EXCERTO DO DISCURSO DE RECEPÇÃO DE VOLTAIRE NA ACADEMIA FRANCESA

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EXCERTO DO DISCURSO DE RECEPÇÃO DE VOLTAIRE NA ACADEMIA FRANCESA

Pronunciado em 9 de Maio de 1746.

DEPOIS de haver louvado em duas páginas o seu predecessor, o presidente Bouhier, Voltaire continua nestes termos:

"Que me seja permitido, senhores, entrar aqui convosco em discussões literárias; minhas dúvidas se valerão de vossas decisões. É assim que poderei contribuir para o progresso das artes; e eu gostaria mais de pronunciar perante vós um discurso útil, do que um discurso eloquente.

Por que os Italianos e os Ingleses, que possuem boas traduções de Homero, Teócrito, Lucrécio, Virgílio, Horácio, não possuem nenhum poeta da antiguidade traduzido em prosa? E por que não possuímos ainda nenhum em verso?

Vou procurar distinguir a razão de tal coisa.

A dificuldade vencida, em qualquer género, constitui sempre uma grande parte do mérito. Não se realizam grandes coisas sem grandes penas; e não há nação no mundo na qual seja mais difícil emprestar uma verdadeira vida à poesia antiga do que a nossa. Os primeiros poetas formaram o espírito de sua própria língua; os Gregos e os Latinos empregaram primeiro a poesia para pintar os objectos sensíveis de toda natureza. Homero exprime tudo que fala aos olhos; os Franceses, que mal começam a aperfeiçoar a grande poesia no teatro, não puderam exprimir até agora senão o que toca a alma. Interditamos a nós mesmos, insensivelmente, quase todos os objectos que as outras nações ousaram pintar. Não houve o que Dante não exprimisse, a exemplo dos antigos: acostumou os Italianos a dizerem tudo; mas nós, como poderemos hoje imitar o autor das Geórgicas, que designa sem rodeios todos os instrumentos de agricultura? Mal os conhecemos, e nossa ociosidade orgulhosa, no repouso e no luxo de nossas urbes, liga, lamentavelmente, a uma ideia baixa esses trabalhos campestres e os detalhes dessas’artes úteis que os donos e os legisladores da terra cultivam com as suas próprias mãos vitoriosas.

Se os nossos bons poetas tivessem sabido exprimir com felicidade as pequenas coisas, nossa língua acrescentaria hoje tal mérito, que é grande, à vantagem de haver-se tornado a primeira língua do mundo para os encantos da palestra e para a expressão do sentimento. A linguagem do coração e o estilo do teatro prevaleceram inteiramente: embelezaram a língua francesa, mas lhe encerraram os encantos em limites um pouco estreitos. E quando digo aqui, senhores, que foram os grandes poetas que determinaram o espírito das línguas, nada avanço de vós desconhecido. Os Gregos só escreveram a história quatrocentos anos depois de Homero. A língua grega recebeu desse grande pintor da natureza a superioridade em que se colocou ante a de todos os povos da Ásia e da Europa. Foi Terêncio quem, entre os Romanos, falou pela primeira vez com pureza elegante; foi Petrarca quem, depois de Dante, deu à língua italiana essa amenidade, essa graça que ela tem sempre conservado; a Lope de Vega deve o espanhol sua nobreza e sua pompa; foi Shakespeare quem, embora bárbaro, emprestou ao inglês a força e a energia que ninguém pôde aumentar, depois, sem violentá-la e, por conseguinte, sem enfraquecê-la. De onde vem esse grande privilégio da poesia de formar e fixar, afinal, o espírito dos povos e das respectivas línguas? A causa é manifesta: os primeiros versos bons, e mesmo os que o são apenas na aparência, gravam-se na memória pelo efeito da harmonia. Seus volteios naturais e ousados se nos tornam familiares. Os homens, imitadores natos, adquirem insensivelmente a maneira de exprimir e mesmo de pensar dos

primeiros cuja imaginação dominou a dos outros. Não con-cordais, senhores, se eu vos disser que o verdadeiro mérito e a reputação de nossa língua começaram com o autor do Cid e de Cinna?

Montaigne, antes dele, era o único a atrair a atenção do pequeno número de estrangeiros que logravam aprender bem o francês; mas o estilo de Montaigne não é nem puro, nem correcto, nem preciso, nem nobre. É enérgico e familiar; exprime ingenuamente grandes coisas. É essa ingenuidade que agrada; aprecia-se o carácter do autor; com-prazemo-nos em nos surpreender do que ele diz de si mesmo, em conversar, em trocar ideias e opiniões com ele. Ouço frequentemente lamentar-se a ausência de uma linguagem como a de Montaigne. É a ausência da sua imaginação que devemos lamentar; esta era forte e ousada, mas sua linguagem estava bem longe de o ser.

Marot, que forjara a linguagem de Montaigne, era pouco conhecido fora de sua pátria; foi apreciado entre nós por alguns contos ingénuos, por alguns epigramas licenciosos, cujo sucesso reside quase sempre no assunto; mas justamente por este pequeno mérito, foi a língua abastardada por muito tempo: eram escritos nesse estilo as tragédias, os poemas, a historia, os livros de moral. O judicioso Despréaux escreveu certa vez:

"Imitez de Marot l’élégant badinage" 1

Ouso acreditar que ele teria dito a ingénua zombaria, se essa palavra mais exacta não tornasse o verso menos fluente.

Não há verdadeiramente boas obras senão as que passam para as nações estrangeiras; as que ali se assimilam; as que ali se traduzem. E em que país foi Marot jamais traduzido?

Nossa língua conservou-se por muito tempo ainda depois dele uma algaravia familiar, com auxílio da qual conseguiam-se preparar, de vez em quando, excelentes distracções; mas quando se é apenas divertido, não se consegue ser admirado pelas outras nações.

 

"Enfin Malherbe vint, et, le premier en France, Fit sentir dans les vers une juste cadence, D’un mot mis en sa place enseigna le pouvoir" 2.

Se Malherbe foi o primeiro a mostrar o que pode a grande arte das expressões exactas, foi também o primeiro a ser elegante. Mas algumas estâncias harmoniosas bastariam para levar os estrangeiros a cultivar nossa língua? Eles liam o admirável poema Jerusalém, o Orlando, o Pastor Fido 3, os belos trechos de Petrarca. Poderiam associar a essas obras–primas um pequeno número de versos franceses, bem escritos, na verdade, mas fracos e quase desprovidos de imaginação?

A língua francesa continuaria, pois, na mediocridade, não fora um desses génios destinados a transformar e elevar o espírito de uma nação inteira. Foi o maior dos vossos primeiros académicos, foi Corneille quem começou a fazer a nossa língua respeitada pelos estrangeiros, precisamente no tempo em que o cardeal Richelieu começava a tornar respeitada a coroa. Um e outro levaram nossa glória a toda a Europa. Depois de Corneille vieram, não digo os maiores génios, mas os melhores escritores. Um homem surgiu, mais apaixonado e mais correcto, menos variado, mas também menos desigual; tão sublime por vezes, e sempre nobre sem enfatuação; nunca declamador, falando ao coração com mais verdade e mais encanto. Um de seus contemporâneos, incapaz, talvez, de atingir o sublime que eleva a alma e o sentimento que a enternece, mas em condições de esclarecer os que foram pela natureza dotados de ambas as coisas, laborioso, severo, preciso, puro, harmonioso, que se tornou enfim o poeta da razão, começou, lamentavelmente, por escrever sátiras; mas logo depois igualou e suplantou, talvez, Horácio na moral e na arte poética, dando-nos delas os preceitos e os exemplos, e vendo finalmente que a arte de instruir, quando perfeita, produz melhor resultado do que a arte de denegrir, porque a sátira morre com os que dela foram vítimas, enquanto que a razão e a virtude são eternas.

 

 

Tivestes, em todos os géneros, essa multidão de grandes homens que a natureza fez surgir como no século de Leão X e de Augusto. Foi então que os outros povos procuraram avidamente abeberar-se nos vossos autores; e graças, em parte, aos desvelos do cardeal Richelieu, adoptaram a vossa língua, como se haviam apressado a valer-se dos trabalhos dos nossos engenhosos artistas, graças ao interesse do grande Colbert. Um monarca ilustre 4 entre todos os homens por cinco vitórias, e mais ainda entre os sábios pelos seus vastos conhecimentos, fez sua a nossa língua, impondo-a à corte e aos seus Estados; conseguiu falá-la com a exactidão e a finura que o estudo somente não faculta, e que é o apanágio do génio. Não apenas a cultivou, mas ainda a embelezou por vezes, pois os espíritos superiores apreendem sempre as nuances e as expressões dignas deles e que não se revelam às almas fracas.

Temos em Estocolmo uma nova Cristina, igual à primeira em espírito e superior no resto; ela presta, igualmente, as honras a nossa língua. O francês é cultivado em Roma, onde fora outrora desdenhado; tornou-se tão familiar ao Sumo Pontífice quanto as línguas eruditas em que escreve para instruir e esclarecer a Cristandade. Mais de um cardeal italiano escreve em francês no Vaticano, como se houvesse nascido em Versalhes. Vossas obras, senhores, penetraram até na capital do império mais distante da Europa e da Ásia e o mais vasto do universo. Na cidade que, há quarenta anos, não passava de um deserto habitado apenas por animais selvagens, são representadas vossas peças dramáticas, e o mesmo gosto natural, que acolhe na cidade de Pedro o Grande e de sua digna filha a música dos Italianos, ali torna apreciada a vossa eloquência.

 

 

Essa honra por tantos povos concedida aos nossos escritores é uma advertência que a Europa nos faz para que não degeneremos. Não direi que tudo se precipita para uma vergonhosa decadência, como bradam a todo momento os satíricos que pretendem, no íntimo, justificar a própria fraqueza por aquela que imputaram publicamente ao século. Confesso que a glória de nossas armas se mantém melhor do que a de nossas letras; mas o clarão que nos iluminava ainda não se extinguiu. Nestes últimos anos não produzimos o único livro de cronologia 5 em que até agora se retrataram os costumes dos homens, o carácter das cortes e dos séculos? Obra que, se fosse secamente instrutiva como tantas outras, seria a melhor de todas, e na qual o autor descobriu ainda o segredo de agradar, dom reservado ao pequeno número dos homens superiores às próprias produções.

Mostraram-se as causas do progresso e da queda do império romano em um livro ainda mais curto °, escrito por um génio viril e ágil, dotado de grande poder de análise. Nunca tivemos tradutores mais elegantes e mais fiéis. Verdadeiros filósofos escreveram, finalmente, a história. Um homem eloquente e profundo 7 formou-se no tumulto das armas. É mais um desses espíritos amáveis que Tibulo e Ovídio costumavam encarar como discípulos e dos quais desejariam ser amigos. O teatro, confesso-o, está ameaçado de uma próxima ruína, mas ao menos vejo aqui esse génio verdadeiramente trágico 8 que me tem servido de mestre quando dou alguns passos na carreira; contemplo-o com um misto de dor e satisfação, como se contempla sobre os escombros da pátria o herói que a defendeu.

 

Encontro entre vós os que, depois do grande Molière, acabaram por tornar a comédia uma escola, de costumes e de bom tom °, escola que merecia, entre os Franceses, a consideração que um teatro menos depurado teve em Atenas. Se o homem célebre 10 que primeiro ornou a filosofia com as graças da imaginação pertence a um tempo mais recuado, constituiu ainda a honra e o consolo do vosso tempo.

Os grandes talentos são, naturalmente, sempre raros, sobretudo quando o gosto e o espírito de uma nação estão formados. Acontece com os espíritos cultos o mesmo que se dá com as florestas, onde as árvores comprimidas e altas não permitem a nenhuma erguer o topo muito acima das outras. Quando o comércio está nas mãos de poucos vemos algumas fortunas prodigiosas e muita miséria; quando ele se expande, a opulência torna-se geral e as grandes fortunas raras. É precisamente, senhores, porque há muito talento na França, que encontraremos de agora em diante menor número de génios superiores. Mas, enfim, apesar dessa cultura universal da nação, não negarei que esta língua, que se tornou tão bela e deve ser fixada por grande número de boas obras, pode facilmente corromper-se. Deve-se advertir o estrangeiro de que ela já perde muito de sua pureza nessa célebre república u, por tanto tempo nossa aliada, onde o francês é o idioma dominante em meio as facções contrárias à França. Mas se ele se altera nesse país pela mistura de idiomas, está prestes a corromper-se entre nós pela mescla dos estilos. O que deprava o gosto, deprava, afinal, a linguagem. Frequentemente, procuramos aligeirar obras sérias e instrutivas com expressões familiares da conversação. Frequentemente, introduzimos o estilo marotino12 nos assuntos mais nobres: é vestir um príncipe com os trajes de um farsante…

1 " Imitai de Marot a elegante zombaria ".

2 " Afinal, veio Malherbe, e pela primeira vez na França fez sentir nos versos uma justa cadência; com uma palavra bem posta indicou a autoridade de expressão ".

3 Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso; Orlando Furioso, de Ariosto; o Pastor Fido, de Guarini.
4
Frederico II.

5 Abrégé chronologique de l’Histoire de France, pelo présidente Hé-nault.

6 Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence, por Montesquieu.

7 Vauvenargues, que faleccu em 1747, aos 32 anos de idade.

8 Crébillon, autor de Rhadamiste e de muitas outras peças.

9 Néricault-Destouches e Marivaux.

10 Fontenelle.

11 A Holanda.

12 De Marot, o poeta francês de que Voltaire faz referência no início do seu discurso.

Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.

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