A GRUTA DO INFERNO
Quem sai do Forte de Coimbra, pelo portão de cima, rumo à barra, percorrendo o pantanal em direção Norte, durante trinta minutos, atinge a ura ponto extremo da corda de urna garganta ou de urna grande curva do rio Paraguai. O Morrinho fica do lado direito, e à esquerda, um outro desfiladeiro. Aí, bem nas saliências do morro de Coimbra, existe a entrada da famosa e tétrica gruta do Inferno, ou Buraco Soturno.
Acossado pela ânsia de registrar as coisas interessantes e surpreendentes de Mato Grosso, numa manhã ensolarada de fevereiro, em companhia do capitão-comandante do Forte de Coimbra, demandei à região escusa e perigosa onde a dita gruta abre ao sol sua enorme bocarra à sombra de uma frondosa, disforme e formidolosa figueira. Tanto eu, como o Capitão Pais Brasil, pela primeira vez cogitávamos prescrutar os segredos daqueles fantásticos abismos. Uma vez chegados à oreóla do anfratuoso orifício irregular e esborcinado da gruta, onde pedras e raízes sobrepostas formam, na entrada, uma tentativa de abobada, infundido um aspecto todavia mais lúgubre àquela passagem, tivemos aí a explicação racional porque muitas coragens se têm abatido diante do sinistro, misterioso e apavorante que se exala da boca do Buraco Soturno.
Não há, porém, às vontades firmes e resolutas, obstáculos que se oponham a afrontar o perigo, quando esse perigo é analisado frio e conscientemente. E, armados da conscienciosa vontade de perquirir as entranhas da gruta, avançamos, resolutos, no desejo de conhecer uma obra bruta da natureza, cujas lendas aguçam a curiosidade e exaltam os sentidos com um corolário de fatos exagerados pela tradição e pelos fetichismos. Cautelosos e prudentes, pés firmes, atenção atilada e de braços preparados para a defesa de prováveis desastres e quedas, descemos, armados de grande prudência, a garganta da gruta.
A emoção, lardeada de dúvidas e incertezas, resvalando até ao temor, guiava-nos, emprestando-nos força para vencer, fazendo-nos voltar o olhar para trás tocados dessa Inquietação de quem se despede do mundo. E, de relâmpago, vislumbrávamos ainda a luz radiante do sol, que lá fora, esplendia deslumbrador. E à proporção que mergulhávamos nas trevas, atingindo assim o primeiro átrio da gruta, a escuridão de tão forte que era, absorvia em nossa retina, todos os encantos da luz que trazíamos de quando iniciáramos a descida. E no espaço de alguns segundos, já sentíamos clamorosamente, a saudade da luz e uma comoção que nos transfigurava o ânimo, se dilatava, espraiando-se por todos os recantos dos nossos sentidos. Começávamos a sentir a presença dos grandes redutos de sombras que engendram sensações macabras. Será difícil à alma humana, por quanto escoimada seja de fetichismo, não sentir o arrepio emocionante de um recinto, cujo nome exalta e evoca a fantástica morada de Satã! Quando se está num lugar assim, onde os duendes, os trasgos e as avantesmas parecem rondar, cosidos nas trevas, perpassa-nos pela imaginação um cortejo de vultos sinistros, fronticurvos, por entre sombras que sarabandam, esfusiando em nossos ouvidos, com agudos e penetrantes silvos que prenunciam a presença, na escuridão, do Príncipe das Trevas! E a coragem, nesse instante, como que amoitada dentro do âmago, assiste o estrebuchar do medo que as aparições espectrais evocam em ambientes como aqueles, onde, no negror ger-minatriz, os fantasmas farandulam perdendo-se nas trevas em rodopios erebos, acendendo para os nossos sentidos, as fogueiras daquele legendário Sabat, onde Mefistófeles, de pontiagudos chifres e longa cauda flamejante, envolto na sua capa negra, aparecia fascinando as almas tímidas, indu-zindo-as ao pecado e enfeitiçando os corpos afeitos ao vício, chafurdando-os no deboche!
Na escuridão do Buraco Soturno são essas as sensações que assaltam a imaginação de quem vai penetrando o vazio do rochedo calcário de formação vulcânica onde a tradição faz habitar o diabo que lá teve a felicidade de ser fotografado por um excursionista audacioso que proporcionou, assün, a criação de variadas lendas absurdas que aterram ainda hoje o espírito pouco arguto dos propensos a bruxaria.
Dois são os aspectos sob os quais devemos apreciar o Buraco Soturno ou a Gruta do Inferno. O geológico — resultado da desagregação da rocha calcaria pela penetração das águas pluviais de modo preguiçoso às vezes, e outras violentas e impetuosas. E outro: uma solução de continuidade na rocha vulcânica, deu lugar às primeiras invasões líquidas, depois o trabalho lento da "água mole" em pedra dócil, gota a gota, persistente e insistente, num demorado labor de infiltração, que vem trazendo às salas, de que até hoje ainda não se conhece o número exato, uma ornamentação bizarra, estranha, curiosa, esquisita, caprichosa e artística, em símbolos arquitetônicos de configurações que tendem a imitar todos os estilos numa síntese que é um misto de caricaturas hilariantes às vezes, e quase sempre de caricaturas que se confundem com a estrutura de caraças que lembram a morte. São vastas salas de uma arquitetura imprevista, onde não colaborou a mão do homem nem sentimento algum da alma humana. É uma confusão atrabiliária de colunas, capitéis, volutas, fustes, pedestais e plintos, formando nichos e esconderijos que infundem pavor, dispostos numa desordenada ornamentação por sobre o pavimento das imensas furnas por onde o ar plúmbeo a custo é respirado. Ao alto, as abóbadas fileteadas de pingentes e cavilosos rendilhados, muito brancas que parecem terem sido barradas de neve. São ornamentações essas formadas pelas estalatites e estalagmites que há séculos as águas vêm gotejando insistentemente, na faina eterna de edificar através de uma obstinada concreação, aquela obra prima da natureza que, pela sua harmonia, desafia a mais fértil imaginação de engenheiro que se possa imaginar.
Aí o homem sente-se como que impotente e amesqui-nhado.
Num lago, perdido no interior de um vasto salão, a água cristalina, forma um espelho de transparência inaudita, refletindo em seu bojo todas as bizarrias que esmaltam a abóbada gigantesca.
O ar pesado e o silêncio profundo e misterioso, exaltam e empolgam, aqui neste ponto, os nossos sentidos.
Vemos, nas sombras projetadas das cousas que a nossa lanterna recorta com lâminas vermelhas no bojo escuro, merencórias e taciturnas formas de vultos que nos assaltam a fantasia, como vindos do seio do mistério. Milhares de espetros e duendes parecem bailar fantasticamente ante a nossa retina; uma emoção transbordante cresce dentro de nós.
Receio? Medo? Pavor? Não!
A ciência rejeita a blague secular das histórias macabras de abusões, bruxarias e fetíchismos. Evocamos, então, nesse momento, as lendas misteriosas que pairam sobre a gruta.
Um padre entrou na dita gruta — isso vai às priscas eras — e quis sair na ponta do Morrinho, cinco quilômetros distantes do lugar onde entrara, passando através do leito do rio Paraguai. Uma moça formosa, desesperada por um desengano de amor, entrega aí, a sua alma, ao Príncipe das Trevas e até hoje é vista pelos raros moradores da redondeza, à noite, chorando como sentinela dolorosa, à entrada daquela furna descomunal. Um general, de uniforme branco, e espada reluzente, dizem, que à noite vocifera nas sombras do abismo dando vozes de comando a uma imaginária artilharia. Uma velha paraguaia vinda de Assunção, acossada por um sonho diabólico, veio um dia ao forte de Coimbra procurar um condenado militar, cujo nome declarara ao comandante, para que o mesmo condenado fosse com ela ao mistério da gruta retirar um "enterro" (tesouro enterrado). O preso recusara seguir a paraguaia, porém, ela ousada e destemerosa, afrontou o risco da solidão e até hoje anda vagueando por aquelas profundezas à cata da fortuna entrevista no pesadelo do sonho.
Sílvio Floreai: O Brasil Trágico. Empresa Gráfica Rossetti, São Paulo, 1928, pp. 147-154.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962
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