As ciências humanas segundo Dilthey:
No centenário de morte do pensador,
livros recuperam sua influente distinção entre investigação técnica e cultural[1]
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens[2]
Em 2011 se celebra o centenário de
morte de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Para esta data, no Brasil e no exterior,
editoras e universidades vêm se mobilizando desde o ano passado para organizar
novas edições das obras do filósofo alemão. Associados à Universidade de Colônia
– Alemanha, tradutores de diversos países vêm vertendo a obra para o
inglês, o russo e o japonês. Também traduções para o português vêm sendo
publicadas tanto no Brasil quanto em Portugal.
Em nosso país, trabalhos de diferentes
fases da obra de Dilthey já foram publicados por editoras de expressão. Até o
momento, o resultado desses lançamentos é um desenho sincopado da produção do
filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiólogo e pedagogo. Com as lacunas que
possui, entretanto, tal política editorial ainda nos é mais favorável do que a
situação de penúria que enfrentávamos até a presente data, quadro em que eram praticamente
inexistentes as traduções confiáveis de Dilthey.
Clarividência
em meio a crise de paradigmas
Autor a bem dizer desconhecido fora
das rodas acadêmicas, precariamente estudado no interior delas e
proporcionalmente pouco lido mesmo na Alemanha, Wilhelm Dilthey é, contudo, um
pensador decisivo na transição do século XIX para o XX. Filho de um pastor
calvinista e criado no caldo de cultura de uma Berlim animada por nomes como
Bopp, Droysen, Ranke, Ritter e Savigny, Dilthey foi um dos primeiros a lançar
um olhar lúcido sobre as metodologias das ciências humanas.
Para fazer essa avaliação, o filósofo precisou
viver uma época na qual grassava campo uma drástica crise de paradigmas
científicos. Tal quadro fez com que os sistemas idealistas do século XIX experimentassem
sua decadência e se criasse uma tendência ao positivismo. Em fins daquele
século, chegou-se a acreditar que apenas um recurso às ciências positivas garantiria
o acesso ao conhecimento válido. Entendendo, contudo, que as premissas do
idealismo se tornaram inapropriadas, mas que o positivismo também não era
solução, Dilthey denunciava que as ciências positivas atuam de modo a abstrair
o “objeto” das ciências humanas e acenava à necessidade de uma refundamentação
destas ciências de modo que seu conhecimento objetivo não ocorresse apartado do
solo humano que lhe é próprio. Essa constatação e consecutiva crítica às
ciências positivas abriram terreno para uma enxurrada de análises e desdobramentos.
Spengler, Scheler e Spranger são apenas alguns nomes que, seguindo as pegadas
de Dilthey, reforçam a premissa de que as ciências humanas precisariam
assentar-se em um solo que lhes garantisse base adequada.
A
influência decisiva no século XX
A influência de Dilthey sobre os seus
contemporâneos não foi acaso, muito dela se explica dado a sua obra, desde
muito cedo, ter se concentrado em um único escopo, a referida fundamentação das
ciências humanas. Este fato garantiu-lhe antecipação e maturidade. Uma prova
disso é o fato do autor, no ano de 1850, com apenas 17 anos, já acenar à
urgência de um movimento que tornasse possível “a constituição definitiva da
ciência histórica e, por meio dela, as ciências do espírito”. Perseguindo a
esse objetivo, Dilthey, já em seus primeiros trabalhos, toma Kant e Hegel por
interlocutores (o segundo como alvo de contestação); também Schleiermacher se
mostra como um aliado, na medida em que seu método hermenêutico é apropriado no
esforço diltheyano de desenvolver algo que poderíamos chamar de “crítica da
razão histórica”. Como a denominação anuncia, Dilthey visa a estender a
intuição do projeto crítico kantiano ao domínio da história, passo que
dependeria da determinação do estatuto do homem na constituição das ciências humanas.
Dilthey investe em seu projeto sabendo que é o âmbito da vida, o espaço
característico das vivências, que garante as percepções de um mundo histórico
constituído (do mesmo modo, num outro período mais adiantado de sua obra, vemos
o autor apostar no projeto de uma psicologia analítico-descritiva, via
congênere que aponta para o embasamento psicológico-gnosiológico das
ciências).
Obra
assistemática e contribuição inegável
Embora a obra de Dilthey seja assistemática
desde os trabalhos de juventude, isso não nos impede de identificar um
interesse comum que perpassa todos os escritos do alemão com várias feições até
às vésperas de sua morte. É o que podemos comprovar com a apreciação das obras
recém-publicadas.
Introdução às ciências humanas[3] é uma obra de 1883 na qual o autor formula
a tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. É
nesta que o autor expõe mais claramente o conceito de vivência (a própria vida
dos fenômenos, realidade absoluta que garante a correlação entre a
consciência e seus objetos em um contexto efetivamente histórico) como ponto de
partida para qualquer saber relativo ao humano. Munido do método hermenêutico,
Dilthey pode evidenciar que uma fundamentação das referidas ciências ocorreria
ao passo em que se possibilitaria um compreender acerca de como o conhecimento
humano se faz desde o horizonte próprio ao espírito, sem que os procedimentos
abstrativos do positivismo nisso interfiram.
Esta obra, por definir conceitos e
métodos, delimitar o lugar autônomo das ciências humanas frente às ciências
naturais, fornecer visões gerais sobre as humanidades e distinguir entre as
duas classes de ciência,é considerada por autoridades como Max Weber o
primeiro estudo sério no qual se aborda o problema metodológico das chamadas
ciências humanas. Não bastasse isso, fica patente na obra a admirável erudição que
Dilthey põe à serviço de seu projeto filosófico.
Ideias sobre uma psicologia descritiva
e analítica[4] é uma obra apontada
como extensão do projeto hermenêutico diltheyano que apresenta pontos basilares
aos estudos posteriores, referentes à constituição do mundo histórico.
Escrita na forma de ensaio, com ela Dilthey
ressalta a necessidade de se dar alicerce psicológico às ciências humanas; antes,
no entanto, esboça a maneira com a qual atua a psicologia científica. Na mesma
obra, além de nomear estudiosos da experiência humana comprometidos com o
modelo positivista (Spencer e Taine), Dilthey indica que a psicologia de sua
época seria explicativa, lógico-causal, dedutiva, materialista e hipotética, ao
contrário de sua psicologia analítica descritiva, compreensiva por excelência. Em
seu capítulo dois, presenciamos não apenas a distinção entre a psicologia
explicativa e a descritivo-analítica, como também a interface que a filosofia
do século XVIII possuiria com a psicologia do XIX; daí, Dilthey desfiar o
roteiro que nos leva de Wolf a Kant e, deste, à psicologia de Drobisch,
passando pela de Herbart e de Waitz.
Por apresentar as bases psicológicas e
teóricas do pensamento de Dilthey, o ensaio em apreço também é utilmente
recomendado como introdução à obra A construção do mundo histórico nas
ciências humanas (tal correspondência que se deve ao fato das duas obras
terem o mesmo pano de fundo e motivação).
A construção do mundo histórico nas
ciências humanas[5]é outro trabalho no qual Dilthey se
mostra preocupado em estabelecer uma relação saudável entre as ciências
naturais e humanas. Fundamentalmente, o filósofo pretende mostrar o quanto
dependemos de uma apreensão do lugar do homem na própria constituição da vida
histórica, esta que, por sua vez, se engendra imediatamente a partir da
percepção de uma conjuntura histórica específica. Sem dúvida, com Dilthey, o
tema do mundo histórico encontra no homem base para ser problematizado, pois segundo
o filósofo são as vivências humanas o ponto de conexão de um determinado tempo
e das visões de mundo que pertencem ao mesmo. Deste modo, o homem é o ser sobre
o qual se assentaria primordialmente a vida histórica da totalidade.
Nos três casos, as traduções assinadas
por Marco Antônio Casanova, cumprem bem a tarefa de trazer a obra de Dilthey ao
leitor de língua portuguesa, esforço que denota, inclusive, conhecimento dos
cânones mais atuais de tradução do filósofo. Um exemplo disso é a adoção de
“ciências humanas” para traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften (literalmente “ciências do espírito”). Essa opção encontra precedente nas
traduções de língua inglesa e endosso junto a especialistas, entre eles o
exegeta alemão Matthias Jung que assevera que a opção por “ciências humanas”
expressa melhor a conexão de sentido da realidade sócio-histórica do que
“ciências do espírito”, a qual facilmente a noção de espírito pode ser mal
entendida como algo independente da lida com homens reais. As edições são
normalmente dotadas de aparatos críticos, fornecendo, em alguns casos, dados
biobibliográficos do filósofo, como, por exemplo, a posição e importância do
referido trabalho no panorama da obra. Esses subsídios favorecem, em muito, o
acesso do leitor brasileiro a elementos do pensamento de Wilhelm Dilthey.
[1] Artigo publicado originalmente no
Caderno Prosa & Verso In: O Globo. Rio de Janeiro: O Globo. Jornal
Diário. 1◦ de outubro de 2011. p.2.
[2] Doutor em filosofia pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, autor de Heidegger & a educação.
[3]DILTHEY, Wilhelm. Introdução
às ciências humanas – Tentativa de uma fundamentação para o estudo da
sociedade e da história. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
[4]DILTHEY, Wilhelm. Ideias
sobre uma psicologia descritiva e analítica. Tradução: Marco Antonio
Casanova. Via verita: Rio de Janeiro, 2010.
[5]DILTHEY, Wilhelm. A
construção do mundo histórico nas ciências humanas Tradução: Marco Antonio
Casanova. São Paulo: UNESP, 2010.
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