se admitiu serem, na realidade, inteiramente diversas. Em todo caso, primeiramente seria preciso provar que os atuais princípios estéticos possuem efetivamente um valor geral. Mas essa comprovação poderia efetuar-se unicamente através de um estudo etnográfico comparado, que deve começar pelos povos mais primitivos. Se, então, encontrarmos nas produções artísticas dos primitivos os mesmos princípios estéticos que dirigem igualmente a criação artística dos civilizados, teremos ainda que verificar se esses princípios se acham entre os primitivos no mesmo estado de evolução que o dos povos superiores, ou se existem diferenças de forma, um progresso do tosco para o requintado, do simples para o composto. As considerações que a seguir faremos não esgotam absolutamente o assunto. Devemos e podemos limitar-nos a pôr em relevo alguns pontos principais.

Se compararmos o desenho de uma fita andamã (fig. 17) com um dos desenhos que cobrem o papel de nossas paredes, reconheceremos que, apesar de todas as diferenças, o mesmo princípio domina em ambos. Os traços da cintura repetem-se com a mesma regularidade das flores no papel: é a mesma série rítmica. Essa

(19) Fechner, "Vorschule der AEstherik", 1, 190.

analogia não se limita, em absoluto, ao caso que nos preocupa no momento. Ao contrário, se prosseguirmos em nossas investigações, chegaremos à conclusão de que o princípio da ordem rítmica preside à arte dos povos menos civilizados, da mesma forma que à das nações mais adiantadas. Portanto, podemos dizer que o ritmo causa em toda parte o mesmo prazer ao homem20. O ritmo consiste na repetição regular de uma unidade qualquer: um som, um movimento, ou, como no caso em exame, uma figura. Mas, a unidade rítmica não tem necessidade de ser uma unidade no sentido próprio do termo. Ao contrário, compõe-se de vários elementos, mas sempre deve produzir o efeito de uma unidade. Dá-se o caso mais simples quando uma série rítmica é constituída pela repetição regular de uma verdadeira unidade: ponto, linha reta, círculo. Essas unidades são relativamente raras na arte decorativa dos povos superiores e, ao contrário, freqüentes — o que é um traço característico — na arte ornamental dos primitivos21. Nos instrumentos dos mincópios, observam-se amiúde séries rítmicas, que consistem em linhas retas e paralelas, sucedendo-se com intervalos regulares. Às vezes, os australianos ornam a borda de seus escudos com uma série de pequenos círculos. O mesmo modesto ornamento goza da preferência dos hiperbóreos. As séries de figuras animais nos instrumentos de osso dos esquimós dispõem-se igualmente segundo o mesmo princípio. Entretanto, não há uma só tribo primitiva que se tenha limitado a tais desenhos simples. Encontramo-los mais complexos mesmos nos primeiros tempos da arte decorativa. É verdade que esse progresso se impunha de tal modo que se tornava impossível evitá-lo. Referimo-nos há pouco a um desenho mincópio, composto de linhas paralelas. Bastaria unir, por meio de um traço, a extremidade superior à inferior da linha seguinte para aparecer o ziguezague22. Na arte decorativa primitiva, domina o ziguezague regular, formado de duas unidades, sendo encontrado na maioria dos escudos e maças dos australianos e pintado de vermelho ou escuro em quase todos os objetos e armas dos mincópios. Com mais freqüência que qualquer outro desenho, observa-se nos agulheiros, nos cabos do furador, nas alças dos baldes dos hiperbóreos. Pensamos, porém, que o zigue-zague foi ultrapassado na arte primitiva, mesmo entre os australianos. Nas cintas destes (fig. 17), por exemplo, vêem-se duas séries paralelas de ziguezagues, fazendo parte de uma unidade rítmica. O agulheiro reproduzido na figura 10 (e) demonstra que os hiperbóreos sabem construir séries rítmicas muito complicadas.

Fig. 17 — Cinto dos mincópios, (segundo Man).

(20) Não nos compete investigar aqui as razões desse prazer. Ademais, ser-nos-ia impossível dar uma explicação satisfatória. No livro "The power of Sound", Guerney demonstrou claramente que todas as hipóteses atuais são insuficientes para explicar as mencionadas emoções.

(21) Na Europa, tais séries primitivas deparam-se apenas na arte popular, sobretudo na cerâmica. Vêem-se com freqüência nas bordas dos pratos de barro que a indústria privada de Heimberg (perto de Thoun), envia às feiras da Suíça e do sul da Alemanha.

 

Se atribuímos a essa ordem rítmica, tão freqüente na arte decorativa dos povos caçadores, uma importância estética, não pretendemos com isso dizer absolutamente ser sua origem da mesma ordem. Ao contrário, estamos convencidos de que o artista primitivo não inventou o princípio regular, mas o encontrou na arte de cesteiro, que se vê obrigado a dispor seus materiais de maneira regular.

É provável que pelo hábito, e não pelo prazer estético, se tenham primeiramente imitado os desenhos têxteis. Pouco a pouco percebeu-se o seu valor estético e principiou-se a combinar e enriquecer as séries regulares. Naturalmente, é difícil dizer onde cessa a imitação mecânica e começa o trabalho estético. Em todo caso, pode dizer-se também que o arranjo regular despertou o prazer que se sente ao observar a regularidade, e não o prazer que provocou o arranjo regular.

Se o princípio da regularidade deve ter-se introduzido na arte decorativa pela imitação de modelos técnicos, um outro princípio, também de valor geral, se originou provavelmente da imitação dos modelos naturais. Queremos referir-nos à simetria. Vimos que a arte ornamental primitiva emprega de bom grado modelos naturais e sobretudo formas humanas e animais. Mas, pelo fato de serem simétricos os modelos da natureza, a arte deu igualmente essa forma a suas imitações.

(22) Não pretendemos, todavia, que o ziguezague tenha sido inventado em toda parte do modo indicado. Mesmo entre os mincópios pode ter sido descoberto de diversas maneiras. Para nós, trata-se somente de opô-lo, como forma complexa, à forma mais simples que o precede.

 

Tal derivação é mais que uma construção. A prova está na limitação singular do emprego simétrico dos motivos, que tanto podemos observar nos australianos quanto na arte decorativa antiga e gótica. Observemos os três escudos australianos da figura 18, colocando-os em posição vertical. O primeiro (a) é inteiramente simétrico, tanto vertical quanto horizontalmente. Os desenhos dos escudos restantes são simétricos em um caso apenas.

 

O número das figuras das duas metades não é o mesmo. Nessa particularidade, muito freqüente na Austrália e que na Europa se considera regra de bom estilo23, vemos uma prova do que afirmamos. A simetria horizontal unilateral dos desenhos dos escudos corresponde exatamente à simetria horizontal e unilateral das formas animais. O fato de haver a arte primitiva encontrado na natureza o princípio da simetria não nos autoriza, entretanto, a dizer que não teve também outras fontes. No início do presente capítulo, dissemos que, em virtude de razões práticas, os objetos e armas apresentam a forma simétrica.

Fig. 18 — Escudo dos australianos (segundo Brough Smyth).

(23) Ruskin, "Seven Lamps of Architecture", IV, cap. XXVIII.

É, portanto, natural que a forma simétrica do instrumento seja responsável pela sua decoração simétrica.

Não obstante, o princípio artístico da simetria deve ter razões muito gerais que saltam à vista, porque não há um só povo que não tenha posto em vigor. Reconhecem-lhe o valor tanto os escultores dos escudos australianos quanto os arquitetos do Partenon24. É verdade que a execução artística dos primitivos é bem inferior à dos povos superiores. Satisfazem–se com a simples impressão sumária da simetria. Defeitos de tal ordem toleram-se nas ilhas Andamã e na Austrália e que ofenderiam a vista exercitada de um grego. Não obstante, encontramos também na Austrália alguns desenhos assimétricos, por exemplo, maças e escudos, cujos desenhos obedecem a uma disposição absolutamente irregular. Nos boomerangs é mais fácil verificar essa ausência de simetria. Os leitores devem recordar-se da citação feita anteriormente, acerca do hábito que certas tribos do Sul têm "de anotar os acontecimentos importantes em seus boomerangs". Há muita probabilidade de que esses desenhos simétricos sejam caracteres de escrita e não ornamentos. Em conseqüência, as considerações de ordem estética desempenham papel secundário em sua fabricação. Enfim, conhecemos um grupo de figuras usadas nas armas à maneira de marcas de propriedade ou de tribo e que excluem pelo seu próprio caráter qualquer arranjo simétrico. Queremos fazer referência às cartas geográficas, cuja amostra reproduzimos.

Somos obrigados a abandonar essas pesquisas aos estetas. Para nós, trata-se mais de colocar as questões que de dar–lhes resposta. Por isso podemos limitar-nos às alusões que acabamos de fazer.

Mais de uma vez, no curso de nossas investigações, incli-namo-nos a falar sobre as relações entre a arte ornamental e a civilização primitiva. Agora, que conhecemos a arte ornamental em suas linhas essenciais, podemos tentar o estudo das referidas relações. Em outro capítulo, explicamos por que a forma de produção é o fator essencial da civilização, que dá um caráter definido a todas as manifestações artísticas de determinado grupo social. Sê nossa hipótese for justa, descobriremos também relações entre a arte decorativa e a forma de produção das tribos caçadoras. E, com efeito, a influência da caça se exerce no caráter geral da arte ornamental primitiva. Os pobres e toscos desenhos executados pelos caçadores são conseqüência e ao mesmo tempo imagem fiel de toda a miséria material e intelectual em que vivem, pela sua situação inteiramente primitiva. A miséria — a presa magra e incerta da caça não lhes permite nunca abrigar-se da miséria — os proíbe de ocupar-se de coisas que não estejam em relação direta com suas necessidades e bem-estar momentâneos. A vida errante, conseqüência inevitável da caça até nas regiões em que mais abunda, os impede de desenvolver sua arte ornamental. A pobreza da arte decorativa primitiva é tanto mais surpreendente porque revela em toda parte os mesmos característicos. Tanto no Norte, quanto na Austrália e nas ilhas Andamã, deparam–se os mesmos desenhos rudimentares, com exceção de algumas diferenças de ordem secundária. A monotonia das produções artísticas leva-nos a pensar na produção, que igualmente é pouco variada. Se o caráter da arte decorativa dependesse, como se pretendeu,do clima ou da raça, pelo menos os australianos deveriam diferenciar-se dos hiperbóreos. Ora, não é difícil provar a existência de relações entre a produção e a decoração primitivas.

(24) A única exceção a esse princípio, que se poderia aduzir, é apenas aparente: os japoneses dispõem suas decorações assimetricamente. O atrativo particular dessas decorações origina-se, porém, da união com a forma simétrica dos objetos decorados. A arte japonesa depende, pois, como as demais artes, do princípio da simetria e se aplica onde parece contrariá-lo.

 

Os modelos que os caçadores copiaram da natureza são quase sempre formas animais ou humanas. Escolhem, pois, os objetos que lhes oferecem maior interesse prático. O caçador primitivo abandona às mulheres o trabalho, na sua opinião inferior, de completar o cardápio por meio de pratos vegetais, de que não pode prescindir totalmente. Mas, não se ocupa com as plantas. Nessas condições, é claro que não haja na arte ornamental dos povos caçadores traços de formas vegetais, formas que tão rica e graciosamente se desenvolveram entre os civilizados25. Já dissemos que esse contraste encerra uma significação muito profunda. A passagem do ornamento copiado do mundo animal ao ornamento copiado do mundo vegetal é, na verdade, o símbolo do mais alto progresso realizado, isto é, da passagem da caça à agricultura. Mas, entenda-se. Com isso não queremos dizer que a passagem ao ornamento de ordem vegetal seja contemporânea da passagem à agricultura. De

(25) É sabido que os homens primitivos não se enfeitam com flores, apesar de haver abundância nas regiões dos bosquimanos e australianos, durante certa época do ano. Só os infelizes tasmânios fazem exceção à regra. Bonwickí diz que gostavam de enfeitar-se com flores o colocá-las sobre seus túmulos.

início, entre os agricultores primitivos a arte decorativa desenvolve-se no sentido de que os motivos técnicos adquirem maior riqueza e cuidado, ao passo que os motivos da natureza se tornam convencionais e diminuem de número. O ornamento de ordem vegetal é apenas conhecido de um povo de agricultores primitivos, os dayaks de Bornéu, certamente introduzidos pelos chineses e hindus. Inútil seria a sua procura nos belos tecidos dos peruanos de Ancon. Ao contrário, julgamos reconhecê-lo nitidamente em alguns dos mais antigos bronzes chineses. No Egito, deve ter sido conhecido em boa hora. Os demais motivos da decoração primitiva copiam suas formas da técnica, ou seja, da forma da técnica permitida e exigida pela vida pouco estável dos caçadores, isto é, a cestaria. A pobreza e a estreiteza da vida dos caçadores não permitem, entretanto, desenvolver muito essa arte. Somente nas condições mais favoráveis é que a arte têxtil poderia mostrar toda a sua riqueza. Os caçadores só conheciam os desenhos mais simples e monótonos.

O homem, porém, não imita unicamente os motivos que encontra à sua disposição. Transforma-os também, dando aos modelos formas mais finas, mais variadas. Como exemplo, citam-se os ornamentos de origem têxtil que se observam nos apitos e agulheiros dos hiperbóreos. Mas, amiúde simplificam-se as formas originais, para facilitar o trabalho. Assim, sem dúvida, nascem muitas das formas extravagantes da arte decorativa australiana, cuja significação é enigmática à primeira vista. A preguiça dos artistas simplificou cada vez mais a imitação das formas naturais e, finalmente, o ornamento não passa de pálida recordação de seu modelo. Todavia, os motivos de ordem técnica com freqüência também se ressentem dessa preguiça. O mincópio, por exemplo, não se dá absolutamente ao trabalho de imitar com exatidão nos seus vasos os desenhos de um ramo de flores, contentando-se com indicá-los levemente. Quaisquer que sejam as razões de tais transformações, estas nunca testemunham uma invenção muito viva ou vigorosa. Alguns historiadores da civilização quiseram dotar o homem primitivo de excesso de imaginação. Se assim fosse de fato, suas produções artísticas o comprovariam.

A forma dos ornamentos primitivos depende em grande parte diretamente dos materiais imitados. A preferência pelos desenhos angulosos e de linha reta — como amiúde se verificou — explica-se em muitos casos pela imitação dos desenhos de ordem têxtil. É verdade que os australianos gostam de dar formas angulosas aos próprios desenhos que imitam objetos naturais. Quanto não se parece, por exemplo, a reprodução artística de uma pele de animal ou plumagem dos escudos australianos com um pedaço de cesta! Brough Smyth, que não se esqueceu de observar essa particularidade, a explica tão–somente pela incapacidade dos "selvagens, que não são capazes de traçar um círculo ou uma curva de certa dimensão sem certo esforço", diz ele, porque "lhes é excessivamente difícil livrar-se da influência que sobre seus espíritos exercem as formas geométricas"26. Infelizmente, o valor de suas explicações é algo diminuído pelas ilustrações reproduzidas em sua obra e através das quais os entendidos podem certificar-se suficientemente de que os "selvagens" da Austrália traçam grandes curvas tão bem e tão amiúde quanto as pequenas. Em nossa opinião, a verdadeira resposta ao problema não precisa ser procurada nas profundezas psicológicas em que Brough Smyth se afogou. Se o sábio autor dos "Abori-gines of Victoria" tivesse tentado, uma vez pelo menos, gravar qualquer figura num pedaço de madeira, servindo-se de um cinzel australiano, isto é, de um dente, um pedaço de concha ou lasca de pedra, logo verificaria que ele próprio, cujo espírito civilizado pode livrar–se facilmente da influência das figuras geométricas, era incapaz de traçar uma curva "sem esforço". Essa experiência talvez o induzisse a pensar conosco, isto é, que o estilo geométrico das figuras australianas é conseqüência natural da técnica de gravura. Efetivamente, o caráter geométrico mostra-se mais generalizado e mais claramente nos desenhos gravados. Os desenhos pintados são, em geral, tratados com mais ampla liberdade. Suas curvas são ligeiras e exatas27.

Num livro célebre, Gottfried Semper demonstrou que o estilo artístico dos povos superiores depende principalmente da técnica. Vemos que essa afirmação é igualmente verdadeira para a arte das tribos primitivas.

(26) Brough Smyth, I, XLIII. Toda a passagem é de tal modo característica do método em uso, na matéria, que não resistimos ao desejo de citá-la aqui. "Sawages, when they attempt ornamentation, appear to have the greatest difficulty in emancipating themselves from the control which geometrical figures exercise on the mind. They cannot, without an effort, make a large circle or a large curve. A snake drawn by an Australian is angular, and the neck of the emu is angular. Perhaps it is correct to say that wherever curved lines prevail in the decorations of a race (!) there is an approach to a state as regards art, somewhat higher.

(27) Comparem-se as figuras que reproduzimos, principalmente o escudo (fig. 4,a). O desenho geométrico é gravado, e as grandes curvas pintadas de sanguina (isto é verdade pelo menos no que se refere ao escudo da coleção do museu de Freiburg). O grande escudo de Queensland (fig. 4,b), que se encontra no museu de etnografia de Berlim, só apresenta desenhos pintados, em que há numerosas "curvas amplas". Os demais escudos de desenhos geométricos reproduzidos nest livro, são gravados.

 

Não é difícil reconhecer a_ influência da cultura primitiva sobre a arte decorativa primitiva. Em compensação, não é fácil verificar a influência da arte decorativa sobre a civilização. A nosso ver, trata–se apenas das funções da arte ornamental, que esta exerce, enquanto arte decorativa. E como sabemos que entre os caçadores o papel estético dos ornamentos é em grande parte secundário, devemos esperar que o efeito desses ornamentos seja igualmente de importância secundária. À primeira vista, poder-se-ia supor que a decoração dos objetos desempenha um papel análogo ao do corpo, isto é, que se destina a atrair e espantar. Talvez os ornamentos das armas de um pretendente australiano não deixem de ter influência sobre a decisão da jovem que ele ambiciona ou sobre os seus parentes. Parece-nos, porém, temerário aplicar nossas conclusões de civilizados aos povos primitivos. Em verdade, na Austrália, como na Europa, não bastam "as qualidades do coração" do rapaz que deseja casar. Contudo, a pessoa do rapaz é na Austrália muito mais importante que suas riquezas, geralmente quase nulas. Menor ainda é o valor da decoração dos objetos, enquanto meio de manter e consolidar as distinções e diferenças sociais. É provável que os homens mais honrados da tribo, isto é, os caçadores e os melhores guerreiros, possuam armas e objetos decorados mais ricamente que os outros membros da tribo. Mas, é também muito provável que teria a mesma autoridade, se suas armas e objetos não se distinguissem em nada dos pertencentes aos demais. Quanto ao uso de decorações a fim de assustar o inimigo, as que se vêem nos escudos são as únicas que poderiam servir a esse objetivo, e o escudo não se acha muito difundido entre os povos caçadores, encontrando-se apenas na Austrália. Mas, os ornamentos desses escudos não espantam ninguém28. Significam evidentemente marcas de propriedade e, às vezes, amuletos. A influência essencial e benéfica que a decoração dos objetos exerce na vida das tribos primitivas é, segundo pensamos, a de estímulo à habilidade técnica. A decoração propicia a quantos a pratiquem uma certa destreza que lhes beneficia os interesses práticos. É verdade que o mais forte interesse estético não seria capaz de elevar a técnica acima do nível em que mantém a miséria econômica. Somente quando esta for eliminada, através de uma forma de produção mais elevada, é que relações mútuas e fecundas podem estabelecer-se entre a técnica e a arte ornamental, cujos resultados admiramos nos polinésios e americanos. Em todo caso, os ornamentos primitivos exercem uma influência sobre a vida social, muito mais pelo seu papel — isto é, pela sua função de símbolos, marcas de propriedade ou brasões — que por sua forma estética. No estado primitivo, o papel estético da arte decorativa é apenas secundário, as formas graciosas se aplicam a coisas de importância prática, como um cipó novo aos ramos de uma árvore. Mais tarde, porém, mais depressa e vigoroso que a árvore, desenvolve-se o cipó, que acaba por cobrir inteiramente as formas da árvore, ficando à vista apenas a folhagem verde e asflores coloridas da planta trepadeira. Os ornamentos propriamente ditos que a princípio tinham apenas uma função modesta exclusivamente, tornam-se mais ricos e freqüentes, ao mesmo tempo que os ornamentos secundários perdem pouco a pouco sua significação original e adquirem formas puramente estéticas. Portanto, observa-se uma grande diferença entre a arte decorativa dos povos primitivos e a dos civilizados, diferença de natureza e de efeito.

(28) Encontram-se escudos com figuras de demônios ameaçadores entre os dayaks de Bornéu.

 

Iríamos muito além do limite que traçamos para nosso estudo, se quiséssemos tentar acompanhar os efeitos sociais das formas superiores da arte governamental. Tais efeitos são consideráveis, pelo menos onde a vergonhosa prostituição da arte, que é a fabricação por atacado, ainda não conseguiu destruir todo o encanto e vigor da decoração.

Fonte: Ed. Formar ltda.

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